Seis poemas de Konstantinos Kaváfis

Por Pedro Belo Clara
 
 
Konstantinos Kaváfis. Foto: Cavafy Archive Onassis Foundation


 
 
 
A CIDADE (1910)¹
 
Disseste: “Vou pra outra terra, vou pra outro mar.
Haverá por aí melhor cidade certamente.
Será malogro, está escrito, tudo o que aqui tente
e o meu coração — como morto — enterrado aqui jaz.
Por quanto tempo há-de ficar minh’alma em podre paz?
Pra todo o lado olhei, em todo o lado vi
ruínas negras dessa vida que vivi,
que tanto tempo aqui desperdicei a dissipar.”
 
Novo lugar não vais achar, nem achar novos mares.
A cidade vai-te seguir. Ruas vais percorrer,
serão as mesmas, e nos mesmos bairros hás-de viver,
nas mesmas casas ficará de neve o teu cabelo.
Hás-de ir ter sempre ao mesmo sítio, sem qualquer apelo.
Para outro lugar não há navio ou caminho
e estragares a vida tu neste caminho
é pois igual a nesse largo mundo a dissipares.
 
 
ÍTACA (1911)
 
Quando abalares, de ida para Ítaca,
Faz votos por que seja longa a viagem,
Cheia de aventuras, cheia de experiências.
E quanto aos Lestrigões, quando aos Ciclopes,
O irado Poséidon, não os temas,
Disso não verás nunca no caminho,
Se o teu pensar guardares alto, e uma nobre
Emoção tocar tua mente e corpo.
E nem os Lestrigões, nem os Ciclopes,
Nem o fero Poséidon hás-de ver,
Se dentro d’alma não os transportares,
Se não tos puder a alma à tua frente.
 
Faz votos por que seja longa a viagem.
As manhãs de Verão que sejam muitas
Em que o prazer te invada e a alegria
Ao entrares em portos nunca vistos;
Hás-de parar nas lojas dos fenícios
Para mercar os mais belos artigos:
Ébano, corais, âmbar, madrepérolas,
E sensuais perfumes de todas as sortes,
E quanto houver de aromas deleitosos;
Vai a muitas cidades do Egipto
Aprender e aprender com os doutores.
 
Ítaca guarda sempre em tua mente.
Hás-de lá chegar, é o teu destino.
Mas a viagem, não a apresses nunca.
Melhor será que muitos anos dure
E que já velho aportes à tua ilha
Rico do que ganhaste no caminho
Não esperando de Ítaca riquezas.
 
Ítaca te deu essa bela viagem.
Sem ela não te punhas a caminho.
Não tem, porém, mais nada para te dar.
 
E se a fores achar pobre, não te enganou.
Tão sábio te tornaste, tão experiente,
Que percebes enfim que significam Ítacas.
 
 
REIS ALEXANDRINOS (1912)
 
Os alexandrinos apinharam-se
para verem os filhos de Cleópatra,
Cesarião e seus irmãos menores,
Ptolomeu e Alexandre, que por vez primeira
em público se mostravam, no Ginásio,
para ali os proclamarem reis,
ante uma rútila parada militar.
 
Alexandre — proclamaram-no rei
da Arménia e da Média e dos partos.
E Ptolomeu — proclamaram-no rei
da Cilícia, da Síria e da Fenícia.
Cesarião, de pé, estava diante,
de seda rosa revestido,
no peito um ramo de jacintos,
seu cinturão, uma dupla fila de safiras e ametistas,
sujeitas suas sandálias com cintas
brancas, de rosadas pérolas recamadas.
Dignidade maior lhe deram que aos pequenos,
tendo-o proclamado Rei dos Reis.
 
Bem sabiam os alexandrinos
que aquilo eram palavras e teatro.
 
Mas o dia era cálido e poético,
o céu, era de um claro azul,
o Ginásio de Alexandria, uma
triunfante proeza da arte,
o luxo dos cortesãos, extraordinário.
 
Cesarião, todo graça e beleza
(filho de Cleópatra, sangue dos Lágidas);
corriam já os alexandrinos à festa,
entusiasmavam-se e aclamavam
em grego e em egípcio e alguns em hebreu,
fascinadas pelo formoso espectáculo —
só que, bem sabiam o que aquilo valia,
que vãs palavras eram esses reinos.
 
