Vinicius de Moraes, crítico de cinema


Por Afrânio Mendes Catani

Orson Welles e Vinicius de Moraes. A incursão do poeta pelo cinema começou pela crítica e depois avançou na concepção de adaptações de seus trabalhos.


“Meus amigos se chamavam Mário e Quincas, eram humildes, não sabiam 
Com eles aprendi a rachar lenha e ir buscar conchas sonoras no mar fundo 
Comigo eles aprenderam a conquistar as jovens praianas tímidas e risonhas. 
Eu mostrava meus sonetos aos meus amigos – eles mostravam os grandes olhos abertos
E gratos me traziam mangas maduras roubadas nos caminhos. 

Um dia eu li Alexandre Dumas e esqueci os meus amigos.
Depois recebi um saco de mangas.
Toda a afeição da ausência…”

Vinicius de Moraes, “Ilha do Governador


Introdução

Paulo Emílio Salles Gomes escrevia, em agosto de 1941, no terceiro número da revista Clima, que recebia “...com grande interesse a notícia de que Vinicius de Moraes ia fazer crítica de cinema no jornal A manhã, recentemente fundado no Rio, sob a direção de Cassiano Ricardo”. Acrescentava ainda que o artigo intitulado “Credo e alarme” (8/agosto/1941), em que Vinicius se apresenta aos leitores expondo suas ideias cinematográficas fora recebido com grande interesse, além de significar um verdadeiro acontecimento.

Destacar a importância da participação de Vinicius de Moraes na crítica cinematográfica do início dos anos 40 com base em anotações obtidas principalmente no jornal A manhã, na revista Clima e na tese de doutoramento de Maria Rita E. Galvão, eis o alvo deste artigo.

O cinema, brigando para ser reconhecido como arte

“O cinema foi a última coisa que me interessou. Inicialmente, meu interesse era por literatura, política, depois artes plásticas, música. O cinema era mais por causa das namoradas, era secundário...”

Depoimento de Paulo Emílio Salles Gomes a Cláudio Kahns

Em sua tese de doutoramento, Galvão destaca o pouco interesse demonstrado pelo cinema nacional por parte da intelectualidade antes dos anos 50. A firma que Guilherme de Almeida era a “flor exótica” da intelectualidade paulista especializada no assunto “Mas nos anos 40 o seu interesse já era mero resquício de um interesse real anterior, vindo dos anos 20, quando de fato o cinema era importante para alguns jovens intelectuais, como Canuto Mendes de Almeida¹, Plínio de Castro Ferraz ou Otávio Gabus Mendes, e no campo da reflexão crítica, para Mário de Andrade”. No final desses anos 20, no Rio de Janeiro, foi criado o Chaplim-Club, cineclube de Octávio de Faria, Plínio Süssekind Rocha, Almir de Castro e Cláudio Mello, que chegou a publicar entre 13 de junho de 1928 (data de sua fundação) e dezembro de 1930, nove exemplares do FAN, seu órgão oficial, ardoroso defensor do cinema mudo.

Todavia, segundo M. Rita Galvão, “com o correr do tempo, a especialização de Guilherme de Almeida em cinema foi se tornando qualquer coisa de puramente mundano, de modo que acaba havendo muito pouca diferença entre os escritos sobre cinema e a crônica social que faz concomitantemente. Depois dos anos 20, o interesse intelectual por cinema em São Paulo só ressurgiu com o Clube de Cinema da Faculdade de Filosofia, criado por Paulo Emílio Salles Gomes e um grupo de amigos no início da década de 40”, sendo que pertenciam a esse grupo, além de Paulo Emílio, Décio de Almeida Prado, Cícero Cristiano de Souza, Lourival Gomes Machado, Antonio Candido e Ruy Coelho. É o próprio Paulo Emílio quem declarou que entre a sua geração e a de Canuto não houve ninguém que se interessasse por cinema em São Paulo, sendo ele o primeiro intelectual a começar a se preocupar com o estudo de tal arte no final dos anos 30. Afirmou que “a descoberta do cinema como forma de cultura foi para mim uma descoberta completa e total, feita na Europa pouco antes da Guerra. Era algo que eu nunca tinha ouvido falar. Em 1935, Décio (de Almeida Prado) e eu fizemos uma revista chamada Movimento; era uma revista que se pretendia avançada e em que se trata de absolutamente tudo o que se possa imaginar – poesia, folclore, teatro, arquitetura, pintura, música, economia, política – tudo, com exceção de cinema, a que não havia uma única referência. O cinema realmente não existia para nós. Quando fizemos a revista Clima – depois de minha volta da Europa, já inteiramente conquistado pelo cinema – havia então uma seção de crítica de filmes. Creio que foi a primeira revista do gênero a ter uma seção especialmente dedicada a cinema. Na mesma época, Vinicius de Moraes começou a fazer crítica cinematográfica num jornal carioca, A manhã, e o fato de um intelectual como ele preocupar-se com cinema foi muito comentado, era qualquer coisa de meio insólito que as pessoas não compreendiam bem”.

