Manoel de Barros, língua para brincar



A poesia de Manoel de Barros, qualquer leitor atento poderá atestar, nasce no interior de um estágio eterno de infância. Entre a construção poética como um divertimento com palavras e a observação aguda das coisas simples, nesse oásis infante no interior da língua constrói-se pela brincadeira outra via de ler o mundo. Agora, como descrever com a linguagem do cinema esse universo? Há dois títulos (um deles comentamos por aqui) que tomam a vida do poeta pantaneiro a partir da necessidade de, como a poesia sua, sair do trivial: Caramujo-flor, de Joel Pizzini e Só dez por cento é mentira, de Pedro Cezar.

O primeiro título é um curta que traz a poesia de Manoel de Barros na voz de nomes como Ney Matogrosso e Aracy Balabanian, o depoimento de Antônio Houaiss sobre onde melhor situar, na linha da literatura brasileira, a obra do poeta, e a fala de gente como Fausto Wolff, amigo de Manoel.

No longa de Cezar, a vida de Manoel é reinventada a partir de sua poesia e conseguimos penetrar nesse seu universo pela entonação de sua própria voz lendo trabalhos seus mais o ritmo tradicional dos depoimentos, agora, de pessoas que fizeram desse universo outras releituras: mesmo o cinema, o teatro... Sim, a obra sua é espaço para invenção de outros muitos que conseguem alcançar esse universo da criancice.

Da mesma maneira esse Língua de brincar, dos diretores Lúcia Castelo Branco e Gabriel Sanna. A ideia foi nascida ainda no início dos anos de 1980, quando Lúcia era estudante de Letras na Universidade Federal de Minas Gerais; naquela ocasião ela redigiu uma resenha para Arranjos para assovio, publicada no Suplemento Literário. O próprio Manoel de Barros redigiu-lhe uma carta em agradecimento a leitura e, desde então, os dois se tornaram correspondentes. Quase dez anos depois, ela viaja ao Pantanal para conhecê-lo. A ideia em maturação tomará forma mais dez anos adiante quanto o sobrinho de Lúcia lê o Livro sobre nada. Cineasta e sabedor da relação da tia com o poeta, Gabriel propõe um filme sobre o nada, fazendo o caminho sem avisá-lo de reencontrá-lo. Manoel, depois de saber de tudo, chegou até a dar palpites e em 2006 a história começou a ser filmada.

O filme ora disponibilizado na web para alcance de um público diverso é a acertada tentativa de fugir do tradicionalismo do documental, para experimentar-se como imagem pela poesia. De fato, é um trabalho que se situa entre os dois que acima mencionamos, mas é fio de inovação diante de uma poética de igual modo.


Elencam um cordão de nomes marcantes no interior da língua portuguesa: além da própria voz do Manoel de Barros, ouve-se Mia Couto, Maria Bethânia, Ondjaki, José Mindlin e outros nomes diversos. Pensado como o itinerário de uma carta, o percurso tornado viagem, vai se tornando o próprio universo construído pelo poeta. Está aí sua paisagem inspiradora, o Pantanal, sua poesia, o afeto, a amizade dos mais próximos e a leitura dos críticos.

Além disso, o esforço maior dos realizadores concentra-se em dizer de maneira mais autêntica sobre esse universo. E consegue dizer sobre uma obra das mais significativas e que tem se tornado uma das mais populares no Brasil. Língua de brincar reafirma-se como cinema de invenção, mesma noção trilhada pela verve poética de Manoel de Barros. Tal relação não é mera repetição e nem quer se impor sobre uma linguagem tão forte como a estruturada pela poesia, quer sim, fundir-se enquanto visualidade e poesia. Quer ser uma cinepoética cujo pretexto parece ser o de retirar o espectador do lugar comum desenhado pela filmografia comum do gênero documentário. Quer ser uma possibilidade de tornar o movimento da palavra numa natureza palpável.  

Tudo isso não se perde num estilismo gratuito; constitui-se, antes, forma de trazer próximo aos leitores o poeta, que é junto com a obra, a personagem central desse texto filmado. Assista aqui.


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