Nadja, de André Breton



Por Pedro Fernandes

André Breton. Foto: Gisèle Freund


Nadja parece que foi escrito em 1927. A probabilidade contraria a afirmativa recorrente na história literária que registra o ano seguinte como a data verdadeira da existência desse livro se justifica pela voz do próprio autor. Não é o caso de uma afirmativa sobre, mas algumas das notas acrescentadas ao texto primeiro trazem a data de 1962; além disso, ele diz no texto acrescido depois de concluir uma revisão do romance que o retoque do material se dá trinta e cinco anos depois. Sim, a obra foi publicada em 1928; a versão revisada, em 1964. Um ano a mais ou a menos, a incongruência não será nem a primeira nem a única de uma obra literária. Mas, em se tratando da vanguarda a qual se filia, esse tratamento não deixa de fornecer algo de interessante. Suspensa a possibilidade autêntica do registro factual do seu aparecimento, o livro se apresenta, qual a história que relata, enquanto um objeto autônomo ou um acontecimento casual, uma irrupção aleatória na tessitura do tempo. Suscita perguntar quando nasce um livro, se na primeira consolidação de uma ideia, isto é, na primeira versão, ou se apenas quando adquire a independência do seu criador. Ou ainda se o desenvolvimento da ideia não desempenha já uma autonomia em relação ao seu autor.

Se as possibilidades de pergunta são muitas, as respostas não são poucas. Breton no texto acrescentado em forma prefácio para a versão revista de Nadja simpatiza com o entendimento segundo o qual “publicar qualquer espécie de livro” deve se classificar “na categoria das vaidades”. Para os surrealistas, o livro é um objeto do acaso, como qualquer ato criador. Mas, o livro que mais tarde será tomado como o mais importante do surrealismo na Europa contradiz esse preceito. É que, ao se permitir a revisão perde-se a possível autonomia original do objeto. E Breton sabe disso porque não deixa de encontrar uma justificativa para resolver essa contradição: “Se é inevitável que a tentativa de retocar à distância a expressão de um estado emocional sem que se possa revivê-lo no presente, resulte em dissonância e frustração (já o vimos bastante em Valéry, quando um insaciável anseio de rigor o levou a rever seus ‘versos antigos’), talvez não seja interdito querer obter um pouco mais de adequação de termos e também de fluidez”, registra o escritor. “Talvez convenha de modo especial a Nadja, em razão de dois principais imperativos ‘antiliterários’ aos quais esta obra obedece: assim como a abundante ilustração fotográfica, que objetiva eliminar qualquer descrição – acusada de inanição no Manifesto do surrealismo –, o tom adotado para a narrativa, que calca no da observação médica, principalmente neuropsiquiátrica, em que a tendência é registrar tudo o que o exame e o interrogatório podem fornecer, sem a mínima preocupação com o estilo.”

Breton é sagaz. Se, por um lado trata de destituir os limites entre a obra e o romance, porque Nadja se constitui de uma proposital interferência entre os limites do factual e do ficcional, recupera esses mesmos limites para dizer que o automatismo, o estágio puro de manifestação do acontecimento não foi alterado e que o leitor deve observá-lo no estamento do relato e não no da obra. Se não engana, a justificativa convence: a narrativa de Nadja é pura e simples irrupção do acaso, ainda que a relação constituída entre o narrador e essa personagem se mantenha ao custo de uma repetição planejada. O interessante é como o tratamento do acontecimento enquanto irrupção conduz o tempo para as subjacências. Ainda que o narrador oriente os próximos encontros com sua musa, depois do primeiro encontro nos arredores da Ópera de Paris, ela, involuntariamente, tudo determina, embora o narrador organize as idas e vindas com Nadja em forma de um registro diarístico, as datas pouco ou nada convêm no entendimento da narrativa, que continua a ser uma colagem de situações que resumem um acontecimento cujo material terá deixado suas influências na vida do autor.

O Manifesto do surrealismo fora publicado por André Breton em 1924 e Nadja está, portanto, a pouca distância desse acontecimento e é, por isso, uma das primeiras expressões dessa vanguarda. Pode-se dizer que o romance saiu da mesma forja e possivelmente por isso se preocupe em evidenciar com tanta veemência os nomes que constituíram a herança surrealista, seja na literatura, seja nas artes plásticas, ou a contínua louvação para o poético, o involuntário, o imaginário e o ilógico. Guillaume Apollinaire, por exemplo, o nome citado como patrono do surrealismo, não é apenas uma referência circunstancial em Nadja; seu sopro se imiscui ao espírito da personagem, uma vez que muito de suas volições criativas são claramente marcadas pela força dos caligramas e na tentativa de fabricação de uma imagem autêntica ao imaginário desse novo século. Se formos examinar um a um os predicados suscitados pelo Manifesto não deixaríamos de observar que muito anterior à revisão, o romance foi propositalmente construído de frente para a cartilha, incluindo, a mais soberba das contradições do movimento: a negação da atitude realista, repudiada no Manifesto como fruto da mediocridade por reduzir o desconhecido ao conhecido, o ilógico à lógica.

