Doris Lessing



Num texto recente para o jornal El País, Alberto Manguel relembra dos quinze anos de amizade cultivada entre ele e a escritora britânica Doris Lessing: “a nossa era, num sentido literal, uma amizade baseada na palavra escrita. Por carta, discutimos sobre política, sobre livros, sobre as mentiras da história e a verdade da literatura, do teatro e do cinema, e dos laços familiares de cada um, dessa vontade humana de criar obrigações afetivas que Francis Bacon chamou ‘reféns da Fortuna’. Criticamos editores, publicações, governos e lamentamos a sorte dos países que sentimos inexoravelmente nossos: em seu caso, Rodésia.” A Manguel, Lessing teria confessado – “Uma parte de mim estará sempre na África”.

A escritora que nasceu no Irã em 1919 morreu no início desta semana em Londres, onde vivia desde adulta. Tinha 94 anos e há três anos fora a ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura. Aos cinco anos de idade mudou-se com os pais para uma província na Rodésia (hoje Zimbábue) onde viveu boa parte de sua vida, até que, abandonando seu segundo marido, decidiu emigrar para Inglaterra como seu filho mais novo. Sua oposição ao governo minoritário branco de Rodésia lhe valeu o carimbo no passaporte de “imigração proibida”, isto é, não estava autorizada, depois que saiu, a voltar mais ao país; a proibição terá durado até 1982, e mesmo depois disso, ainda foi quatro vezes à terra de sua infância e juventude, visitas que deram origem ao livro de reportagem African Laughter.  

“Desde sua juventude, Lessing se interessou pelos problemas da educação em Rodésia. Como fazer para que as crianças dessa região tão pobre tivessem acesso ao conhecimento do mundo? Como fazer para que as ajudas destinadas a educação resultassem em escolas, e as escolas em bibliotecas, e as bibliotecas em livros que todos pudessem ler? Como formar professores que ensinassem às crianças a opor-se à corrupção iniciada pelo tirânico Mugabe, a não adotar os costumes estabelecidos de roubar, mentir e abusar do poder, não só em nível de governo, mas em todas empresas e círculos sociais?” – relembra Manguel. Para Lessing, responde o próprio escritor, “a solução (ou a intenção de uma solução) começa sempre com o indivíduo. O indivíduo, como pensa Lessing (e como pensava Aristóteles) deseja essencialmente o bem: conhecer o mundo, viver nele com justiça, ampliar sua mente e seus poderes intelectuais, compartilhar deveres e privilégios, ser mais humano o possível. E esse desejo, segundo Lessing, mesmo nas sociedades mais desunidas, mais frágeis, junto à necessidade de sobreviver fisicamente de comer e beber dignamente, e de ter um telhado e um refúgio, se manifesta concretamente no desejo de ler.”

Daí, recorda Manguel, a comovente história de um conto de Lessing – “Por que um menino negro roubou um manual de física superior” – em que um menino rouba um livro que não pode ler. Dois são os impulsos que o levam a esta ação. Primeiro, ter o objeto, que durante o tempo de espera é mágico, como um talismã com imensos poderes; logo, aprende a servir-se dele. Para a menina da exígua escola de Rodésia, com seus professores pobremente instruídos e suas bibliotecas quase vazias, os livros que satisfarão o seu desejo são as obras universais de nossas literaturas, essas que podem ser universalmente lidas. Em literatura nem todo espelho nos reflete. Lessing quis dizer isso com o menino desse conto, ao recorrer a um livro eleito, escrito através dos séculos por alguém de outra cultura. “Minha avó me contava uma versão dessa mesma história.” Que é uma forma de dizer: “Este relato é também meu.” Quando lhe foi outorgado, enfim, o Prêmio Nobel, recordou essa anedota e disse que lhe gostava pensar que sua ficção não era senão versões particulares de outras contadas em outras línguas e quiçá as mais antigas.



