Escrita instável para um tempo instável

Por Cruz Flores


Anne Carson. Foto: Lawrence Schwartzwald 



Em seu livro Asfixia, Franco Berardi fala da poesia como “a linguagem da não-intercambialidade”¹, o último reduto de uma aliança perdida entre signo e significado, onde o “dizer” e o “querer dizer” se sobrepõem por um momento, apenas enquanto a função do poema existe. E por isso, a poesia se torna o incompleto: os projetos duram mais que seus autores, os autores não conseguem realizar o que querem e, no final, apenas os leitores ficam diante de um amontoado de palavras.

Existe uma intensa vida no incompleto. Encontrar pedaços de textos esquecidos, relacionar-se com eles, imaginar o que existia antes, o que não será depois, é uma das experiências que mais guardo. Aproximar-me dos fragmentos de Hölderlin, por exemplo, e ver suas lacunas, os parênteses que estão no lugar de algo que o autor não conseguiu escrever, me dá uma sensação tanto de incapacidade como de ser livre: sou responsável, agora, por preencher esses espaços.

Escrevo isso pensando em Anne Carson. Como tradutora, suas aproximações a Safo parecem se concentrar precisamente naqueles não-ditos desgastados pelo tempo que, como uma brutal revisora de estilo, deixaram algumas palavras salpicadas na página, e em nós para resolvermos o que antes continham. Por exemplo, a sua leitura do fragmento 41 é: “for you beautiful ones my thought / is not changeable”. Expressão entrecortada e sem respaldo, dadas as condições do texto original, mas que ainda nos aproxima de uma certa beleza, permite observar as condições em que ocorre nossa relação com a linguagem poética: dois versos solitários, uma página em grego e outra em inglês, que flutuam sozinhos. A história do texto, assim como o caráter físico do livro, é tão importante quanto a escrita.

No trabalho literário de Carson, talvez devido à sua formação em filologia clássica e a sua vivência acadêmica, esse mesmo interesse transparece em como a apresentação afeta um texto. Em livros abertamente experimentais como Nox ou Float, a escrita é baseada no formato do livro: o primeiro é um longo acordeão onde aforismos, recortes de jornais e fotografias pessoais se juntam numa espécie de elegia construtivista, emanada de um poema de Catulo que a escritora se reapropria, à sua maneira particular, para lamentar a morte do irmão; Float, ao contrário da intimidade reconhecível em Nox, é uma antologia de textos separados em livrinhos individuais que podem ser lidos em qualquer ordem e são relacionados apenas pela mão de quem os escreveu, por suas obsessões.

A consciência do texto como objeto performativo que mostra nesses livros também se reflete em suas obras mais “tradicionais”. Penso em “The glass essay”, incluída em Glass, Irony, and God, um poema que ao mesmo tempo canta uma tragédia de amor e pensa em um ensaio sobre Emily Brontë, uma grande poeta do romantismo inglês paradoxalmente sepultada pela fama de seu único romance, ou nos Short Talks, textos que habitam a meio caminho entre o aforismo, o chiste e a iluminação poética, mas que nunca se tornam “completamente” uma coisa ou outra, e até parecem rejeitar a ideia de que qualquer discurso pode ser definitivo.

A incompletude, então, é um tema recorrente na obra de Carson. Especialista em um mundo milenar de deuses e destinos, transita nossa realidade de suspensão e incerteza com um olhar crítico, sempre atenta às estruturas que substituem nossas ações: navega entre elas, as executa, as questiona e, acima de tudo, as mistura. A sua escrita centáurica, sempre entre a prosa e o verso, entre a poesia e o ensaio, entre a academia e a literatura, faz-nos notar como os limites que temos tão impregnados culturalmente não passam de signos aleatórios, formas provisórias de dar sentido a um mundo sempre caótico.

Embora seja frequentemente chamada de “renovador” da linguagem poética, a canadense tem uma concepção de escrita que poderíamos até chamar de arcaica. Como um Lucrécio pós-moderno, ou como uma pré-socrática que viajou no tempo, ela se dedica a ensaiar o pensamento a partir da poesia como suporte que o liberta de laços lógicos e formais: para ela, a escrita lírica é um terreno em contínua transformação, que reúne estilos, linguagens e suportes para ter acesso àquela “hermenêutica infinita” sonhada por Berardi, àquele lugar onde podemos conciliar, pelo menos por um instante, o que dizemos com o que existe. Nesse sentido, a linhagem de Carson não só corresponde às tradições greco-latina e acadêmica, mas é possível relacioná-la ao modernismo de Wallace Stevens, Marianne Moore ou Hart Crane, com a experimentação formal da Escola de Nova York, e com o espírito arquivístico-documental de seus contemporâneos tão diversos como Carolyn Forché ou Kenneth Goldsmith.

Ao mesmo tempo, não podemos subestimar a importância de Carson para o cenário atual da literatura. Seria difícil imaginar, sem sua influência, a autores-chave para a atualidade da língua inglesa como Maggie Nelson, Tracy K. Smith ou Ocean Vuong, e também a criadores literários de outros contextos, como Verónica Gerber ou Alejandro Zambra. A desenvoltura com que relaciona gêneros e estilos em seus livros também se estende à interdisciplina: prova disso são suas peças conceituais em conjunto com Robert Currie, a encenação de seus textos de Ivo Van Hove e, recentemente, sua colaboração com o compositor David Lang e a escritora Claudia Rankine chamada The mile-long opera.

A obra erudita, aberta e inclassificável de Anne Carson mostra que a poesia não é apenas um modo de escrever, ou um subgênero literário esquecido, mas um espaço de relação entre linguagem e contingência, um espaço onde estão as possibilidades expressivas do ser humano. Eles se relacionam livremente, apesar dos embates de confusão e frieza que governam nosso tempo.

Nota da tradução
¹ A tradução deste livro cf. citada neste texto segue o título original em português, Asfixia: capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem (São Paulo: Ubu, 2020), mas os excertos citados são traduções a partir do original espanhol.

* Este texto é uma tradução livre de “Escrituras inestables para un tempo inestable”, publicado aqui, em Letras Libres.

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