Pablo Neruda: o que não dá mais para ocultar


Que umas memórias publicadas postumamente recebam por título Confesso que vivi pode soar uma brincadeira involuntária; a declaração íntima de um fantasma. Mas, a autobiografia em que o Prêmio Nobel chileno Pablo Neruda reviu, com a respiração de sua prosa poética, seus quase setenta anos, volta novamente às livrarias de maneira rejuvenescida. E traz muito do que ficou por dizer. Falamos sobre a reedição publicada entre os leitores de língua espanhola muito recentemente que apresenta dezoito textos inéditos, fotografias, manuscritos e um apêndice com três conferências ministradas na Universidade do Chile. Tratam-se de passagens ausentes na primeira edição que veio a lume ainda sob a ditadura do sanguinolento Augusto Pinochet, seis meses depois da morte do autor de Canto geral

A obra ficou por longo tempo entre as listas dos mais vendidos desde sua aparição e logo se tornou um Best-Seller. Nas suas caudalosas páginas, mostrava que, efetivamente, Neruda havia tido uma vida intensa e nômade ou, melhor dizendo, que o artista e diplomático havia vivido múltiplas vidas num só corpo, que conheceu (e cantou com prazer) a paixão amorosa mas também o compromisso político atravessando tempos convulsos, como os da Guerra Civil espanhola ou a queda e a morte de seu amigo e camarada Salvador Allende. 

A nova edição da sua autobiografia ganhou nova vida graças ao diretor da biblioteca da Fundação Pablo Neruda, Darío Oses, quem enquanto realizava pesquisas no espólio do escritor encontrou um caderno que reunia anotações sobre temas que o poeta gostaria de incorporar em suas memórias; a partir disso, também encontrou duas pastas com escritos autobiográficos nunca publicados. São essas páginas que agora estão recuperadas. Nelas, Neruda debulha sua visão sobre a homossexualidade de seu amigo, o poeta Federico García Lorca, homenageia os russos Maiakóvski e Púshkin, ou narra linhas de seus vínculos com Rafael Albertí, León Felipe. 

O processo desta edição, segundo disse Oses para o jornal Clarín, começou há dois anos com um trabalho de minuciosa revisão e registro dos arquivos da Fundação. No material inédito encontrado, havia, entre outras coisas, uma série de poemas que foram publicados com o título de Teus pés toco na sombra. E os materiais autobiográficos agora, parte deles, em Confesso que vivi

Na busca, estava um texto sobre o político Gabriel González Videla, com uma anotação de Matilde Urrutia (última companheira e herdeira de Neruda) que indicava que o escrito havia sido perdido e que por isso não havia sido incluído na edição da década de 1970. É então que o pesquisador levanta a suspeita de que poderiam existir outros textos em situação parecida. “Encontramos capítulos que se encaixavam muito bem no texto original ou que completavam, expandiam ou aprofundavam algum relato ou algum tema”, aponta.  

Assim foi: o amante do mar e das carrancas de proa dos barcos – colecionador de mulheres – no texto inédito “El caballo de la talabartería” [O cavalo da selaria] relata, já adulto, seu regresso ao povoado de sua infância, Temuco, transformado pela passagem do tempo, onde só sobrevive o cavalo de madeira. Escreve: “Temuco , esta cidade do sul de minha pátria que agora volta a ver, significou toda a realidade e todo o mistério do mundo para minha longa infância”; “[...] só os olhos de vidro do grande cavalo voltaram a me fascinar. Olhavam-me com infinita tristeza, reconhecendo o menino que havia dado mais de uma vez a volta ao mundo e que agora voltava para saudá-lo”.

Neruda se emociona pela música de um grupo de araucanos: “Veio todo o povo ao estádio para escutar minha poesia”; “Os olhos se encheram de lágrimas enquanto seus velhos tambores de coro e suas flautas gigantescas soavam numa escala anterior toda a música”. 

Questionado sobre o valor dos materiais agora descobertos, Oses não duvida e ilustra com uma breve nota na qual Neruda diz: “Se me perguntam por minha poesia não saberia o que dizer. É melhor que perguntem à minha poesia quem sou eu”. 

