Qual era a cor dos olhos de Franz Kafka?


Por Avi Steinberg


Há muito que as histórias de Franz Kafka passaram para o anedótico e constituem o tipo de trabalho que você não precisa ter lido a fim de saber que elas existem. Assim como tratamos determinadas situações por “shakespearianas” e outros acontecimentos de “proporções bíblicas” – tenhamos ou não lido obras como Júlio Cesar ou o Livro de Jó – as qualidades do “kafkiano” são familiares a nós não apenas pela leitura das histórias de Kafka e são parte das histórias que vivenciamos diariamente. Usamos “kafkiano” para nos referir a situações embaraçosas com serviços de atendimento ao cliente, para falar sobre as relações escusas do estado para com os cidadãos comuns etc. Para um escritor essa é uma honra, ainda que não completa, ser lembrado sem que o leiam; de toda maneira é uma forma de manter-se sempre presente e sempre mal compreendido.

Para ajudar a reverter essa deriva da reputação de Kafka, Reiner Stach foi curador de uma coleção de artefatos da vida do autor em seu livro mais recente, Is that Kafka? 99 finds (em tradução livre, Isso é Kafka? 99 achados). O livro é uma tradução do alemão por Kurt Beals, e é uma continuidade da monumental biografia do autor em três volumes escrita por Stach. Com o comentário breve, ele apresenta um a um noventa e nove itens-documentos de exposições sobre Kafka – fotografias, objetos, rascunhos etc. O resultado é uma espécie de caixa de chocolates austro-húngaro: a planta para o apartamento da família Kafka (fonte de inspiração para a construção do espaço de A metamorfose) (ver final da post); fac-símiles de lapsos freudianos em manuscritos de Kafka; um cronograma de seu regime de trabalho; sua proposta sincera para uma comunidade utópica; o anúncio do seu primeiro livro, que inclui essas frases de marketing como até agora, a sua tendência compulsiva de rever continuamente suas obras literárias o impediu de publicar os livros. Relemos um cartão adorável que Kafka escreveu para sua irmã mais nova, a letra da sua música favorita, “Now Farewall, You Little Alley”. Encontramos um Kafka sedutor e conquistador, o tipo de cara que deu à empregada da casa dos pais o presente de um guarda-chuva com doces pendurados nas pontas. Uma de suas amigas o apelidou de Frank. Aparentemente, um Kafka que era adorado por todos, com exceção de um homem, um médico chamado Ernst, que aparece neste livro vestido com um jaleco branco sobre um uniforme militar e segurando um sinistro dispositivo do século passado (n.12: “Único inimigo de Kafka”).

E há obras-primas nesse livro. Stach revela o texto completo de uma carta de 1917 de um leitor de Kafka, um tal de Dr. Siegfried Wolff, que se queixa de não conseguir entender o significado de A metamorfose e, o que é pior, toda sua grande família é igualmente complexada com a história, a ponto de olhá-lo como “o médico da família” e pede ao escritor uma explicação. “Só você pode me ajudar”, escreve ele a Kafka. “Você deve; porque você é o único que me meteu nessa enrascada”. Satch, consciente de que esta carta soa como uma piada de um dos amigos de Kafka, fez o trabalho braçal para descobrir quem era este Wolff e pode confirmar que, sim, ele existiu realmente.

Mesmo alguns amantes do escritor, que já podem saber sobre a maioria desses achados, terá sua primeira chance de ver reproduções fieis e transcrições igualmente das coisas e encontrar novas conclusões sobre a biografia do autor. Talvez você já saiba que Kafka, junto com seu amigo Max Brod, inventaram o conceito de guias de viagem para turistas. Mas, quantos de nós tiveram o prazer de ler o esboço integral de seis partes da sua proposta de livro para esta série? (Título: “No barato”, completo lema proto-Nike: “Apenas arrisque”). Os leitores familiarizados com O desaparecido ou Amerika, romance inacabado de Kafka que inclui uma descrição de uma ponte que liga Nova York a Boston, terão prazer encontrar essa nota “No barato” como rascunho: “Nenhuma geografia compreensível, apenas itinerários”.

Em Weimar: Franz Kafka à direita com Milena Jesenká, sua irmã Ottla, a prima Irma e Marenka, 1917.


Mas as joias desta coleção são as histórias semiacabadas de Kafka que são conhecidas apenas por estudiosos por não serem encontradas em obras diversas das já publicadas. O item n.61 que Stach intitula “Kafka, sonhos de uma vitória olímpica” é um dos indispensáveis aos fãs do escritor e de leitura um tanto obrigatória. A seguir um fragmento do referido texto:

“Convidados de honra desse banquete! É verdade que tenho estabelecido um recorde mundial, mas se vocês me perguntarem como eu consegui isso, não seria capaz de responder-lhe a altura de satisfazê-los. Você vê, eu realmente não posso nadar. Eu sempre quis aprender, mas nunca tinha encontrado a oportunidade. Então, como é que isso aconteceu de meu país me enviar para Olimpíada? Essa é exatamente uma pergunta que diz respeito a mim também”.

É uma questão que diz respeito a todos nós, ou que deveria, e Stach dá-lhe um lugar de destaque. Ele também usa esta peça para nos oferecer um olhar significativo sobre o processo criativo de Kafka. Stach aponta que na primeira versão desta história, Kafka identifica o narrador como o vencedor do evento de mil e quinhentos metros nos Jogos de Antuérpia – o cenário real dos Jogos Olímpicos de 1920. Mas, num segundo projeto, Kafka substituiu Antuérpia por X e omitiu qualquer menção aos mil e quinhentos metros. É uma pequena e significativa amostra de como ele refinava artisticamente a realidade pela literatura.  