A contradição da objeção ao realismo se apresenta em várias situações de Nadja; ora é a organização cronológica do tempo ainda que seja para evidenciar a força maior do acaso enquanto força regente da existência, ora na tentativa de captar o real em sua dimensão mais pura quando integra a fotografia ao texto verbal dizendo-se, segundo o autor, substituta da descrição, ora ainda na tentativa de significar o incognoscível pelo desmantelamento da representação enquanto cópia. Neste último, o que se pratica de diferente é enfrentar o ilógico com as limitações que se oferecem para o autor: a reprodução do desenho e da pintura de cariz surrealista, a fusão da ordem da prosa pela descontinuidade da poesia. Mas, note-se, que a intenção é ainda a mesma nascida com a arte e levada ao seu limite com a atitude realista de apreensão do mundo pelo anteparo da descrição e os subterfúgios da História, estes de feições puramente românticas.

Bom, a esta altura, com todas as variadas possibilidades de representação que se apresentaram de 1924 para cá resta admirar esse pequeno instante de nossa aventura pelo fascinante exercício de captura do mundo. E o contraditório de todos os movimentos que negaram o potentado do realismo foi o de não se compreenderem muitas vezes enquanto herdeiros ou releituras dos mesmos fundamentos e que a alternativa mais vivaz da representação é a que se mostra enquanto síntese entre o factual e casual, o histórico e o imaginativo, o lógico e o ilógico. Olhando para a experiência de André Breton com o romance, sua tentativa de desautomatização da narrativa, é o que se pratica e, talvez, contenha aqui uma resposta sobre o valor do surrealismo no contínuo trabalho de representar. O autor justifica a intervenção da imagem como substituição do tratamento descritivo, mas não é: a descrição comparece e, por vezes, a imagem se posiciona como um corroborativo, uma justificativa para o descrito; noutras ocasiões, a fotografia é puramente um artefato ilustrativo, sobretudo aquelas que reproduzem a imagem das figuras históricas referidas na narrativa, Paul Éluard, Robert Desnos, Blanche Derval ou o próprio André Breton. Isto é, a imagem é um elemento desarranjador do discurso verbal; efeito casual, impele o leitor ora para dentro ora para fora do que se conta, obrigando-o ao trabalho de rever e de reler o que se narra. Mas, toda sua função se resume naquele ideal clássico, que, por muito negado se executa tão vivamente: fazer ser o que se conta uma verdade.



Mas Nadja, como dizíamos, foi concebida à imagem e semelhança do cariz surrealista. Há quem negue e tenha por essa personagem apenas a manifestação daquele contexto em que a psiquê se abria como outro mundo, maior e mais rico em possíveis que este deserto do real. A interpretação não é má, mas dissociar a personagem do seu lugar de concepção parece forçar um pouco os limites dos sentidos do texto ou ainda as relações que a vanguarda manteve com o momento criativo por que passávamos. Aparecida ao acaso, as situações que Nadja desenvolve com o seu admirador obedecem às mesmas leis do surrealismo e estas, claro, estão influenciadas por esse contexto de descobertas da psiquê.

Há várias expressões possíveis para essa personagem que alguns julgam-na inapreensível, mas a que parece melhor defini-la se manifesta por sua própria boca a altura da narrativa: “Eu sou a alma errante”. A definição é significativa não apenas porque define tão bem o espírito e a figura Nadja; irrupção e ela é ao mesmo tempo dorsal do romance. É uma resposta que afeta inclusive os sentidos do próprio interessado na pergunta; a partir dali, o narrador se compreenderá por e o que busca: constituir uma resposta para a pergunta com a qual todos nós nos confrontamos e que abre a narrativa de Nadja: “Quem sou eu?” Percebam que seguir esse itinerário é ler este romance como nossa impossibilidade de atingir o âmago dessa resposta. E não porque ela não exista, mas porque sua existência integra o plano do inapreensível. Escapa toda vez que acreditamos agarrá-la com as mãos.

