Por Pedro Fernandes
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Elisa Lispector. Foto: Gil Pinheiro. Arquivo Manchete. Restaurada com IA. |
“Estou sempre começando, para em
seguida terminar, e recomeçar de novo, os elos partidos, um não chegando a
emendar no outro.” A conclusão, de muitas de sentido semelhante levantadas por
Marta, protagonista de
O muro de pedras, é também uma revelação sobre o
movimento da narrativa que perfaz o curso existencial de uma mulher entre a sua
primeira idade adulta até a velhice. O curso do romance de Elisa Lispector é
feito de pura sondagem psicológica e analítica, o que coloca sua obra nas
primeiras fileiras do modelo existencialista bastante cultivado pela literatura
no seu tempo.
Nos romances herdeiros do
existencialismo o enredo se esboroa; o que importa à narração é alinhavar
recortes precisos, marcadamente os encharcados da angústia anterior ao instante
de epifania, este que uma vez consumado entra outra vez na circularidade dos volteios
psicológicos do indivíduo observado. Naturalmente, o escritor se interessa por
perscrutar como o pensamento nos conduz nas relações com o mundo, as coisas e o
outro, sendo este, na dimensão estabelecida com Jean-Paul Sartre, nosso inferno,
porque uma plena individualidade, isso que buscam as personagens no romance
existencialista, esbarra sempre nos seus limites — do outro, é claro, mas
também nos do próprio eu.
O narrador de
O muro de pedras
destaca sua personagem e dela se utiliza como matéria de problematização sobre alguns
dos temas nucleares do existencialismo, os seus princípios: quem sou eu, quem é
o outro, qual o motivo e o sentido de existir ou o que é viver e a vida, como se
estabelecer enquanto individualidade, entre outros. Estas preocupações tanto
têm de particulares como de universal, acompanham-nos desde nossa primeira
consciência sobre a existência, o da descoberta sobre a morte, pela vida
inteira e se transformam para muitos em marca actancial, certa disposição
melancólica reparada desde os gregos.
Marta é uma dessas personagens.
Isto é, os motivos que a enredam, também a arrastam para um mundo nebuloso, parado,
negro, problemático, traços de uma constante inescapável capaz de transformar qualquer
coisa em seu brilho em objeto fosco e desinteressado. Na narrativa, dois
episódios constituem em desencadeadores no périplo da protagonista: a morte do
pai, depois de várias idas e vindas de sanatórios, e a partida da mãe quase
imediatamente ao funeral rumo a um novo amor, cultivado, pressupõe-se, nos tempos
de quando esteve casada. Essa orfandade desencadeia ora o encontro de Marta com
os limites da vida com Heitor, o marido, ora um retorno à solidão de sua
infância.
Nesse exercício, à medida que descobre
a si, a personagem consegue entender o outro em sua dimensão opressora. Primeiro,
a mãe. Em tudo diferente da filha, Eunice só a reconhece enquanto matéria opositora
e em tudo questiona os modos e atitudes de Marta, da casa mal-ajambrada pelo
marido aos modos de se vestir e desinteressados da vida social. Depois, o
próprio marido. O elo matrimonial é parte de um acordo de aparência: Heitor quer
uma vida de casado com as regalias de solteiro e encontra isso em Marta, a possibilidade
de se exercer enquanto indivíduo. As diretrizes dessa relação não a obrigam ao
recato do lar — como descobre mais adiante ser uma constante na sua classe
quando desenvolve o contato com Marina, uma mulher casada que sustém sua bem
preservada
carreira de amante — e, portanto, mais que a obrigação ou a
situação em que se encontra, o que subjuga essa protagonista está na dimensão
da sua individualidade. Marta se pergunta por qual motivo ela precisa responder
positivamente aos comandos sociais e para que serve uma vida submetida.
