Que fazemos com “Lolita”?

Por Laura Freixas



Medo e hostilidade: é a reação de muitos ante o movimento #Metoo, isto é, ante o feminismo aplicado à cultura. Criadores, intelectuais se mobilizam pela liberdade de criação; tem que a ideologia se imponha sobre a qualidade como critério máximo; e afirmam o direito da arte de representar o mal.

Este último argumento me parece o mais interessante e é nele em que vou me concentrar. Não podemos exigir, nos dizem quem assim pensa, romances, filmes, óperas que pintem um mundo mascarado, politicamente correto, com personagens positivistas e ações moralmente não reprováveis. A arte que assim se porta seria falsa. Tomemos, por exemplo (é de fato seu exemplo favorito) Lolita: a história de um homem de meia-idade, Humbert Humbert, que gosta de meninas. O mundo, nos dizem, está cheio de Humberts. Que ganharíamos censurando seu reflexo literário?

Aceito de imediato: tomemos Lolita. E o que primeiro vejo é uma história de violência exercida por um homem contra uma mulher. O curioso: quem defende a legitimidade de representar artisticamente o mal, nunca repara no detalhe de que o mal em questão só pode ser o dos poderosos (varões, ocidentais, brancos, de classe média ou alta) contra os subalternos (mulheres, colonizados, de outras raças ou pobres). Talvez se esses intelectuais tão preocupados pela liberdade da arte para mostrar a violência não pertencessem ao grupo dos potenciais artistas mas ao das potenciais vítimas o vissem tudo de outra maneira? Mas Deus me livre de ser tão mal interpretada. Sigamos com o argumento: é necessário que a arte fale do mal.

Certamente, estou de acordo. O mal existe e a arte deve refleti-lo. A questão é como. Comparemos, por exemplo, dois quadros que nos mostram a violência do homem contra uma mulher. No de Ticiano, O estupro de Lucrecia, um belo jovem, ricamente vestido, lança um punhal ante uma belíssima mulher, sugestivamente nua e adornada. É um quadro muito bonito, que evita o escabroso (não há sangue, nem violação explícita) e mostra uma constante da cultura patriarcal: a que consiste em estetizar, erotizar, edulcorar, a agressão masculina e o sofrimento feminino, desde os belos raptos, violações e suicídios mostrados em pintura e escultura (Dido, Lucrecia, as Sabinas), até o modelo semidesnuda com uma corda ao pescoço num desfile de David Delfín, passando pelas heroínas suicidas do belcanto e os simpáticos estupradores de Almodóvar. Muito diferente é Unos cuantos piquetitos de Frida Kahlo, em que um homem sorri satisfeito ante o cadáver nu (só com um sapato) de uma mulher. A fatalidade de seu sorriso, o banho de sangue, a incongruência do sapato, tudo provoca no espectador um calafrio que não suscita a obra de Ticiano.

Em seu romance, Nabokov nos apresenta a violação de Lolita como Ticiano a de Lucrecia em seu quadro. Que bela é Lolita, que erótica sua condição de indefesa! Que sedutor é Humbert! Como está apaixonado! Pobre, não resta remédio que se casar com a (insuportável) mãe de Lolita para estar próximo de sua amada e quando por fim a mãe morre ele rapta a menina e a estupra toda noite. É reprovável, claro, mas o pobre Humbert está apaixonado (Sim, já sei. Nabokov condenava Humbert. Mas aqui não analiso as opiniões do cidadão Nabokov, mas o romance, seja qual for a intenção consciente de seu autor). Até a Providência parece estar de seu lado: ele planeja matar a mãe de Lolita, mas não necessita sujar as mãos, pois o destino faz com que morra atropelada; é preso e julgado, mas um oportuno infarto o faz escapar da humilhação de uma condenação... Humbert é, enfim, um cavalheiro encantador, e quem se opõe aos seus desígnios, tentando proteger a menina, só se apresentam (se trata sempre de mulheres mais velhas) como personagens odiosas e ridículas. Ou não tentam proteger ninguém: em Lolita, as mulheres mais velhas, especialmente se têm algum poder, sempre são ridículas e odiosas. Outra marca da cultura patriarcal.

Lolita representa o mal, mas em nome da liberdade e da qualidade artística (ninguém nega que seja um grande romance), devemos abstermos-nos de criticá-lo, como nos pedem seus defensores? Ai, que pena, há um problema: o romance está escrito de tal maneira que consegue fazer com que esqueçamos que é mau violar meninas. Não é casual que tenha sido e  siga quase por unanimidade definida como “uma história de amor”. Recordemos que claramente, Lolita não deseja manter relações sexuais com esse homem de idade quadruplicada à sua e que foi o marido de sua mãe. Recordemos que ele a tem em seu poder (é seu tutor legal), a vigia, impede que peça ajuda e a submete à violência física. Recordemos que Lolita chora amargamente cada noite depois dos estupros. “Amor”?

Chegando a este ponto, não posso evitar formular uma pergunta que soará como provocação, mas me parece pertinente: os que defendem Lolita o fazem porque é uma obra de arte e apesar do que mostra e implicitamente justifica, a violação de uma menina, a redução do ser humano feminino à condição de objeto para o prazer masculino, a ridicularização e zombaria de qualquer mulher não submissa ou o fazem porque sua condição de obra de arte a sacraliza e nos proíbe portanto de criticar tudo o que disse anteriormente? (como pensa Lola López Mondéjar: vejam Cada noite, cada noite, seu interessante romance-ensaio sobre Lolita). Certamente, talvez não seja demais recordar (é este outro detalhe em que os defensores de Lolita raramente reparam) que o mundo está cheio não só de Humberts, mas de Lolitas: de meninas e mulheres maltratadas e violentadas. Que isto preocupe apenas a 1,8% dos espanhóis terá algo a ver com uma cultura, da qual Lolita não é mais que um exemplo, que banaliza essa violência. E que de 1,8 tenhamos passado a uns 4,6% (última enquete do CIS), algo terá a ver por sua vez com a campanha #Metoo.

Retomo a pergunta do título: que fazemos com Lolita? À luz do que tenho dito, se compreenderá minha conclusão: lê-lo, sim, porque é um grande romance. Mas também analisá-lo. Criticá-lo. Usá-lo para entender como o patriarcado manipula em seu favor, e para nossa desgraça, a cultura. Buscar alternativas: ler e dar outros textos que ao invés de reproduzir ad nauseam a versão patriarcal do mundo, nos ofereçam um novo ponto de vista, como faz Frida Kahlo. Qualquer coisa, enfim, menos sacralizá-la.


Comentários

Jobim, Jr. disse…
Sou a favor de "prefácios antropológicos" em livros e filmes antigos. Introduções explicativas sobre a cultura e o momento social de cada obra. Imagine assistir a um banguebangue de John Ford com seu filho e ter que explicar por que os mocinhos assassinam índios.

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