Alberto Manguel compreende que em quase todos os livros de Lessing, esse reflexo esperado é, a sua meta literária. Um reconhecimento, a intuição de uma memória, uma sensação de repente possuir, convertida em palavras, uma experiência já sentida, íntima e secreta. Desde seus primeiros textos autobiográficos, seguindo com a saga de sua heroína, Marta Quest (que, a partir de The golden notebook se converteu em leitura essencial para o movimento feminista dos anos sessenta em diante), passando pelos poderosos relatos que captam, em imagens brutais, a traumática vida da segunda metade do século XX na África e na Europa, até as extraordinárias invenções da ficção cientifica que revelou nela uma capacidade de invenção infantil, a sexualidade da idade madura, o mito originário da desigualdade dos sexos, e, finalmente, vários volumes de memórias e uma biografia fictícia de seus próprios pais, Lessing propôs aos seus leitores perguntas fundamentais sobre como atuar com responsabilidade no mundo. Ser leitor é para Lessing, uma tomada de poder, um ato revolucionário que nos permite ter acesso à memória do mundo, a ser cidadãos no sentido mais profundo da palavra. “Literatura e história são ramos da memória humana”, escreve. “Nosso dever é recordar, inclusive o que está por acontecer”.

Ao final de um ensaio comovedor sobre a condição humana, Prisons we choose to live inside, Lessing imaginou outro menino (neste caso, o quase mítico faraó Akenaton, que há quase 25 séculos quis impor uma ética humanista no império egípcio) que cresce numa sociedade ditatorial e injusta, fazendo-se esta pergunta: “Que pode fazer uma só pessoa contra este terrível, pesado, poderoso e opressivo regime, com seus sacerdotes e seus temíveis deuses? Será que ainda vale tentar?” “Se vale provar”, disse Lessing, não só “vale a pena”, como é a condição essencial de nossa existência. Vivemos provando, tentando alcançar esse bem que ansiamos, melhorar este pobre e desajuizado mundo. É dizer: “Usando nossas liberdades individuais (e não quero dizer simplesmente fazendo parte de manifestações, partidos políticos, e além disso, que são só parte do processo democrático), examinando ideias, venham de onde venham, para ver de que maneira estas podem contribuir utilmente à nossas vidas e as sociedades em que vivemos.” Neste mundo insensato e violento em que vivemos, as palavras de Doris Lessing são um alento e um guia.

Quando da recepção do Prêmio Nobel, a Academia Sueca elogiou a obra de Doris como a que “soube capturar o essencial e a épica da experiência feminina, que com ceticismo, fogo e poder visionário passou por uma civilização dividida ao escrutínio.” Foi romancista, ensaísta, poeta e intelectual; e em todas as manifestações literárias esteve sempre comprometida com a vida compreendendo esse território como elemento crucial para a literatura; compôs uma obra que, entre outras coisas, buscou a construção de uma estética que poderia ser clássica ou de fragmentação pós-moderna. A definição é de Winston Marinque Sabogal.  

“África, Inglaterra, a mulher, as dúvidas existenciais e as contradições do ser humano têm um papel essencial em sua escrita. Qualificada como uma escritora feminista e militante de esquerda, Lessing transcendeu essas características ao tornar visíveis temas e problemáticas que tocam a todos os indivíduos à margem de gêneros, ideologias e lugares.”

Doris, sem condições de continuar os estudos (porque onde morava já não havia mais séries em que pudesse ser enquadrada) vai buscar sua formação sozinha; aos 15 anos começou a publicar os primeiros contos em revistas sul-africanas. Quando chegou em Londres, tinha já 31 anos e três filhos, deixando para trás dois casamentos. A ida para a capital inglesa é o que será o elemento definidor de sua carreira como escritora. Publica em 1950 seu primeiro título The Grass is Singing. Sua militância não se reduziu em discursos; até 1954, foi membro do Partido Comunista britânico – abandonou por decepção política. Mas a política esteve sempre presente na sua obra, ao refletir sua paixão e luta pela liberdade, contra as injustiças geradas pelo homem e o compromisso com as causas do Terceiro Mundo.

“Quando Doris Lessing traz à tona os choques de classe, gênero e cultura, expressa o desejo de buscar um território comum: uma zona onde a fricção se suavize. Doris Lessing passará à posteridade por sua sabedoria em visualizar as contradições com as quais vivemos cotidianamente: pobres e ricos, mulheres e homens... Mas apara as arestas dessas contradições."


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