Os noivos, de Alessandro Manzoni

Por Pedro Fernandes



O romance Os noivos forma, juntamente com outros livros do seu século, parte na extensa quantidade de obras que contribuíram para a consolidação desta forma narrativa. Esta afirmativa considera uma estirpe nascida nos anos de 1600 com obras como Dom Quixote, a grande novela de Cervantes que para alguns inaugura uma forma moderna de narrar, As aventuras de Tom Jones, de Henry Fielding, ou Moll Flanders, de Daniel Defoe. Isto é, integra o rol dos chamados romances realistas, estética que depois terá se tornado escola, e de pretensa forma superada à forma ainda em alta na tradição da forma romanesca.

Para a Itália, este romance assume ainda outro papel, o de ter sido aquilo que as obras acima citadas e que o antecederam foram: um precursor da forma moderna de narrar. O que surpreenderá – e nem tanto se nele o leitor entrar sabendo que entra num clássico – é sua atualidade em várias das opiniões destiladas pelo narrador. Esta figura é fabricada à maneira do recurso realista de oferecer ao leitor da maneira mais honesta possível um retrato bem elaborado acerca do que se conta. O narrador assume o papel de um intelectual herdeiro da antiga escolástica e, portanto, interessado em assuntos tão diversos que aparentemente não contariam uma relação harmoniosa: a objetividade fatual da história e a imaginação colorida da criatividade ficcional; as certezas das primeiras interpretações mais céticas de um mundo em trânsito para o potentado da razão e o fervor da religião com suas explicações construídas a partir da fé e da exegese cristã católica.

Assim, esse narrador se coloca com um intermediário que, depois de encontrar um manuscrito sobre uma história de há muitos séculos em relação ao tempo que ocupa na narrativa, se vê na incumbência de reescrever o texto. Eis então mais uma daquelas figuras do copista que, de tão em voga na literatura, será motivo de negação nas criações contemporâneas (figura como o Bartleby, de Herman Melville). Este é um trabalho que, apesar de ser tratado como uma maneira de se mostrar um bocado preocupado com o esquecimento ou o apagamento da história, permite-lhe a cômoda possibilidade de apagar situações, acrescentar outras, dizer de uma maneira o que está escrito de outra. Uma liberdade para o narrador que finda por convencer o leitor, pelo zelo desmesurado com que narra de ser possível de não negar a verdade da ficção. Eis 

Se por um lado, este gesto encomprida a história principal do romance de uma maneira tal que poderá levar o leitor mais apressado de nosso tempo a fazer grandes saltos na leitura, por outro, o contato com o detalhe da história, aquilo que o próprio narrador não se imiscui de fazer, que é revelar as fontes que dão sustentação ao que se narra, este contato coloca o leitor muito de perto com o interior das situações de um tempo cuja estrutura imaginativa já não responde mais por recriar se não fosse por esse zelo do narrador. Esta constatação é fundamental para se negar a opinião de que em romances como os Manzoni – e é possível lembrar muito claramente das tediosas descrições de Herman Melville sobre a caça às baleias em Moby Dick – tudo se resolve no drible dessas situações para recuperar apenas o fio da narrativa principal.

A alternativa para os apressados pode até funcionar, mas se perde, não apenas uma diversidade de aprendizagens sobre o pensamento do contexto parte e com o qual a obra se relaciona e, claro, o tal recurso não é, como julgam, uma mera estratégia do escritor em ganhar tempo sobre o desenrolar da trama. Por exemplo, no caso do romance de Manzoni, o momento em que se dá esse desvio de tópico, por assim dizer, quando o narrador mais se afasta do fio principal do enredo para tomar as vezes de um cronista e relatar os horrores da peste entre os anos de 1630 e 1640 que dizimou boa parte da Itália (e da Europa como um todo). Além do esclarecimento histórico sobre o pânico, o horror, a inoperância dos poderes, o levante ainda maior de um messianismo católico cristão, uma sorte diversa de ordens, medos e consolidação do poder cerceador – reflexões estas, aliás, que encontram um eco profundo com os modelos sociais contemporâneos presos à cegueira das ideologias religiosas – está a compreensão, eminentemente estruturante da narrativa (e o leitor comum não tem obrigação de saber disso, porque é um detalhe técnico) de que neste período o casal centro do romance atravessa um longo tempo de provação através do qual podem ter ciência sobre o amor que um nutre pelo outro. Vigora aqui a ideia de que o tempo é o carvalho para nossas decisões.

Se Os noivos é, na estrutura, realista, porque há uma preocupação reiterativa da narração com figuras e situações históricas, no tema, este é um romance de corte romântico. É a impossibilidade de realização do amor, inaugurada por uma aventura do acaso, em torno do qual todas as forças das personagens estão devotadas. Nesse ínterim, Manzoni se dedica a compor uma série de retratos, através das suas figuras ficcionais que são igualmente representativos dos modelos e estruturas sociais de seu tempo; assim, aparecem muito bem representadas o Clero, a Coroa e o povo, casta à qual o narrador demonstra toda simpatia desde sempre – seja na maneira como defende seu casal Renzo e Lucia, seja na maneira como detrata, mas sempre numa fina elegância o lado mais rude da humanidade. Há nessa escolha certas raízes do que séculos mais tarde vingará como um realismo social.