Note: a personagem não se apresenta como uma mas como a alma errante. Dessa maneira ela não se coloca como mais uma ou apenas como certa alma errante; à medida que se reforça uma individualidade se reforça sua universalidade. É uma apresentação particularmente interessante porque se para o leitor Nadja é a encarnação de um mistério ou do sujeito casual que infere e modifica o curso de nossas existências diariamente, é para o seu criador um sopro capaz de possibilitar uma reflexão sobre si e sobre o outro; mais adiante, nós e o autor,  percebem-na enquanto força/ existência da própria narrativa. Assim é que a designação de musa solta noutra passagem deste texto foi proposital: Nadja se converte na amante possível, apenas estabelecida no limite do que a consciência responde pelo erótico, visto que nunca se realiza e reside justamente nesse princípio seu estatuto de presença que anima a criação, tal como se demonstra vivamente no final da narrativa.

Se voltarmos ainda à expressão-síntese alma errante notamos que nela se encarna uma condição irrestrita de liberdade. Ela própria, a personagem, se mostra odiar a repetição e a servidão dos homens. Chegada a Paris por uma decisão radicalmente individual, vive pelas ruas como uma transeunte, une passante, repousa de hóspede num hotel (mais tarde, saberá o narrador, é transferida para um manicômio), não guarda apego a nada material. Sobre ela nada se mostra validado pela certeza – nem mesmo o nome com que se apresenta e que diz variá-lo sucessivamente nas cartas que escreve para sua mãe ou ainda as variações assumidas pelo próprio narrador que retoma noutras de suas obras situações das vividas com Nadja designadas como outras personagens, como é o caso de Helene em Peixe solúvel; segundo a personagem, reconhece-se para o narrador como Nadja “porque em russo é o começo da palavra esperança e porque é só o começo dela”. Mas, por que apenas o começo da esperança? É notável que a liberdade, em sua dimensão total, é tão somente uma utopia. Nunca a alcançamos e sempre a perdemos quando em vias de alcançá-la. Qual a compreensão de quem somos, a musa, a ideia, a liberdade é o que nos escapa; é o que escapa ao narrador de Nadja.

A prisão de Nadja no manicômio não é puro escape; é demonstrativo de que a liberdade em sua plenitude é impossibilidade, algo que se reitera pela associação desenvolvida pelo narrador com os episódios recorrentes na história com todos aqueles que foram vivificados pelo espírito de Nadja: Sade, Nietzsche, Baudelaire. A censura, a prisão e a instituição de saúde mental existem enquanto instrumentos de fabricação do anormal, de sujeitos lançados para margem como autores da desordem e ameaça dos princípios sociais. Contra isso, o narrador de Nadja não deixa de oferecer ao leitor certo libelo em favor dos marginais, loucos, anormais, imorais – porque neles, qual em Nadja, repousam a mobilidade das coisas e, consequentemente, a renovação da existência.

Enquanto espírito, Nadja é anterior a ela própria. Antes de acontecê-la para o seu narrador, é motivo de suas buscas e a ele lhe aparece em feições variadas depois consumadas em Nadja: uma mulher bonita e inominada em Nantes, a mulher nua que vaga pelas galerias do lado do Electric-Palace, a mulher que aparece na cena de As desequilibradas interpretada pela atriz Blanche Derval, a moça desconhecida com quem se encontra em Saint-Ouen. Anterior e se prolonga: seja na repetição noutras ocasiões da obra de Breton, seja na integração da ordem daquelas personagens que o leitor carrega consigo, seja enquanto mito.

A indeterminação dessa figura inventada por André Breton repousa nos mesmos limites do grande (e impossível) buquê final descrito por Balzac em O lírio do vale. Na arguta leitura dessa novela, Leyla Perrone-Moisés¹ reanima a constatação da crítica mais cética que aponta as incongruências entre os registros florais do escritor francês e sua não-correspondência com a região de onde as flores são colhidas: o buquê, conclui a crítica, só se realiza enquanto ficção, esta verdade outra da realidade. Assim é Nadja. Por mais que se admita sua existência fora do romance e na vida pessoal de André Breton², existe, como a identidade, a liberdade, a ideia, a originalidade, apenas enquanto possibilidade.

