Amor de Gabriela

Por Rafael Kafka



Em tempos nos quais homens falarem de mulheres empoderadas soa mais como uma forma de conquista do que de militância sincera, a literatura nos mostra ser possível se sentir parte do gênero masculino e ainda assim ter sensibilidade suficiente para se expressar as idiossincrasias de pessoas do outro gênero. Isso se dá por uma soma de fatores de consciência que levam o indivíduo a ter plena noção das dimensões humanas que o rodeiam, indo além das facetas impostas pela sociedade patriarcal na qual reside.

Nesse sentido, uma curiosa coincidência: comecei a ler tardiamente as obras de Jorge Amado motivado pelos diários de José Saramago – outro exímio escritor a falar da condição feminina – nos quais o escritor português fala com profundo carinho do amigo além-mar. Decidi-me então a pegar o livro mais famoso do escritor, uma forma segura de entrar no universo de escrita de determinado indivíduo e fiquei bastante contente com o que me deparei.

Na verdade, por mais que a bela Gabriela dê o nome à obra, o enredo não gira em torno da mesma de forma tão plena quanto possamos imaginar. O narrador de Amado, usando uma fala fluida e olhar documental fala de diversas situações típicas da cidade de Ilhéus e de muitas outras que existem neste país de dimensões continentais. O começo da história por si só é bastante elucidativo: um coronel mata a esposa pelo adultério bem conhecido da mesma com um dentista da cidade.

Parece que esse mesmo coronel na adaptação recentemente feita da obra de Amado tem um imenso destaque no suporte televisivo, mas aqui ele passa quase despercebido, apesar de seu ato ser bastante citado ao longo da história. O coronel Jesuíno representa a lei de Ilhéus, uma lei que na verdade ainda existe demais pelas bandas de qualquer cidade do mundo ocidental: um homem traído deve honrar a si mesmo e matar a mulher que o desgraçou. As primeiras páginas do livro são dedicadas ao debate incessante, quase polifônico, dos motivos que levaram Jesuíno a cometer o crime.

Numa roda de homens no bar do árabe Nacib, a maioria defende que o coronel estava certo em seu gesto de revolta, pois adultério é algo muito sério. Não importa aqui se os mesmos todas as noites frequentam bordeis e mulheres de vida “fácil”, o que importa é que a cidade vive um regime de respeito máximo ao homem. Gabriela assim surge, após muitos e interessantes preâmbulos, como uma figura de dimensões ontológicas bastante profundas. O seu sorriso e jeito infantil é o comportamento de quem não se adapta ao universo social de Ilhéus.

Encontrada por Nacib em uma espécie de campo de concentração, muito similar ao encontrado por nós na obra O quinze, de Rachel de Queiroz, Gabriela se torna mais do que a simples cozinheira do árabe, virando uma amante das mais intensas que agrada de todas as formas o seu patrão. Talvez, leitoras mais engajadas em problematizar trechos de textos isolados ou os textos si sem contexto algum podem ver aqui um reflexo de uma relação abusiva. Mas Gabriela é senhora de si. O sexo para ela é uma brincadeira, um desejo a ser realizado sem firulas, sem pudor. Deitando com Nacib deita-se com outros homens, pois para ela cada homem é uma fonte de prazer, uma brincadeira.

Por isso Gabriela não entende o motivo de se casar com o senhor e de ter de adaptar a uma série de exigências sociais após o tal casamento. O seu comportamento transcende as imposições sociais e isso causa furor e pânico em certas pessoas. Até mesmo o seu adultério é algo diferente do cometido por pessoas que conscientemente se envolvem em arranjos sociais como o casamento burguês e não são capazes de cumpri-los. Gabriela é um pássaro e por isso não pode ser presa em arranjos que a limitem. Mesmo sem o desbravar ontológico das personagens clariceana, vemos na moça cujo perfume exala cravo e canela a mesma profundidade feminista de uma mulher que foge aos padrões e cuja rebeldia é tão somente viver.