O que oprime Marta nestes dois
primeiros
outros, então, não vem das atitudes deles para com ela — toda vez sempre confrontadas
—, mas da sua natureza que a impede, como força maior, em transformar a vida em
autenticidade. Logo à entrada dos volteios na consciência da personagem, o
narrador a distingue pelo “desconhecimento de si mesma” e sem “fé no seu
destino”. É Marta quem assim pensa: “As outras pessoas sabem o que querem;
apoiam-se nos seus desejos, e isso lhes serve de sustentáculo. Ao passo que eu sempre
fui indecisa. Era só lançar-me para frente, e em pouco me perdia
irremediavelmente e irremediavelmente ficava desfigurada”. Isso constitui o
primeiro movimento do romance que mais tarde, num segundo movimento, se
dedicará em examinar o interesse de sua protagonista pelo presente da
existência.
Por enquanto, o que o narrador
averigua é como os laços familiares reduzem os indivíduos a limites que lhe são
alheios e ao mesmo tempo, contraditoriamente, como esses vínculos estabelecem o
funcionamento da própria individualidade. Fiquemos com um exemplo. A posição da
mãe, sempre afeita ao
tempus fugit e castradora para com a filha, se contém
nessa consciência que se quer positiva — ou seja, Marta também quer o outro à
sua semelhança. Agora, ao não encontrar sentido no alheio, porque o toma para
si, o sujeito se retrai, fazendo-se outro, em conflito com o que se descreve a normalidade
das coisas.
Marta é uma consciência em desassossego:
“Por que não consigo jamais estabelecer a paz consigo mesma, por quê?” — se
pergunta. Todo o primeiro movimento da narrativa pode ser lido como a busca por
uma resposta para essa pergunta, ainda que seja uma questão que abrace o todo
do romance. Processa aqui todo um retorno da personagem ao passado,
circunscrito a três descobertas essenciais: a morte, o medo e a solidão, as
matérias da vida.
A primeira, conforme dissemos, constitui
o despertar sobre nossa condição, o aparecimento da consciência. A morte
transforma a vida em instante e limite — é a mais terrível das descobertas, o
traço distintivo da nossa contínua angústia. Na vida da protagonista de
O
muro de pedras isso manifesta na visão da tia Adélia morta, depois na infância
gorada quando presencia a imagem de um natimorto contemplada no consultório
médico.
O medo se pressupõe na
impossibilidade de ser para o mundo, um movimento sempre penoso para Marta,
seja porque ela esbarra no sentido dos atos, seja porque se pergunta sobre o sentido
de sua participação neles. Fator essencial à sobrevivência, o medo é, quando
transformado em espectro, um impeditivo para a ação. Casada com Heitor há dez
anos, ainda que se descubra imersa numa solidão amarga porque dividida em
companhia, a atitude de se desfazer dessa ordem, só se manifesta no extremo
limite da angústia, ou, na ruptura com o medo. Outra vez, falamos de uma
qualidade interior, sua mobilidade é existencial e não está submetida
essencialmente aos limites sociais, isto é, a um lugar da mulher burguesa numa
sociedade centrada no poder decisório do homem, mesmo que nada impeça, como
veremos mais adiante, essa leitura.
Junto com a descoberta da morte, a
solidão (e podemos mesmo pensar a morte como a solidão absoluta), é o traço
essencial do solipsismo em
O muro de pedras. Não apenas os volteios de
uma consciência específica demonstram isso; o mundo entrevisto nesse romance se
mostra marcado de profundas cisões. A menina Marta as observa, por exemplo, em
todos da sua casa — da mãe à tia, passando pela criada, a velha Manuela debruçada
nos afazeres domésticos — e se amplia com os outros com os quais se relaciona na
vida adulta: outra vez a mãe, o marido Heitor, o amante, as pequenas amizades,
os habitantes da Granja Quieta, o filho. Nada deixa de aparecer envolvido por essa
película, qual a casca do ovo que também em criança Marta observa como matéria
que precisa ser rompida pelo pássaro para que ele se estabeleça enquanto vida.
É tentativa de a protagonista
entender o mistério das coisas, como se instaura o acaso favorecendo o
movimento da vida, uma vez que nem tudo depende da força material se “as coisas
são como são porque não podem ser de outra forma”. Ainda no que descrevemos com
primeiro movimento da narrativa, notamos como Marta investiga o princípio do
seu envolvimento com Heitor, o encontro adolescente numa estação balnearia e
quando “tinham sido felizes nos primeiros tempos em que se conheceram — uma
felicidade feita de tão pouco”. Nesse exercício de revisitar o passado, o que
causa espanto é como o convívio diário submete às pessoas aos usos da outra, perdendo-se
um e outro, degradando-se em sua eventual inteireza.