Muitos destes noventa e nove achados podem de fato ajudar a “derrubar a versão estereotipada do neurótico torturado” como uma extensa quantidade de textos têm insistido em reforçar. Ainda que estejam aí a carta em que Kafka descreve uma angustiante “noite dos ratos”, por exemplo, e seu diário, escrito em código, lamentando que “s. [Sexo] me esmaga”.  Depois há o item n.96, sobre uma de suas notórias últimas vontades, a de queimar seu trabalho inédito (que sabemos que foi mais de um); Kafka gostava que houvesse poucos trabalhos publicados e também, ele próprio, destruiu muita coisa. Mas, além disso, esse trabalho de Stach nos mostra que Kafka foi mais que um torturado por suas neuroses. E como se quisesse provar que ele era o tipo de cara com quem você gostaria de sair para tomar uma cerveja, Stach cataloga a história de beber cerveja com Kafka. (Item n.9: “Kafka bebe cerveja”)

Este é um dos desafios da biografia de Kafka: a humanização de um escritor que não foi terrivelmente ligado a pontos de vista convencionalmente humanos. Kafka, afinal, é um escritor que desestabiliza completamente a linha entre o humano e o animal. Em sua biografia, Stach argumenta de maneira convincente a partir de influências significativas mas até então pouco exploradas, como a da Primeira Guerra Mundial; e revela que, é exatamente a aparência de literatura a-histórica, porque puramente animal-consciência o que faz a arte de Kafka ser estranhamente tão verdadeira. Situando Kafka na história pode ter a qualidade infeliz de quem explica uma piada: mesmo que não estrague o efeito, parece afetá-la de alguma maneira. Mas finda alcançando um traço emocional e, às vezes esclarecedora, como poderia ser para os leitores de Kafka entender o “real” mais verdadeiro Kafka, embora o de terno bonito e tudo provavelmente continuará sendo mantido assim como a crença de que o mais verdadeiro Kafka era o da mente que fechou a porta para o mundo e registrou os pensamentos como se um cão curioso.

Franz Kafka e a irmã Ottla.


A boa notícia para este tipo de leitor é que a voz do animal-humano que ouviu nas histórias de Kafka nunca foi muito longe de ser a própria voz de Kafka. Em relação aos ratos que o mantinham acordado certa noite, Kafka vê-los como “povos proletários oprimidos” (o protótipo, ao que parece, para as massas trabalhadoras de sua última história, “Josefina, a cantora”). E depois Stach encontra o n.55, a capa da uma edição de 1916 de O processo, que Kafka dedica para sua irmã, “a partir do rato do Palácio de Schönborn”. Os olhos de animais espreitam o dia-a-dia de Kafka, não apenas suas histórias. Não pode haver recuperação de Kafka, o homem, sem descobrir mais evidências de Kafka, a criatura.

E, então, qual a cor dos olhos da criatura? No achado n.13, um dos itens mais sugestivos em sua caixa de curiosidades, Stach apresenta as declarações de quinze testemunhas. Quatro pessoas descrevem os olhos de Kafka como “pretos”, quatro como “cinzas”, três como “azuis” e três como “castanhos”. No passaporte de Kafka está registrado como “preto azul-cinzento”. Eu pessoalmente estou inclinado a confiar no testemunho da namorada de Kafka, Dora. Ela os descreveu como “tímidos, castanhos”.

Mas há uma questão mais premente: o que exatamente está em jogo no quebra-cabeça da cor ambígua dos olhos de Kafka? Para um certo tipo de leitor, perguntas desse assunto que nos aproximamos parecem nos levar para mais perto a pessoa e assim para as origens das histórias publicadas; essas explorações permitem-nos reinserir as circunstâncias físicas que precederam até mesmo os primeiros rascunhos e participam nos momentos exatos de quando a vida começou a ser tornada arte. Este tipo de fãs literários, como Geoff Dyer escreveu uma vez acerca de D. H. Lawrence, desenvolve uma leitura para atrás em que “as obras acabadas servem como prólogo para anotações”. Tendo chegado ao fim da arte, esses leitores começam uma questão contrária: a partir do material publicado, do retorno aos manuscritos, às anotações, à caligrafia, aos livros e jornais que foram leituras do escritor, às listas de compras que fez. E não para por aí. Ele pode ir mais longe, para o instante de pré-alfabetização, das relíquias como a mesa onde o escritor escreveu seus manuscritos, a escova de cabelo que usou antes de se sentar para escrever, as plantas que cresciam ao lado de sua casa de infância.

Em algum lugar ao longo do caminho, provavelmente o resultado vai cair um pouco na obsessão; aqueles que se entregam a esse tipo de leitura para trás podem ter chegado a acreditar que precisamos olhar nos olhos de Kafka. Mas, no fim, que o olhar é mal direcionado, o que realmente queremos é olhar com aqueles olhos, para compartilhar essa visão. Biografia funciona, como este volume um pouco estranho faz, quando nos aponta para frente de um novo, para a arte em si, e a partir daí dá-nos mais algumas maneiras com as quais possamos vê-la por nós mesmos.

Ligações a esta post:

* Este texto é uma versão livre para "What color were Kafka's eyes?" publicado no The New York.

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