O Clube de Cinema da Faculdade de Filosofia, é importante frisar, nasceu ligado à revista Clima, podendo ser considerado como a primeira manifestação concreta do interesse intelectual por cinema que começava a surgir em São Paulo. Eram exibidas, basicamente, as películas que Paulo Emílio havia visto na Europa, quais sejam, as de Fritz Lang, Ivan Mojvskine, Raquel Meller, O gabinete do Dr. Caligari (Robert Wiene), Carl Th Dreyer e outros. Após as projeções, os filmes eram discutidos pelo pessoal do próprio Clube e pelos professores da Universidade de São Paulo, sendo que, frequentemente, o debate se fazia em francês, “...para facilitar as coisas para os professores estrangeiros...” Entretanto, ressalva Maria Rita, o fato de haver um interesse intelectual por cinema em São Paulo absolutamente não significa que houvesse interesse por cinema brasileiro. Nos debates do Clube de Cinema não participavam os antigos cineastas paulistas (por exemplo Medina, Rossi, Tartari) que na década de 20 e início da seguinte eram não apenas os que faziam cinema, mas os que pensavam sobre cinema. “O resultado, no período que antecede à Vera Cruz” – companhia cinematográfica patrocinada pela elite financeira paulista, que produziu pouco mais de uma dezena e meia de filmes no período 1949/1954 – “é o divórcio total entre o pensamento e a prática cinematográfica brasileira. Durante muitos anos, pensar cinema no Brasil significou pensar cinema estrangeiro. Os filmes projetados e discutidos no Clube (...) eram os clássicos americanos e europeus”.

Para tornar mais clara a participação de Vinicius de Moraes no campo da crítica cinematográfica, parece útil, no entanto, delinear um quadro do cinema nacional tal como se apresentava na passagem dos anos 20 para os anos 40 – quadro este sombrio, desolador. No início da década de 30, o cinema nacional tem uma produção bastante reduzida. Passam-se, às vezes, anos inteiros sem que um único filme seja realizado. E durante todo esse tempo, se “...a atividade cinematográfica não desapareceu completamente, isto se deveu à produção de documentários e cineatualidades, sustentada pela lei da obrigatoriedade de exibição dos complementos nacionais”. Com o advento do Estado Novo, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e os Departamentos Estaduais de Imprensa e Propaganda (DEIPs) monopolizam a produção dos jornais cinematográficos, absorvendo ou aniquilando os concorrentes – concorrentes esses que também se dedicavam, direta ou indiretamente, ao filme de propaganda, que era a base de sustentação do cinema nacional. Segundo Maria Rita, no cômputo geral, além dos jornais cinematográficos e de documentários, “...temos um filme em 1935, outro em 1939, mais outro em 43 e outro ainda em 46, e dois em 49. Meia dúzia de filmes em 15 anos”. E mais: em São Paulo, praticamente só se exibiam filmes americanos, pois durante a Guerra a distribuição do produto europeu para cá tornou-se extremamente irregular. “Os cine-clubes que começa a se formar no início dos anos 40 só se preocupam com exibir e discutir cinema estrangeiro.” Dessa maneira, o cinema brasileiro destes tempos é o cinema carioca, é a chanchada – uma produção desprezada por todos aqueles que se diziam ou eram reconhecidos como intelectuais. Era o cinema da Cinédia e Atlântida, de Vicente Celestino, Oscartio, Violeta Ferraz, Grande Otelo, Mesquitinha, Zé Trindade, Ankito, Derci Gonçalves. “Um cinema brasileiro que corresponde à idéia que se tinha do que fosse o bom cinema não existia; o cinema que existia era totalmente ignorado pelas pessoas que começavam a se preocupar com cinema”.

Paulo Emílio comenta que ele mesmo pouco se preocupou com o cinema brasileiro durante a década de 40 e meados da seguinte, apesar de se interessar muito por filmes. “Quando a gente fundava um clube ou uma revista”, acrescentou, “é claro que obedecia-se ao ritual de interesse por produto nosso: pura retórica sem qualquer conseqüência”. No entender de Paulo Emílio, “...o melhor crítico de cinema que apareceu naqueles tempos foi Ruy Coelho, que publicou muito em revista e jornal”. Em um artigo publicado no Diário de São Paulo, Ruy Coelho escreveu que pretendia assistir a pelo menos um dos dois filmes nacionais que estavam sendo exibidos em São Paulo, a saber Corações sem piloto e Romance proibido – este último dirigido por Adhemar Gonzaga. Aconteceu que o crítico passou por acaso frente ao Metro e viu as fotografias do filme: “Confesso que desanimei. Retrocedi e fui até o Bandeirantes para estabelecer uma comparação com Corações sem piloto. Recuei horrorizado. Nas palavras de Paulo Emílio, “seu tema naquele dia foi a não ida ao cinema: primeira e única vez que em artigo seu o filme brasileiro, embora não visto, foi assunto.”