 
UMA NOITE (1915)
 
Era pobre e sórdida a alcova,
escondida por cima da equívoca taberna.
Da janela via-se a ruela
suja e estreita. De baixo
subiam as vozes de uns operários
que, jogando às cartas, matavam o tempo.
 
E ali, numa cama mísera e vulgar
possuí o corpo do amor, possuí os lábios
sensuais e rosados de embriaguez —
rosados de tanta embriaguez que, mesmo agora,
quando escrevo, passados tantos anos,
sozinho em casa, volto a embriagar-me.
 
 
DESDE AS NOVE (1918)
 
Doze e meia. Depressa passou o tempo
desde as nove quando acendi o candeeiro
e me sentei aqui. Estava sentado sem ler
e sem falar. Com quem havia de falar
sozinho nesta casa?
 
A imagem do meu corpo de jovem,
desde as nove quando acendi o candeeiro,
chegou e me encontrou, e me evocou
fechadas alcovas perfumadas
e o prazer já passado — que ousado prazer!
E diante dos olhos me pôs também
ruas que agora já não reconheço,
centros de diversão que agora estão fechados
e teatros e cafés que já se foram.
 
A imagem do meu corpo de jovem
veio e também me trouxe coisas tristes:
os lutos de família, despedidas;
sentimentos dos meus e sentimentos
tão pouco atendidos dos mortos.
 
Doze e meia. Como passou o tempo.
Doze e meia. Como passaram os anos.
 
 
DIAS DE 1908 (1932)
 
Naquele ano, ficou desempregado;
ia vivendo com o dinheiro arranjado
com as cartas e o gamão, ou emprestado.
 
Um emprego, três libras ao mês lhe of’receram
numa pequena papelaria.
Mas recusou-o, sem qualquer hesitação.
Não dava. Isso não era salário para ele,
rapaz bastante lido, vinte e cinco anos.
 
Uns dois ou três xelins ganhava ao dia, quando ganhava.
Com cartas e gamão que podia tirar o moço,
nos cafés aonde ia, cafés populares,
mesmo sendo ele esperto e escolhendo burros?
Quanto aos empréstimos ganhava o que ganhava.
Raramente sacava um táler, mais vezes meio,
de quando em vez, quedava-se por um xelim.
 
Durante uma semana ou mais por vezes,
se escapava às terríveis noites sem dormir,
ia ao mar refrescar-se com um banho matinal.
 
Sua roupa, uns trapos desgraçados.
Sempre vestia o mesmo fato, um fato
de cor canela muito descorada.
 
Ah, dias do Verão de mil novecentos e oito!
na vossa evocação, graciosamente,
falta o descolorido fato de canela.
 
A vossa evocação o preservou,
quando ele se despia e de si arrojava
a roupa indigna e a roupa interior remendada.
Pura beleza na nudez total: que maravilha.
Despenteados, os seus cabelos revoltos;
os seus membros um pouco bronzeados
na nudez matinal do banho, ali na praia.
 
______
 
Konstantinos Kaváfis nasceu na cidade de Alexandria, no actual Egipto, em abril de 1863.
 
Devido a contingências históricas, Kaváfis, sendo descendente de emigrantes das colónias helénicas do Médio Oriente, viu-se durante quase toda a sua vida no seio dum mundo que não era, por herança, o seu.
 
Depois da morte do pai, o poeta e a restante família emigraram para a Inglaterra, onde este iniciaria os seus estudos. Passados sete anos, e atravessando problemas financeiros, a família vê-se de novo em Alexandria. Após breves turbulências, que os forçaram a outras paragens, Kaváfis fixa-se de vez na cidade aos vinte e dois anos, trabalhando primeiro como jornalista e mais tarde como funcionário do Ministério das Obras Públicas do Egipto — o que lhe conferiu maior estabilidade financeira, depois dum início de vida pobre e pouco orientado.
 
Encontrando grandes dificuldades em pertencer a algo, fosse cultura, língua ou uma mera ideia de país, instalou-se muito cedo uma sensação de marginalidade que o acompanharia vida fora, transpondo-se sem grande surpresa para a sua poesia — também marcada por uma linha solitária e melancólica.
 