Além do povo, o narrador deita uma atenção demasiada para com os gestos mais nobres do cristianismo, aquele formado por certa matriz franciscana e que se afasta dos males recorrentes na instituição Igreja Católica: a avareza, a ambição, a corrupção, os interesses individuais, as relações ambíguas com as forças cerceadoras do poder. Constrói, para isso, uma personagem cujo perfil, marcado por uma covardia renitente, é símbolo marcante desse modelo e, como alternativa, ou crença inabalável no poder regenerador da fé, será capaz de fazer um trânsito entre essa condição deplorável do homem e uma condição mais humana. Dom Abbondio, é o padre da região de Lecco, que depois de receber ameaças de um grupo de farsantes e preso aos seus próprios interesses decide não mais celebrar a união entre Renzo e Lucia. É esta a ocasião que inaugura a errância para o herói e a coita para a heroína. Renzo incorpora traços do picaresco, quando se mostra perspicaz para se sobressair pela trapaça dos gestos que o enredam; do herói trágico, quando cai em desgraça por se portar como uma figura cuja natureza está predeterminada para lutar pelos de sua casta; e do herói romanesco, aquele que precisa cumprir uma diversidade de purgações até conseguir alcançar seu prêmio. Vai do ingênuo interesseiro ao corajoso, do lutador ao covarde.

Por sua vez, é uma tentativa, bem realizada, diga-se, de construir uma personagem que se afaste do modelo da figura idealizada. É claro que esse modelo não é de um todo destituído porque o narrador interessa-se em preservar uma antecipação do ideal cristão de salvação do homem antes de atravessar o curso da vida terrena, contradizendo em parte o dogma cristão ao qual tanto se mostra devoto. Entretanto, a diversidade de perfis que seu herói ocupa, alguns tão díspares ou ambíguos, favorecem à compreensão acerca das primeiras demonstrações de rupturas do romance com certo idealismo das suas criaturas ficcionais. O romance de Alessandro Manzoni encontra-se num limiar das constantes reinvenções assumidas pelos escritores desde a descoberta de uma maneira outra de compreender os trânsitos da vida humana. E se no final de toda tormenta reside a calmaria, um tom do novelesco de folhetim; o percurso é integralmente ocupado pelas pulsões contraditórias, quais as pulsões da existência.

Agora, o que dá fôlego ao romance não é o périplo da errância e do drama com desfecho já conhecido desde a entrada da narrativa, nem a maneira como a narrativa se porta para nas idas e vindas confirmar o zelo do narrador para com suas figuras. É a introdução de um enigma, um mal-entendido, coisa que muito provavelmente escape aos olhos do leitor, mas fundamental para que este leitor persista em acompanhar a trajetória das duas figuras principais da narrativa. Logo depois de quando dom Abbondio é tomado de assalto pelas ameaças contra a celebração do casamento de Renzo e Lucia começa a se aventar a hipótese de que os capangas sejam crias do jovem impetuoso dom Rodrigo, figura de grandes posses e irmanada com os mais altos poderes dominantes; a ele é atribuído um interesse pela jovem camponesa e por isso teria partido dele o impeditivo para a união. Entretanto, quando o frade Cristoforo assume as dores do casal e da família dos noivos e vai ter com o mandante, a conversa entre os dois sai – como aliás todas as conversas, mesmo que poucas, entre os da plebe e os do poder – meio atabalhoada. E é notório que só a partir de então, Rodrigo começa a deitar olhos para a jovem noiva e passará a desenvolver os impropérios sobre os quais não cabe citar nesta ocasião. Mas é esta desculpa que inaugura e sustenta a trama toda a tensão que a sustém: é a partir disso que se inaugura os ódios, os medos, as perseguições, a errância, os sofrimentos, enfim, toda diversidade de dramas comuns às histórias românticas que aqui se agrava um grau ainda mais acima devido a força desproporcional da peste. Assim, Os noivos é a história de um mal-entendido.