Num quadro como o que acabou de ser descrito não é de se estranhar que realmente fosse visto como qualquer coisa meio insólita o fato de um poeta já premiado e de certo nome, como Vinicius de Moraes, preocupar-se com cinema.

Em suma, no início dos anos 40 – mais especificamente a partir de 1941, quando Vinicius de Moraes começar a fazer crítica de cinema – vai-se encontrar um Vinicius ainda “de direita”, com formação católica arraigada e, esteticamente, comungando as ideias cinematográficas defendidas há pouco mais de uma década antes por seus amigos do Chaplin-Club.

Com exceção dos debates aí realizados na última metade dos anos 20, não se tem registro de discussões semelhantes, até que no final do primeiro semestre de 1942 se inicia, graças a Vinicius de Moraes, a polêmica cinema mudo versus cinema falado. Maria Rita Galvão coloca com precisão o “atraso” estético em que se vivia, ao destacar que o cinema debatido na época, no Clube de Cinema, não era o cinema atual, mas aquele dos anos 20. “O que nos dá concretamente a ideia da lentidão com que se desenvolvia o pensamento cinematográfico no Brasil é o fato de que a grande polêmica cinema mudo versus cinema falado se deu aqui precisamente nesta época depois de o resto do mundo ter resolvido a questão”. Entretanto, antes de se falar da referida polêmica é indispensável acompanhar as ideias centrais de Vinicius relativas ao cinema.

A herança do Chaplin-Club

Vinicius de Moraes apresenta-se aos leitores de A manhã em 8 de agosto de 1941 com um artigo intitulado “Credo e Alarme”, onde expõe suas ideias cinematográficas. Afirma: “Creio no Cinema, arte muda, filha da Imagem, elemento original de poesia e plástica definidas, célula simples de duração efêmera e livremente multiplicável [...]. Creio no Cinema puro, branco e preto, linguagem universal de alto valor sugestivo, rica na liberdade e poder de evocação. Creio nesse cinema. Em qualquer outro, o que transige com o som, a palavra, a cor, não posso e não quero crer. Aos que me chamarem de atrasado ou intransigente direi que prefiro meu atraso e intransigência à facilidade com que se acomodam às formas corruptas da vida e da arte. Aos que me acusam de deslealdade para comigo mesmo por aceitar a responsabilidade de uma crítica do cinema como hoje é feito – deturpado do seu melhor sentido pela mercantilização crescente – direi que ainda me resta uma esperança cega de vê-lo voltar à origem, à Imagem em simples continuidade, ao jogo pródigo de sombras e claridades, ao ritmo interior, à Poesia que o fecunda, à Música que o envolve, à Pintura que o delimita, à Arquitetura que o constrói, à Palavra que o comanda, e que milagrosamente se ausentaram para deixar vivo o que de exato se chama Cinema.”

“Nesse Cinema creio, só ele me satisfaz e só ele me parece conter em si de que acrescentar ao Conhecimento. E creio em Chaplin, seu criador máximo, que com ele se confunde, identificação real do homem e do cineasta, grande exemplo de sinceridade humana e lealdade artística. Chaplin e o Cinema: cenário, direcção, ação, montagem. Não há dilemas.”

E o crítico confessa-se “...um apaixonado do Cinema” e que viu “Luzes da cidade” mais de vinte vezes – “aliás não seja por isso, porque Octávio de Faria viu mais de trinta”. Em seguida pondera que o Cinema (sempre maiúsculo!) sofre “o mal das pequenas elites, ai de nós, encerradas na torre de marfim da sua sapiência. É preciso que cada um dê um pouco do que sente, do que crê sinceramente original em si, em seu benefício do grande público viciado em não se preocupar. Em matéria de Cinema, o público brasileiro – e que me perdoe ele a rudeza, pouco do meu hábito – é de uma ignorância a toda prova. A necessidade vital é ir ao cinema, esquecer por duas horas as coisas da vida no curso suave de imagens que sugerem. Se o público – uma parte que seja – [...] aprender a aclamar e protestar, e se recusar a um certo gênero de explorações que são um escárnio à sua inteligência quem sabe os produtores e distribuidores, por prudência e por decência, achassem melhor não lutar contra força tão poderosa como o público e [...] dessem uma pequena ajuda e fizessem o Cinema voltar àquele bom tempo em que se podia ir de olhos fechados, ‘sans blague’, a três ou quatro filmes por cinema, na certeza de que se iria ver senão arte, pelo menos esforço artístico”.

Em suas considerações finais comenta a nossa incultura – “pois deixe ela de existir”. Em Londres ou em Paris qualquer cinema de vanguarda, qualquer clube de cinema, onde quer que haja um velho clássico dos tempos mudos ou não importa que bom filme, ali está gente de toda ordem apreciando, discutindo, dando de comer à arte. Por que nos considerarmos pior? E se o somos agora, mais uma razão para deixar de sê-lo.” E conclui afirmando: “eis o que proponho: uma reação. Já temos bons críticos e sinceros. Comecemo-las ajudados pela confiança do público que apoia as boas iniciativas.”