Isso dentro de um mundo patriarcal e coronelista ao extremo é um imenso elemento de resistência. Amado registra isso de um modo doce e leve ao mesmo tempo em que nos mostra os jogos de poder envolvendo o novato Mundinho Falcão com velhos coronéis como Ramiro, nada interessados em perder o poder conquistado na ponta da faca e da arma em punho. Falcão decide investir na resolução de antigo problema da cidade de Ilhéus: uma barra que impede a chega de navios grandes ao porto do município. Ao fazer isso, pretende de todas as formas angariar apoio político para assumir um cargo importante no parlamento nacional e assim angariar caminhos profundos dentro da política, como o resto de sua família.



Nesse sentido, o começo da obra com Jesuíno matando a esposa e o final dela com a sentença do julgamento do mesmo mostra uma outra coincidência que de certa forma conectam Saramago e Jorge Amado, além da doçura para com as mulheres e o amor que os levaram a duas graças como Zélia Gattai e Pilar del Río. Tal coincidência é que de verve marxista como amigo português, Amado trabalha em toda obra os ciclos de fatos que se conectam em suas pontas com o passar do tempo. O jogo de poder que existe em Ilhéus é uma mudança superficial. O Estado deixa de ser dominado pelos jogos de sangue, que ainda se fazem presente, mas ainda segue dominado por jogos de interesse. A quase morte de um líder político que muda de lado mostra bem este acontecimento, como se simbolicamente Jorge quisesse dizer que as coisas mudam, mesmo que de forma muito pequena, dando a impressão, porém, de terem voltado ao mesmo ponto de outrora.

A mudança aqui lembra um pouco o cupim que derruba a cadeira do ditador no famoso conto saramaguiano, mas não fica muito evidente se a obra de Amado é otimista em relação a tais mudanças. Como ela não tem o dever de ser didática, cumpre bem o objetivo de causar prazer estético com fatos os quais nos servem de provocação, ainda mais em deixando muitas lacunas para nós não termos como fugir desse provocar.

Gabriela também vive um ciclo: após o adultério, volta a ser companheira e cozinheira de Nacib, que após muito ódio e anulação de um casamento descobre não querer mais amar e fica muito feliz com os casos mantidos pela cidade, inclusive com a moça do cravo. Vendo seus negócios irem bem, encontra uma certa felicidade residente na paz do nada esperar de promessas contidas dentro do discurso burguês teológico do casamento e da sagrada família.

Nesse sentido, enquanto a cidade volta a um ciclo de jogo de interesses, agora com a figura de Mundinho ganhando força, Gabriela derruba a própria cadeira no jogo da sobrevivência e assume-se mulher livre e dona de si, vivendo uma sexualidade plena e feroz. Enquanto seu ambiente social se mostra cada vez mais escravo de si, algo sutilmente posto pelo narrador causando em leitores como eu o estranho incômodo de ver na obra as mesmas cenas de uma sociedade diariamente massacrada mas que segue a sorrir com medo, Gabriela rompe amarras simplesmente sendo o que é e ao final do romance encontra a mesma liberdade de outros tempos, agora sem mais o medo de ter de fugir da seca.

Assim, mais do que uma espécie de romance erótico que objetifica a mulher mulata, Gabriela, Cravo e Canela é uma obra libertária e questionadora, mas sem discurso eloquente, lacrador. A liberdade de ser de Gabriela é uma ruptura, uma forma de crítica implícita que leva seres como Nacib a reverem seus pontos de vista. Enquanto Gabriela vive em uma espécie de boemia simplória, os jogos de poder e de amor ao seu lado seguem em meio a discursos hipócritas e infelizes. Enquanto a mulher se liberta, a sociedade se fecha ainda mais em si mesma. Gabriela é feliz porque escolheu viver plenamente o caminho do ter, enquanto lá fora o aparato supraestrutural, as armas e os discursos garantem tudo menos o ser e apenas ratificam os velhos jogos de poder que marcam nossa sociedade.

Ligações a esta post:
>>> Dados sobre Grabriela

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Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos  (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.

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