É certo que a origem grega lhe concedia um tremendo manancial de elementos culturais, diversas fontes de inspiração e até formação duma identidade mais sólida, nem que fosse somente pela sua riquíssima mitologia, mas os anos que o país passou sob o domínio Otomano estagnaram a natural evolução da sua herança literária. Mesmo nos primeiros anos da independência, em 1830, a Grécia via-se com um imenso vazio cultural em mãos, um grande período sem produção artística própria, suficientemente independente para que se pudesse considerar parte da identidade helénica — o que era devastador para um dos primeiros grandes impérios da Humanidade. Até em termos de língua oficial havia desacordo sobre qual a forma do grego vigente a seguir (o nosso poeta nunca tomou uma posição quando a este assunto, utilizando as duas versões do grego com frequência e intenção artística).
 
Adicionado ao contexto já exposto, vem o facto de Kaváfis ser um homossexual assumido, o que só o empurrava ainda mais para longe nessa margem em que já se sentia existir. Recorde-se que na época e lugar onde viveu a homossexualidade não só era condenável moralmente como punida como um crime. O poeta refere várias vezes em certos poemas a concretização de “actos ilícitos”, pelo que se vê como abertamente assumiu a verdade de si mesmo. Marginal e excêntrico, graças à aceitação do que era construiu uma temática com expressão renovada, que se manifestou sempre numa forma muita crua, quase animal, por vezes sórdida, resumida à realidade dos corpos, ao sabor e tentação irresistível da carne.

A esta nova Grécia chegariam movimentos de teor nacionalista, empenhados em resgatar a nobre herança do país. Naturalmente, o campo artístico não ficaria isento da influência. Instauram-se e logo se sucedem escolas literárias, acompanhando o percurso que o restante mundo ocidental fizera (e fazia): romantismo, parnasianismo, simbolismo… Algo que muito foi movido por força dos poetas e prosadores de então, ávidos em pegar na herança ocidental e dela fazer algo de grego. O vazio apressava-se assim a ser escrito.
 
Um dos grandes nomes desse tempo, na área da poesia, era Kóstis Palamás (1859 – 1943), poeta de altíssima craveira, louvado onde quer que estivesse ou parasse, autor de diversos poemas líricos e outros deveras longos, onde não faltava a cada vez mais frequente exaltação da nação grega. Demasiado político, talvez, ou somente um homem do seu tempo, perspicaz o suficiente para aproveitar os ensejos da nova história que se escrevia no país, foi quem publicamente afirmou que a poesia de Kaváfis não era digna de tal epíteto, resumia-se somente a… jornalismo. O nosso poeta marginal (retire-se a conotação negativa que geralmente se imiscua no adjectivo) respondia-lhe à altura, é um facto, acusando-o dum romantismo (ele próprio que, muito jovem, também se deixou levar pelas linhas do movimento) talvez retrógrado ou demasiado óbvio para ser verdadeiramente sentido.
 
É inegável que o percurso de Kaváfis na poesia é diametralmente oposto. Importa referir que além dessa constante sensação de marginalidade e dúbia identidade, Kaváfis levou uma existência modesta, acompanhada pelo teor da sua produção. A poesia da Kaváfis é totalmente avessa a nacionalismos, ao cantar de grandes feitos; não louva os heróis do passado nem sequer se coloca ao lado dos vencedores da História. O seu foco cai sobre os vencidos, os marginais, os esquecidos, os infelizes nas implacáveis mãos do destino — decerto à sua própria semelhança. Os seus poemas são íntimos, parecem escritos a meia-luz, valem-se tantas vezes de palavras banais e contam histórias quase sempre desafortunadas, exalando o perfume agridoce da solidão trespassada pela angustiosa melancolia — só obtendo um momentâneo alívio com a chegada do prazer.
 
Com ecos vívidos de Bizâncio, um passado de que, embora em névoa, Kaváfis muito se valia, a sua poesia abre os braços às gentes das mais distintas origens: gregas, sírias, judias. Alberga, integra e mantém-se simples, a roçar a prosa, eloquente sem se valer de grandes aventuras estilísticas.
 
Porém, não se a considere fácil. Desde logo pelo carácter de diálogo que encerra, pela frequência com que mergulha na História e resgata certos personagens. Quando assim se verifica, Kaváfis tem o requinte e a sapiência de utilizar discursos distintos, cada qual com a sua forma e estilo, como se realmente duas personagens conversassem entre si. Para cumprir essa intenção, ora utiliza rima ora a abandona de seguida, ora segue uma rigidez métrica bem orientada ou de pronto adopta o verso livre; tanto recorre a um estilo de poesia popular (decapentassílabo) ou a outro mais formal (o ritmo iâmbico, por exemplo). A riqueza de composição é notável, impossível de cumprir com rigor aquando da sua tradução, e eleva o seu autor a um patamar elevado, ao dos verdadeiros artífices da palavra. Afinal, não é fácil ser simples.
 