Detalhe da primeira edição de FAN. O periódico teve uma tiragem de nove exemplares e foi um dos espaços onde Vinicius de Moraes trafegou com sua opinião sobre cinema.


As ideias de Vinicius de contidas na longa transcrição de “Credo e alarme” (principalmente no início do artigo) se assemelham em muito àquelas propagadas no final dos anos 20 pelos então rapazes do Chaplin-Club através do FAN, seu órgão oficial. De acordo com Ismail Xavier, o Chaplin-Club foi fundado no Rio de Janeiro em 13 de junho de 1928 e tinha um objetivo bastante claro: “o estudo do cinema como uma arte”. (Art. 3º dos seus estatutos). Em agosto de 1928 saiu o primeiro numero do FAN, onde se afirma que existe um único caminho válido a se seguir e “nesse caminho nós sempre estaremos... como ele (Chaplin) sempre está...” (alusão ao cinema mudo). Isamail Xavier comenta que “estamos em 1928 e a sombra do falado mobiliza em todo o mundo a campanha de idealistas em defesa da arte do silêncio. Na América, um cineasta liderava a heroica resistência, proclamando a sua fidelidade teórica e prática ao filme mudo: Charles Chaplin. No Brasil, justamente quando as discussões tomam corpo, é criado o cineclube de Octávio de Faria, Plínio Süssekind Rocha, Almir Castro e Cláudio Mello. O nome de Chaplin batiza uma “instituição brasileira” que comprometeu sua existência na batalha contra o filme falado, publicando o último número do FAN em dezembro de 1930, abandonando a arena depois de dois anos de intensa pregação em nome da arte do preto e branco e do silêncio. Os talkies ganham a guerra, o cinema fala e o FAN silencia.”

Foram publicados apenas nove números do FAN, e que depois de 30, os jovens do Chaplin-Club raramente se pronunciaram publicamente sobre cinema, “...embora não deixassem de acompanhá-lo, escrevendo ou ensinando, pesquisando e exibindo clássicas obras-primas. Ou, como foi o caso de Plínio Süssekind Rocha, lutando durante anos no importante trabalho de recuperação do único filme brasileiro afinado com os velhos ideais – Limite, de Mário Peixoto (1930)”.

Afirma-se, no órgão oficial do Chaplin-Club, que os filmes falados não são dignos de serem discutidos. Assim, o jornal protesta contra a “imbecilidade do público” que os aceita e dá uma breve definição dos talkies do cinema falado = teatro. Ismail destaca que Almir de Castro mantém uma confiança inabalável na “imagem toda poderosa” e o jornal “não faz senão repetir sua fé na expressividade exclusiva da imagem, numa atitude que se manifesta até na sua figura mais teórica, Octávio de Faria...”

Chaplin é invocado o tempo todo e definido no n. 6 (setembro de 1929) como “...o maior criador que a humanidade produziu até hoje”. E “a convicção da superioridade de Chaplin em relação a qualquer outro artista de todos os tempos, alias-se à convicção do cinema mudo como forma superior de expressão dos sentimentos humanos. A confiança na derrota do falado tem seu maior sustentáculo no próprio mito: ‘Se Carlitos falar, eu me calarei!” (Claudi Mello).

Além disso, Octávio de Faria e Almir Castro já se haviam pronunciado contra qualquer som nos filmes, e até reclamado contra a orquestra. “Para eles, esta foi sempre um grande mal, criador do preconceito da não autonomia da imagem na produção da emoção. Som e imagem são irreconciliáveis.”

Para Octávio de Faria, invocando os teóricos do cinema no momento – por exemplo René Schwob e Murnau – o maior pecado dos filmes de sua época era a presença de letreiros, (“Confissão de incapacidade do scenarista”). Segundo Ismail, para Octávio, os letreiros “...estavam incondicionalmente entre os recursos proibidos, anticinematográficos. Sob pretexto algum deveriam ser usados...” Para o principal teórico do Chaplin-Club, o fundamental era excomungar os letreiros a todo custo. “Dentro desta visão, Murnau é o grande modelo. A confecção do roteiro deve obedecer à regra: ‘ A estória deve ser contada pela câmara’. E Octávio acrescenta: exclusivamente pela câmara, sem cortes, dentro da teoria da ‘continuidade absoluta’. A produção cinematográfica fica reduzida ao binômio roteiro (visualização)/filmagem (materialização do roteiro). A câmara é o único elemento técnico que lhe desperta atenção. Esta concepção da prática, reduzida ao visualizar (imagens interiores-subjetivas) e filmar (imagens captadas objetivamente pelo olho da câmara), aliada a um princípio estético defensor da penetração total do espectador no universo das imagens, conduz à formulação do seu ideal: a continuidade absoluta.”