Dentre os diversos assuntos que agora se acrescentam o que mais surpreende os leitores é a quantidade de anedotas e experiências pessoais do poeta e, claro, a amplitude da diversidade de gêneros com os quais o poeta engendra suas várias vidas: da narrativa cronológica dos acontecimentos, à crônica de viagem, das evocações da memória à relação epistolar com diversas personagens, além, é claro, da autobiografia propriamente dita. 

Uma das descobertas principais é o texto “El último amor del poeta Federico” [O último amor do poeta Federico] que amplia e muito o capítulo original dedicado ao poeta espanhol. Neruda teve dúvidas, no momento de prever a publicação de suas memórias – que deviam apresentar quando completasse 70 anos – de incluir as linhas em que se referia explicitamente sobre a homossexualidade do poeta espanhol.  

Indagou a Matilde se o público estaria preparado para assimilar a opção sexual do poeta granadino sem que sua figura artística sofresse prejuízo. “Foram muitas as vezes que conversamos com Pablo se devia incluí-lo ou não. Disse-me textualmente: ‘O público está suficiente livre de preconceitos para admitir a homossexualidade de Federico sem atingir seu prestígio?’ Era essa sua dúvida. Eu também duvidei e não incluí nas memórias. Aqui deixo, creio que eu não tenho direito de desfazê-lo”, destaca a nota de Urrutia. 

A época certamente o inclinava também a pensar que o público não estaria preparado. Mas o poeta sublinha, desbaratando todo argumento sexual ao falar sobre fuzilamento: “O fascismo espanhol, como o alemão e o italiano, foram especiais exterminadores de intelectuais”,  Para ele, havia desumanidade o encobrimento do tema: “Há uma maneira obscura de tratar a homossexualidade de Federico García Lorca, tema que me parece inevitável. E se dá à maneira espanhola e latino-americana: esconder cuidadosamente esta inclinação pessoal de Federico”. Na dúvida, como assinala a nota da companheira de Neruda, o texto não foi incluído na primeira edição organizada por ela e pelo escritor Miguel Otero Silva. 

A admiração de Neruda pelo poeta espanhol é patente no texto: “Todas as luzes da inteligência o vestiam de uma maneira tão esplêndida que brilhava como pedra preciosa. Seu rosto sério e moreno não tinha nada de afeminado, sua sedução era natural e intelectual”; “No círculo de amigos de Federico, que frequentei durante os anos de minha vida na Espanha, quase não havia homossexuais. [...] Mais tarde, numa conversa nossa, esteve sempre acompanhado de rapagão muito forte, viril e bem apessoado. Pouco a pouco fui me dando conta de que esse rapaz era o persistente amor de Federico – seu último amor. Chamava-se Rafael Rapín”.    

Os dois poetas se conheceram em Buenos Aires, quando Neruda foi viver para trabalhar na embaixada do Chile. Era 1933. Federico García Lorca estreava Bodas de sangue no Teatro Maipo no verão desse ano. Foi uma amizade à primeira vista que fatalmente se interrompeu pelo assassinato de Lorca em agosto de 1936.  

A nova edição das memórias de Neruda acrescenta quase uma centena de páginas. E, além de todas as novidades já aqui apresentadas, contam-se ainda notas sobre o sul do Chile, a religião e rixas literárias, como a com o poeta chileno Pablo de Rokha, inscrito na categoria dos “inimigos literários” e descrito pelo poeta como vigarista, cínico, sem escrúpulos e chantagista. Rokha chegou a escrever um livro inteiro contra Neruda – Neruda y yo [Neruda e eu] – um recorde nas rivalidades entre escritores. Dentre as acusações de seu contemporâneo estão as de plágio: “Toda sua obra é plágio total, até os títulos: de Canto secular, de Horácio ele ‘assimila’ Canto geral, do poeta Luis Enrique Ramponi rouba Macchu-Picchu plagiando-a; copia Tagore e Carlos Sabat Ercasty”; e a lista segue com Baudelaire, Rimbaud etc. 

Tantos anos depois o poeta mando-nos notícias. E sempre no tom rompante e humanista. É a sina de toda grande voz.

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>>> Leia mais sobre Teus pés toco na sombra

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