Será decerto o resultado das primeiras influências, pois sabe-se que Kaváfis experimentou o estilo parnasiano, célebre pela sua obsessão pela forma. Com o passar do tempo, porém, abandonaria os traços usuais desses poemas de juventude, logrando transformar a influência recebida num cariz distinto da sua própria voz, autêntica e a valer-se por si mesma. Ainda assim, uma certa obsessão na composição da poesia não cairia por terra com o passar do tempo: Kaváfis corrigia insistentemente os seus poemas, apurava e depurava, alisava, clareava, chegando-se a passar vários anos até um só ficar completo ou, pelo menos, perto dum qualquer ideal de definitivo.
 
Um pouco por tudo o que se referiu, dir-se-á que Kaváfis é um poeta difícil, sendo a simplicidade da sua poesia um mero disfarce. Note-se ainda como quase nunca as histórias resgatadas para os seus poemas, por vezes um misto de realidade e fantasia, se cingem a um sentido óbvio. Há constantemente uma suspeita de algo mais em estado oculto, uma insinuação para algo noutro campo, muitas vezes na vida diária e comum. É amplamente subjectiva e plena de dualidade; tanto reevoca episódios e personagens históricas e os seus fatídicos fins para alertar-se a si mesmo e às gentes do seu tempo, como parece querer transmitir uma noção de enorme assombro associada ao mundo, conforme se apresenta ao Homem, tão breve e pequeno perante um poder imenso, um farrapo amassado nas implacáveis engrenagens do Tempo.
 
O próprio Kaváfis considerava-se um “poeta-historiador”. E tal só adensa a certeza de como pode ser difícil lê-lo. Ao referir-se a eventos históricos com tamanha frequência, quase sempre relacionados com Bizâncio e o helenismo, ao retomá-los e encená-los, por vezes num modo bem próprio e livre, exige do seu leitor um conhecimento amplo e profundo das circunstâncias que os originaram e em que ocorreram, o que estará ao alcance de muito poucos.

O Tempo e a sua passagem é, portanto, um elemento central na obra do poeta grego, a par do erotismo de teor homossexual. Acreditava piamente que o registo do seu correr, com todas as peças que move, levando à repetição de eventos que só contam, a cada vez, com protagonistas novos, ajudava a revelar o sentido da vida humana e qual o seu destino último. Perante a grande incógnita da existência, foi essa a varanda sobre a qual se debruçou para indagar fundo na raiz das questões mais primordiais e inquietantes.  
 
No seu global, a obra, que se resume a pouco mais de cento e cinquenta poemas completos, não foi bem recebida na época em que se produziu. O próprio poeta nunca editou um livro em vida, e por decisão pessoal, apenas colectava os seus poemas em cadernos que distribuía, maioritariamente entre amigos dum ciclo próximo, e em certas revistas do género. No entanto, certamente graças à benemérita acção das amizades que nutriu, a obra foi resistindo ao esquecimento, chegando a difundir-se por meios mais ou menos obscuros. Cerca de uma geração depois, novos poetas descobriam e louvavam a imensa originalidade de Kaváfis, a sua voz fresca e veramente inovadora, considerando-o justamente um elemento central do modernismo grego.
 
No exacto dia do seu aniversário, em 1933, Konstantinos Kaváfis, o nome maior da poesia grega moderna, falece vítima de cancro da laringe.
 
Notas:
 
* Tradução do original por Manuel Resende em Konstantinos Kaváfis, 145 Poemas (FLOP, 2017).
 
1 Em relação a este poema, o seu tradutor para o português refere, em excerto, o seguinte escrito esboçado pelo autor em 1907:
 
“Acostumei-me a Alexandria e é muito provável que mesmo que fosse rico aqui ficasse. Mas, apesar disto, como ela me constrange. Que estorvo, que peso é uma pequena cidade — que falta de liberdade…
 
Ficaria aqui (e, pensando bem, não tenho certeza absoluta de que ficasse), porque é como uma terra-mãe, porque está associada com as recordações da minha vida.
 
No entanto, para um homem como eu — tão particular —, como é necessária uma grande cidade.”
 

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #599

É a Ales, de Jon Fosse

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #609

Boletim Letras 360º #608