As influências dos teóricos do Chaplin-Club se fazem em Vinicius de Moraes, entre outras oportunidades, por ocasião de seu comentário sobre o lançamento da revista Clima, tendo a seção de Cinema sob a responsabilidade de Paulo Emílio. Comentando os escritos de Paulo Emílio no segundo número da revista – onde é realizado um balanço do primeiro semestre do cinema em 1941, ocasião (primeira e única) em que Paulo Emílio comenta um filme nacional: Aves sem ninho, de Raul Roulien. O outro artigo de Clima sobre o cinema nacional será de Vinicius, em agosto de 1944, no qual pondera que o jovem paulista se dedica a tarefa de crítico cinematográfico com o mesmo ardor com que havia analisado o filme de John Ford, A longa viagem de volta (Clima, n.1. maio de 1941). As influências recebidas por Vinicius de seus amigos redatores do FAN começam a aparecer quando afirma que teve uma boa surpresa ao saber o crítico paulista ter sido iniciado em cinema por Plínio Süssekind Rocha. “O que quer dizer meio caminho andado. Este grande físico brasileiro, um dos fundadores do Chaplin-Club, e que é também um dos homens mais inteligentes com que tratei, conhece Cinema que não é brinquedo, e o conhece naquilo que ele tem de mais difícil e sutil – o seu sentido, por assim dizer, matemático de construção. O Sr. Paulo Emílio, sente-se, não quer desmerecer de tão boa direção. trabalha com afinco, com amor, sequioso de decifrar tudo o que há de fundamental e legítimo na grande arte da imagem (...). A vontade de ver é tão grande que às vezes o Sr. Paulo Emílio vê demais, como no caso de John Ford, que é indiscutivelmente um diretor de talento, mas que está longe de ser um cineasta, e da ‘Longa Viagem de Volta’, um grande filme fracassado por culpa de John Ford, que não soube montar-lhe, cinematograficamente, os elementos de continuidade”.

Segundo Vinicius, isto é, em Paulo Emílio, “...uma falha que o trabalho visual e o cultivo do bom Cinema – esse cinema que é mudo – num instante hão de ajustar”. Ele não concorda com Paulo Emílio quanto à possível influência de John Ford no filme O criminoso, de Brian Desmond Hurst. “Sinto no ‘Criminoso’ muito mais viva a influência dos mestres alemães, de Fritz Lang, por exemplo, onde me parece o próprio John Ford deve ter aprendido muita coisa”.

O grupo de editores da revista Clima. Na primeira fila, da esquerda para a direita Alfredo Mesquita, Antonio Candido e Lourival Gomes Machado. Na segunda fila, Antonio Branco Lefèvre, Décio Almeida Prado, Paulo Emílio Salles e Roberto Pinto de Souza.

O número 5 (outubro de 1941) de Clima é dedicado quase que inteiramente ao filme Fantasia, de Disney. Há artigos de Oswald de Andrade, Sérgio Milliet, Ruy Coelhi, Almeida Salles, Flávio de Carvalho, Plínio Süssekind Rocha e Paulo Emílio, além de uma seção especial intitulada “Fantasia vista pela imprensa”, onde são transcritas as críticas realizadas por Mário de Andrade (Diário de São Paulo), Guilherme de Almeida (O estado de São Paulo), Cruz Cordeiro (Diretrizes) e Vinicius de Moraes (A manhã – 27/08/1941). Resumidamente, Vinicius não desgosta da produção de Disney. Após revê-la, segundo afirma, confirmou-se sua primeira impressão: “Sempre que falta o movimento, falta tudo ao desenho de Walt Disney [...]. falei, em crônica anterior, que ‘Fantasia’ herdou os melhores e os piores motivos de Walt Disney. Realmente: às vezes o desenho é tão evidentemente ruim que se torna incompreensível a maravilha que se segue depois. O erro em si não me parece ser do desenho: “o desenho de [...] Disney não tem pretensões artísticas. A arte nele decorre da movimentação: dessa harmonia de valores novos que só o grande animador soube concertar, em sua peregrinação, para o maravilhoso. O que eu acho é que Disney pecou por ambição. Sempre que o ataca o ímpeto de descrever a música, de vê-la, em valores de ‘cartoon’, ele fracassa. Sempre que a música lhe arranca aquela espontaneidade de movimento, ele é inexcedível. Ninguém o supera nisso. É uma invenção sua, o melhor da sua criação”. Vinicius vai tecendo seus comentários e passando pela Tocata e fuga em ré menor, de Bach; pela “antipática” (em sua opinião) “Suite”, de Tcahikovski, chamada Quebra-Nozes; considera “esplêndida” a Valsa das flores e não gosta do aparecimento de Mickey no Apprenti Sorcier. Disney faz, a meu ver, a tentativa mais séria do filme, embora nem sempre a tenha mantido igual. Do Rito da primavera de Stravinski, tira a criação do mundo, tema que sempre achei da mais alta poesia...” Não gostou da maneira como foi utilizada a Pastoral de Beethoven, “...que transforma-se numa verdadeira monstruosidade no desenho que Disney lhe fez. Aqui não há desculpa. É uma total droga. Essa ‘feerie’ grega, com seus centauros e ‘centaurettes’ [...] e uma garrafada na cabeça no meio de uma boa festa de carnaval. Disney não poderia ter sido pior [...]. Na ‘Dança das Horas’ ele supera tudo o que já fez anteriormente em matéria de movimento cômico. É assombroso. Nunca houve tanta felicidade, tanta naturalidade, tanta precisão, tanta cor como nesse excelente bailado de bichos”. O crítico não gosta da sequência final, Noite no monte Calvo, de Moussorgski e conclui: “Stokovski rege com a perfeição e a liberdade de sempre. E tal é o desenho. Muito bom, muito ruim. Muito bom, sempre que Disney volta a ‘Silly Symphony’: muito ruim, sempre que esforça, além da medida, na procura do seu novo caminho. De qualquer modo, a experiência é interessante. Vale para provar que as artes se bastam a si mesmas, e que a arte de Walt Disney é o ‘cartoon”.