Voltemos mais uma vez ao papel de musa exercido por Nadja. Como a musa, Nadja é uma ideia. O autor assim a reconhece e a expressão adotada na última parte do romance que funciona como se um posfácio à narrativa reafirma isso; em modo de dedicatória, a um tu que se manifesta inominado, mas sugerido como a personagem se lembrarmos do diálogo que narrador e personagem mantêm sobre o trabalho daquele de sistematizar as situações vividas entre eles em livro, assim se manifesta: “Foi essa história que, eu também obedeci ao desejo de te contar, embora mal te conhecesse, a ti que agora não podes mais lembrar, mas que, tendo sabido, como que por acaso, do princípio deste livro, vieste intervir de maneira tão oportuna, violenta e eficaz junto a mim, com certeza para me lembrar que eu o queria ‘escancarado’ como uma porta, e que por essa porta eu só veria entrar a ti. Entrar ou sair, senão a ti.” O registro é caviloso. Antes dele, o narrador registra, em tom de anedota, um episódio escutado de alguém sobre um homem que se diz esquecido de si mesmo e que pede ao recepcionista do hotel onde se hospeda para sempre lembrá-lo nome e quarto; o recepcionista, aparentemente senhor da memória, reencontra o mesmo homem pouco tempo depois na recepção e não o recorda: o homem acabara de saltar pela janela do quarto e voltava agora semidesfigurado para a recepção. Assim, o essa história do excerto acima pode até se confundir com a história de Nadja, mas é a trágica anedota a que se refere. Esta, por sua, vez, testemunha o papel da personagem recobrada na história principal do romance: toda musa é, depois dos alvores românticos que materializou a entidade mítica na mulher impossível, esse desmemoriado que se atira pela janela porque já incapaz de testemunhar sobre si. Mas, o tu se ora pode se confundir com o próprio leitor, é Nadja. “Tu, que, para todos aqueles que me ouvem, não deves ser uma entidade, mas uma mulher; tu, que não passas de uma mulher, apesar de tudo o que em ti me levou e me leva a crer que seja a Quimera. Tu, que fazes admiravelmente tudo o que fazes, e cujas razões esplêndidas, sem confinar para mim com a sem razão, cintilam e caem mortalmente como os raios. Tu, a criatura mais viva, que só parece ter sido posta no meu caminho para que eu prove com todo o rigor a força de tudo o que não foi provado em ti. Tu, que só conheces o mal por ouvir dizer. Tu, é claro, idealmente bela. Tu, que tudo leva a romper do dia, e que por isso mesmo eu talvez jamais eu volte a ver...”.

E, como em toda louvação à musa o que dela resulta é uma elevação de quem louva: Nadja, enquanto musa, é o próprio autor; ele nela se reconhece: “Sem ti, o que eu faria desse amor, do talento que sempre reconheci em mim, em nome do qual não pude fazer menos que tentar alguns reconhecimentos aqui e ali? Eu me gabo de saber onde reside esse talento, quase sem saber no que consiste, e o considerava capaz de conciliar todos os outros grandes ardores.” Ao dizer que Nadja é Breton, queremos compreendê-la enquanto projeção de seus desejos, sobretudo aqueles não evidenciáveis pela presença, mas pela ausência. Por isso é que este romance obedece tão bem ao registro de questionamento da própria forma literária, porque radicaliza com o estatuto de totalidade do romanesco. Sua posição é romanesca, seu tom ensaístico. Autoexperimentação.

Nadja é, no fundo um diálogo psíquico do seu autor com ele próprio, aquilo que designa no texto de abertura de Nadja: “o tom adotado para a narrativa, que se calca no da observação médica, principalmente neuropsiquiátrica, em que a tendência é registrar tudo o que o exame e o interrogatório podem fornecer, sem a mínima preocupação com o estilo.” Por sua vez, sendo André Breton o projetista do surrealismo e Nadja sendo Breton, ela é toda encarnação do projeto surrealista. Se alguns não a leram assim é porque tentaram ver neste romance uma justificativa para o manifesto e não é. Nadja encarna as diretrizes do projeto na exposição das suas contradições, isto é, trabalhando o desnível entre o ideal e o real, o subjetivo e o objetivo, princípio, aliás determinante desses pares de categorias, apreendidas apenas enquanto – eis o retorno a um termo caro para toda a ficção – possibilidade.

Notas:

¹ Refiro-me a “Balzac e as flores da escrivaninha”, publicado em Flores da escrivaninha (São Paulo: Companhia das Letras, 1990).

² Cartas da época de escrita de Nadja provam que a personagem desse romance foi Léona Delcourt. Ela nasceu em 1902 nos arredores de Lille e viajou muito jovem para Paris, cidade onde trabalhou como balconista, dançarina e prostituta. O escritor e ela se encontram a 4 de outubro de 1926 e passam a se ver diariamente até o dia 13; depois disso, desenvolvem uma breve correspondência até sua internação em 1927; no mesmo ano é transferida para vários asilos, morrendo em 1941 no asilo de Bailleul.


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Perambulando pela Internet, em busca de literatura ou algo sobre, eis que encontro esse ensaio que li com gosto até ao final. Penso que um bom ensaio não deixa de ser um desdobramento da obra Uma lanterna, algo assim. Parabéns, Pedro!

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