Nesse momento se opera o salto
entre o individual e o coletivo, desfazendo-se a redutora concepção segundo a
qual a literatura de corte intimista é alheada das questões sócio-históricas. Ao
analisar a metamorfose do ser-em-convívio, nota-se no seu caso, que ela própria
é como se “fosse uma das tais coisas com que ele [Heitor] vivia, de que dependia
[os seus livros, as gravatas, o maço de cigarros, o isqueiro”. Ao reparar no
assoreamento do contato entre o eu e o outro, Marta revela a alienação dos
indivíduos que, no casamento, se manifesta explicitamente na submissão dos
amantes aos desígnios da vida conjugal. Mesmo a individualidade que Heitor
finge preservada não existe. O romance de Elisa Lispector toca aqui noutro tema
bastante caro ao existencialismo: a liberdade.

Nesse romance, os indivíduos,
obcecados pela perda da liberdade, refugiam-se nas suas interioridades. Mesmo
Heitor que é entrevisto por Marta como o outro de seu interesse, pela autonomia
da qual ela não dispõe. Mas, se a princípio é ele quem “jamais lhe havia dito
que a amava” e “fizera questão de frisar que continuaria a cultivar o que
chamava as suas amizades femininas”, notaremos que esse comportamento se
corresponde com o de Marta; existe entre os dois um muro que impede, por
insegurança ou medo, o pleno reencontro dos amantes, alcançado este, claro
está, apenas na dimensão platônica, manifesta aqui no despertar da paixão e
administrada zelosamente: “Ele, ignorando o despontar da estranheza de Marta,
continuava obstinadamente a levantar os muros de sua fortaleza, porque
obsessivamente adivinhava pelo ardor que, se permitisse, terminaria por
arrastá-lo para fora de si, aprisionando-o e comprometendo-o
irremediavelmente.”
O medo de Heitor é se tornar uma
Marta; as paixões fazem os indivíduos passivos, nos tragam alegrias ou desatinos.
Quer dizer, presos nas suas individualidades cada um teme que a entrega os destitua
de sua inteireza. Outra vez, o medo os impede de perceber que estamos, por
nossa própria condição, submetidos — são os animais os seres que não sofrem
paixões no mesmo sentido que nós. No caso da protagonista, o romance testemunha
duas outras tentativas de ruptura desse invólucro: quando Marta se envolve descompromissadamente
com Maurício e repentinamente com Bruno. Nesses casos descobre que não existe
qualquer relação, por casual que seja, fora do compromisso; envolver-se com o
outro é ceder, submeter e ser afetado. Mas esses dois acontecimentos servem ainda
para demarcar essa mulher em posse do seu destino e se existe alguma submissão
aqui pertence ao plano incontornável do universo, o princípio com o qual nossa
condição é a de tragado pelo mistério.
Até a irrupção do divórcio, muitos
são os percalços e o principal responde outra vez pelo nome de Eunice; a mãe de
Marta sentenciou o vazio da relação pela ausência de perspectivas de Heitor.
Por um modo de orgulho próprio, outro jogo de forças que aproximam espelhadamente
as duas personagens, a filha aposta até a última gota o esgarçamento do laço matrimonial.
Nesse ínterim, os indivíduos em silencioso conflito revelam-se nas suas
fragilidades; submetida ao ponto de vista de Marta, é por ela que se evidencia
um progressivo desfazimento da inteireza certamente idealizada da figura masculina.
Há pelo menos três aspectos que o romance evidencia no demorado litígio: a
desconstrução do aspecto heroico do homem (que casual ou previsivelmente se
demonstra pelo nome da personagem — Heitor); o desenlace do amor ou sua
transfiguração uma vez apagadas suas idealizações — “o amor só vinha agora
envolto em muito desamor”; o retorno de Marta ao seu mundo próprio e é seu fechamento
que finda por abalar toda decência dos muros entre os amantes.