Mas, é fundamental sublinhar ainda, dentre as diversas coisas que seriam possíveis de sublinhar, três outras delas sobre esse romance de Manzoni, duas, aspectos estruturais e a terceira, uma retomada deste impasse entre bem e mal. Comecemos por falar sobre a linguagem, fundamental para marcar certo jogo de oposições que se estabelece na narrativa, como essa relação de forças negativas e positivas. Essa oposição aparece marcada numa cruzada de rebaixamento do ateísmo e do paganismo pela única fé, a cristã católica; tal condição é propiciada não apenas pelas ações desempenhadas pelas personagens e nem pelos seus perfis (o porte, as características e os comportamentos), mas por um vocabulário que tenta sobrepor uma cultura a outra, como se tarefa do romancista fosse também a de suplantar de uma vez por todas as bases fundamentais para a civilização ocidental, que é a cultura clássica, as explicações do mundo pelo mito e pelas forças do imaginário. Assim é que dom Rodrigo, o acusado de impedir o casório de Renzo e Lucia, toma essa atitude porque teria apostado, como um homem do mundo pagão, com o primo Attilio que ganharia a quebra de braço imposta e depois autoimposta. A linguagem inicial de Rodrigo está sempre marcada por chavões que recobram a crença não-cristã, como a invocação interjetiva assumida várias vezes na narrativa a divindades como Baco, Diana. Renzo, entretanto, com todo seu discurso de justiça, marcado por certo ódio a um poder cujas leis existem apenas como figuração ou em benefício dos legisladores, tem sempre e apenas olhos para os preceitos cristãos. Esse jogo de oposições se dá entre todas os indivíduos pertencentes a esses mundos de luz e sombra. Manzoni, apesar de devotar sua atenção para com os pobres não faz deles os únicos capazes da bondade – esta, aliás, se mostra tal como uma possibilidade inerente ao homem, tal como se uma forma de caráter.



Tão logo quando Renzo cai em andanças até ir viver numa propriedade de Milão com nome falso para escapar das encrencas que se envolve quando passa por esta cidade depois de desobedecer o roteiro preparado pelo frade Cristoforo numa tentativa de preservar a vida dos apaixonados a ingênua Lucia cairá nas mãos do malvado Inominado. A chegada da donzela ao castelo desse homem mal, favorece ao narrador as descrições interessadas em construir uma atmosfera de dor, medo e sofrimento no seu mais alto grau – embora a simpatia desmedida pela personagem o leve a maneirar nas tintas uma e outra vez. Entretanto, parecerá ao leitor a entrada num castelo de Drácula, ainda que esta personagem só venha aparecer na literatura pelo menos cinco décadas depois da última versão de Os noivos – foram três escritas entre 1821 e 1840 – o perfil implacável e cruel do Inominado e o lugar onde vive favorecem a comparação. A começar pelo nome do comendador que não é revelado para o leitor, tudo aí denota o estranho, o obscuro, o tenebroso: a personagem designada por velha que vive no castelo desde quando pequena, criada para receber mandos e obedecer, que se assemelha a uma bruxa, os espaços e a presença em cor e força dos ares do mal são alguns dos elementos que colocam este romance em relação outras estéticas literárias, como o gótica e o horror.

É evidente que o narrador tem aqui um elemento visceral para comprovar da maneira mais imprevisível do que são capazes as forças divinas e esta atmosfera, a depender do rumo como as coisas se realizam a partir da chegada de Lucia ao castelo, serão, mais tarde, outras. O que se passa com o Inominada a partir daí, entretanto, não é tão comovente como a maneira escolhida pelo narrador para ressaltar a bondade humana como o maior e o mais belo motivador da humanidade: durante as revoltas pela crise de abastecimento que atinge as regiões da Itália onde se desenvolvem as ações, o périplo dos desgarrados, as invasões de soldados alemães e a peste, nestes acontecimentos sobretudo, o narrador aproveita para destacar que nas adversidades somos tendenciosos a praticar o bem – ainda que isto não seja uma determinante definitiva para todos. Neste ponto, Os noivos assume, como é comum aos romances de seu tempo, um caráter pedagógico: o de educar os sentidos do leitor para a bondade, que esta é a única maneira de se conseguir uma paz capaz de suportar as dores do mundo. Embora haja muito de resignação nesse discurso, é notável que Manzoni está aqui embebido dos ideais do catolicismo cristão, aos quais se converteu um pouco tarde na sua vida.

Os noivos cobra do leitor paciência – não porque seja um romance difícil, nem extenso, mas para ler com os mesmos olhos desse narrador que se depara com a tarefa de não deixar perecer o manuscrito que tem em mãos, os olhos de reparar. É do zelo com o qual a narrativa trata de esclarecer todas os eventuais mal-entendidos que vem essa cobrança ao leitor. Mas nada é deixado de oferecer uma recompensa: o leitor estará em contato com uma parte interessante da história do povo italiano e europeu, com os lugares e situações (sobretudo as de injustiça e desmandos) que em nada se distancia do estágio pelo qual atravessamos no início deste século. Se isso por um lado isso é ruim porque nos dar a sensação de que a história da humanidade é um circuito circular do qual não conseguimos sair, por outro é uma maneira de se recobrar alguma força para tentar, talvez agora sem ajudas divinas, a resolver nossos problemas. Que viver é isto: lutar por outras condições capazes de nos fazer distantes da barbárie. O segredo para isso – e Manzoni nos ensina muito bem – está na capacidade da ação. Nada se moverá se existir apenas a força mas não a ação. E não é qualquer um que nos diz: é alguém que tem todos os direitos sobre nós porque viveu há muito antes nós, tal como aquele antigo narrador que dá fôlego ao narrador desse romance a não deixar perecer a história. “O crime é um patrão rígido e inflexível contra o qual só é forte quem se rebela inteiramente”.


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