Da esquerda para a direita: João Luiz Albuquerque, Dorival Caymmi, Aloysio de Oliveira, Walt Disney, Norma Bengell, Vinicius de Moraes e Antonio Carlos Jobim. Numa das críticas escritas para o jornal A manhã Vinicius tece duras críticas ao trabalho de Disney e o seu "soterramento" da arte em detrimento do entretenimento.

A polêmica do Rio: cinema mudo x cinema falado

Paulo Emílio destaca que, na realidade, o debate cinema silencioso-cinema falado nunca se encerrou: “Perdeu apenas o brilho de 1928, 29 e 30 [...] Diante da vitória real dos ‘talskies’, os silenciosos, que eram cineastas profissionais, ou mudaram de tática ou capitularam, ou então foram afastados das imagens.” E, para ilustrar sua afirmação, cita os casos de René Clair, King Vidor, Murnau e Chaplin. René Clair “continuou sua obra em que o melhor de sua energia era usado para escamotear a voz humana imposta pelos financiadores do seu trabalho”, equanto King Vidor, depois de ter tido “...esperança de que o filme silencioso seguisse um caminho e o falado um outro, e a certeza de que os filmes pantomimas seriam sempre os maiores, podendo ir além do mais, aprender com os falados uma boa coisa: dispensar os letreiros, capitulou...” Murnau, ao terminar A turba, declarou que, “...apesar de sua perfeição mecânica, o cinema falado faria da tela uma edição barata do palco. Em seguida, fez Tabu e morreu, não tendo tempo de ou capitular completamente ou, quem sabe, continuar na luta durante alguns anos”, Charles Chaplin, este sim: utou às claras e resistiu mais tempo. “No apogeu do cinema musicado, falado, cantado, produziu uma das obras-primas do cinema silencioso: ‘City Lights’. Finalmente, Paulo Emílio destaca que uma cidadela dos silenciosos foi, até a derrota militar da França, o “Cercle de Cinema du Trocadero”, onde a nova geração de cineastas franceses fechava o festival Charles Chaplin aos gritos de “Vive le Meut”.

A polemica também continuava a existir “no espírito das pessoas responsáveis, e se manifestava no embaraço evidente dos grandes críticos de cinema, de um Moussinac, por exemplo. Mesmo no rodapé de Guilherme de Almeida (em O estado de São Paulo) aparecia às vezes um certo remorso, aliás quase sempre descabido, como nas saudades daquele vulgar ‘Beau Gest’ silencioso...”

O crítico paulista conta que em fins de maio de 1942 foi organizado na Escola de Belas Artes do Rio um debate sobre cinema, que contou com a participação de Orson Welles, que estava realizando filmagens no Brasil – oportunidade em que a Associação de Artistas Brasileiros conferiu a Cidadão Kane  o prêmio de melhor filme do ano de 1941. Após a saudação do homenageado, os seus agradecimentos e a “apreciação artística” do filme premiado, têm início os debates. “Entre os vários temas discutidos, levanta-se a questão de que o ‘Cidadão Kane’ é um grande filme precisamente porque se aproxima da estética do cinema silencioso. Os protestos que se seguem dão início à questão fundamental que alimentaria o prosseguimento do debate: o verdadeiro cinema é o cinema mudo ou o cinema falado? Passa-se a discutir a essência do cinema...” Segundo Paulo Emílio, “graças à presença do agente provador Vinicius de Moraes, discutiu-se o que se devia discutir. Vinicius, “lutando contra a própria timidez e dificuldade de expressão verbal, conseguiu fazer com que o eixo da polêmica fosse o problema da validade do cinema falado como arte autêntica. O advogado dos ‘talkies’ foi Ribeiro Couto, e meus espiões me telefonaram do Rio dizendo que, no momento e para a média do público presente, saiu-se com brilhantismo”. Todavia, “o perverso Vinicius não desistiu [...]. Resolveu levar a coisa para a sua coluninha de A manhã e, afirmando que não sabia fazer discursos, mas que quem tinha era ele, convidou toda gente para uma toma de posições por escrito...”