A nova vida — sem a presença egocêntrica
da mãe e o individualismo de Heitor — empurra a personagem para o tempo outonal
em que a vida comum permanece como uma repetição contínua de obrigações criadas,
falsas intimidades e gratidões incômodas. Marta aprende que viver é triste.
Solitário e trise. A única possibilidade de entender a inteireza do mundo é pelo
teatro e Marta não é das mais dispostas à naturalidade do fingimento e percebe
que as celebrações, a entrega ao prazer, como o álcool, a dança ou o sexo casual,
como experimenta do convívio com Mariana e Maurício são tolas ilusões. O
interesse numa autenticidade da vida, toda movência da personagem principal de O
muro de pedras, se refundará no abandono da urbanidade pelo ambiente rural.
Elisa Lispector sonda, desse modo,
que nossa angústia no mundo é duplamente motivada: por uma disposição anímica dos
sujeitos e pela acentuada ruptura entre o homem e a natureza. No refúgio em
Granja Quieta, Marta busca algum sentido para sua existência a partir de uma
tentativa adâmica, se reintegrar ao paraíso original. Uma vez no campo, ela se
pergunta se não teríamos sido criados para “esta comunhão calada e intensa com
o mundo em redor, e o de por baixo da terra, e de por cima do céu, em comunhão
com as águas, e o solo, e os bichos todo da criação.” Obviamente que essa
tentativa fracassa; expulsos do paraíso, jamais fomos reintegrados aos seus limites.
Essa estadia em Granja Quieta,
assinala o segundo movimento da narrativa. Nele, a protagonista se confronta
não com o passado e o futuro, mas com o seu presente; descobriu que a vida é um
instante e permanece motivada a se comunicar com ele a outra forma de dispor do
tempo, as ligações com o miúdo e o assombroso da natureza e uma tentativa de
compor relações autênticas com o outro a partir do convívio sisudo e nem sempre
amistoso com a família de imigrantes italianos que cuida do sítio dela desde
quando se refugiam da perseguição imposta pelo fascismo e a guerra. Eis outra
infiltração do elemento sócio-histórico no destino dos indivíduos: o mundo
cindido, murado, religado apenas pelos laços de conveniência é produto da
técnica, do individualismo urbano e dos deslocamentos coletivos impostos por
modelos de poder e de ideologias. Justifica-se ainda qual a renúncia de Marta.
Ao escolher sempre a si, ela reaviva o fator defenestrador das coletividades. O
universo intimista de O muro de pedras em parte se anima desse espírito
que empurra sua protagonista para fora dos ajuntamentos — trata-se de um romance
situado no coração das grandes crises do coletivo. Não é, como supõe algumas
leituras a negação dessa ordem — o mundo de Granja Quieta, aliás, testemunha
exatamente o contrário, mesmo que Marta nele não se integre. É uma revisitação
ao eu como potência e ao indivíduo como matéria para o plural.
É em Granja Quieta que Marta descobre,
por exemplo, o valor do nosso ímpeto decisório para a modificação do curso das
coisas; ou seja, as coisas podem se fazer por elas mesmas, mas na vida nada se
faz apenas como espera. Enquanto investe nessa possibilidade, sua existência é
carcomida pelo vazio, capaz de devorá-la sem a sua atitude. Na longa viagem que
se volta para seu interior encontra “o ser é só ele, e que unicamente no
aprofundamento interior se reencontra e é.” Por sua vez, somos para a morte. O
grande mistério que nos traga. Diante dela — contemplada por Marta visivelmente
diante o grande vazio que se estende sob seus pés no mirante ao qual sempre
retorna com o fardo das inquietações — só resta duas alternativas: lançar-se ou
esperar ser enlaçado. Ainda assim, enquanto estamos no limiar, a vida, parece
que nos resta vivê-la sem esperar pelo milagre e como se fosse um milagre. Se
este é caso de Marta? Invista na leitura de O muro de pedras e descubra.
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O muro de pedras
Elisa Lispector
208 p.
Record, 2025
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