A polêmica do Rio reuniu grandes contendores – Vinicius de Moraes e Ribeiro Couto – além de contar com a participação (por escrito) nos debates de, entre outros, Plínio Süssekind Rocha, Manuel Bandeira, Octávio de Faria, Anibal Machado, Humberto Mauro, Afonso Arinos de Mello Franco, Orson Welles, Otto Maria Carpeaux, Mme. Falconetti e Álvaro Moreira. Procurarei, na sequência, apresentar uma síntese dos debates, que se alongaram de maio a julho de 1942, e que não contou com a participação dos paulistas. Mas em compensação, recebeu a colaboração de mineiros, cariocas e catarinenses, além de várias cartas de leitores, pronunciamentos de personalidades oficiais, bem como a transcrição dos manifestos de grandes cineastas sobre o advento do som.

Na já citada cerimônia realizada na Escola de Belas Artes do Rio, apenas Vinicius falou em defesa do cinema mudo, ao passo que todos os outros participantes – com exceção de Celso Kelly, que considerava a questão irrelevante, pois acreditava que o futuro da “arte dramática” se concentrava no desenho animado – eram pelo sistema falado. Orson Welles, por exemplo, defende o “falado total”, isto é, aquele em que “o silêncio é função negativa do próprio som” (A manhã). Segundo Maria Rita, “alguns dos participantes debatem a sério, outros como divertida ironia. Vinicius por vezes tem trechos admiráveis de leveza e poesia, plenos de fervoroso amor pelo cinema. Outras vezes, o tom ligeiro da crônica desarma totalmente as suas infladas investidas contra o falado, e com frequência tem-se a impressão de que, acima de qualquer outra razão, a questão prossegue porque ele se diverte. Mas há outro motivo mais sério, que não tarda a aparecer: o importante é que se continue a discutir cinema, mesmo que a discussão gire em torno de um tal tema. ‘Fui, sinto-o bem’ – diz Vinicius – ‘o agente  excitador de toda essa matéria de pensamento sobre o cinema – que andava espiritualmente morto desde o fechamento do Chaplin-Club – e não tivesse a minha crônica outra utilidade, essa já me deixaria feliz [...]. Recomeçou-se a pensar sobre Cinema no Brasil – e por isso Deus acrescente a Paulo Emílio Salles Gomes, em ‘Clima’, a revista de São Paulo, e a mim, aqui na ‘A Manhã”.

Na realidade, o debate foi aberto por Vinicius de Moraes em 27 de maio de 1942 e Paulo Emílio, em “Notícia sobre a Polêmica do Rio”, afirma que o poeta pretendeu “...explicar-nos o que pensava sobre silêncio em cinema. Toda gente já sabe que ele é pelo silencioso. Mas Vinicius de Moraes é professor medíocre. O seu forte não é explicar coisas. Ele não sabe pôr um argumento depois do outro, ligá-los, tirar uma conclusão. Vinicius é um homem eternamente grávido e está eternamente dando à luz, Vinicius nasceu grávido e dando à luz, Vinicius está sendo fecundado desordenadamente pelas coisas do mundo, pelas crianças, pelo cinema, pela guerra, pelos passarinhos. No começo, ainda tenta ensinar coisas, mas logo se perde, e é bom, porque só aí aprendemos coisas...” É Vinicius quem afirma que “o cinema como a música o silêncio é um clima [...]. Mas na música o silêncio não é a própria natureza da coisa em si, como no cinema é imagem. Ora, a imagem é fundamentalmente silenciosa, como meio de expressão. Não há música sem silêncio, é certo. O som só se realiza perfeitamente num espaço silencioso, e se alguma aplicação lhe cabe ao cinema, o seu segredo está aqui. Mas no cinema, onde o som tem cabimento, o silêncio, por um paradoxo vital à arte, é a realidade fundamental, muito mais fundamental que na música, pois abstratamente poderá alguém ouvir música em pleno fragor de uma batalha, mas não verá nunca cinema, se aum palavra que seja brotar da imagem para resolver, por solução própria, o mistério que pertence ao seu conteúdo emocional íntimo. A imagem se sensibiliza, retrai-se e a palavra passa a dar imediatamente o tom. Porque o poder da palavra poderá não ser mais persuasivo que o da imagem, mas é certamente mais peremptório, e onde existir uma palavra e uma imagem, aquela atingirá mais nitidamente o seu fim, mais violentamente. Eis por que o Cinema, arte da imagem, deve ser silencioso. E quando eu digo silencioso não abstraio de nenhum recurso da cinematografia: a música, o som ou a palavra. Porque o Cinema é um instante, dificilmente uma continuidade” (A manhã). Todavia, quando Vinicius deixa de falar sobre a noção abstrata que tem de Cinema – de cinema antes da cinematografia, que é, em última análise, o que se “vê” – e coloca as coisas em termos de cinematografia, afirma: “O Falado; no final das contas, uma substituição do letreiro incômodo que o bom diretor do silencioso procurava eliminar o mais possível”; ou seja, está bastante próximo das concepções de Octávio de Faria acerca do cinema falado.

Cena de O garoto, de Charlie Chaplin; aos olhos de Vinicius de Moraes, o ator e diretor era o maior gênio do cinema.

Paulo Emílio afirma em seu artigo que Vinicius, no final do escrito de 27/5/80, consegue dar integralmente o sentimento do que seja a conquista do silêncio para as artes humanas. Vinicius pondera: “...já aconteceu a alguém de, passando por uma rua transversal de bairro, em plena luz, entregar-se de repente a um acorde de piano ou a um estudo laborioso de violino, inexplicavelmente, a ser reconduzido pelo silêncio que esses sons despertam à última solidão do mundo? Ou ouvir um grito fazer o silêncio em torno, um silêncio pressago, cheio de mistério dentro? Por certo todo mundo já sentiu essa sensação de silêncio que o trote de um cavalo desperta no descampado, quando se volta de algum lugar ode se foi feliz; ou o silêncio da tarde que o mato parece nascer dos ruídos dos bichinhos; esse silêncio dos trens apitando longe, dos roncos de navio no nevoeiro, das multidões em transe, das naves das igrejas, onde o menor ruído amplia o silêncio ao infinito. É tão cotidiano! Nem chega a oferecer matéria para pensamento. A sensação está no papel, presente, as próprias palavras criam o silêncio. Ah! O silêncio daquele verso de Keats, na ‘Belle Dame Sans Merci’ que diz assim: ...and no bird sings”. E Vinicius continua sua pregação na defesa do silencioso, ao tecer considerações, no mesmo artigo, sobre “...o silêncio dos grandes momentos da vida, dos grandes momentos do amor; o silêncio de Cristo orando no orto, o silêncio da música de Bach; o silêncio das ruas de mulheres, onde tantos gritos, risos e assuadas se contrapontam, criando um indizível silêncio... e o silêncio de Beethoven surdo, criando na sua surdez... e o silêncio da figura imortal de Carlitos em Cinema; o mais íntimo, o mais permanente, o mais poderoso da imagem. Uma espécie de espaço essencial onde todos os seus elementos componentes vão milagrosamente se congregar, se dispor e se harmonizar em emoção e beleza. Coisa misteriosa, essa de silêncio”.

Paulo Emílio procura traduzir as considerações realizadas por Vinicius comentando que “...esse silêncio, no qual queremos mergulhar a imagem, é um elemento arrancado da vida palpitante e cotidiana para ser usado em arte...” e que “...a posição silenciosa em cinema não é uma posição passiva de quem não quer som, mas sim ativa de quem quer conquistar o silêncio – o silêncio como material inédito em arte, um silêncio que é muito mais do que a simples falta de ruídos e palavras”. Entretanto, parece que nada disso foi entendido por Ribeiro Couto que, 28/5/1942, escreveu em A manhã: “Na sua plataforma de ontem, Vinicius faz, finalmente, o elogio de várias situações silenciosas de pungente expressão (Cristo no horto, Beethoven surdo, etc.) mas conclui – sempre as condições arbitrárias – com o mais categórico despotismo: Não é possível não ser pelo silêncio. Que tem que ver tudo isso com a questão que se discute?” Um pouco antes de Ribeiro Couto, após resumir o pensamento de Vinicius na frase “O silêncio é a própria natureza do Cinema em si”, acrescenta: “Porém isso, afinal de contas, se pode dizer de todas as outras artes, com exceção da música; todas elas têm como natureza fundamental o silêncio; o próprio teatro; não é só com as palavras, é frequentemente com o jogo da expressão silenciosa que um ator atinge o máximo de comunicabilidade”.

No artigo de Paulo Emílio em Clima é transcrito um pequeno trecho da carta que Octávio de Faria enviou para A manhã, participando também da famosa polêmica – carta essa em “tom desanimado”, segundo o crítico paulista. Octávio escreveu que “os fatos em si, ninguém os desconhece, pelo menos as pessoas de boa-fé e as que têm uma vaga noção do que estão dizendo [...]. Portanto, discutir o quê? Fazer ato de saudosismo diante de pessoas que nem sequer sabem do que se está falando? Outro fundador do Chaplin-Club, Plínio Süssekind Rocha também enviou uma carta e afirmou que não quer discutir. Gostaria apenas de rever os filmes silenciosos que tanto ama e, para isso, propõe uma política: atingir o esnobismo da elite. “Se a nossa ‘elite’ suspeitar que o cinema silencioso é mais ‘fino’ que o atual, talvez se decida a querer ver os grandes filmes. Talvez, consiga até uma sala com os nosso dirigente, como o ‘Cecle’ de Paris conseguiu a sala do Museu do Homem. Talvez mesmo apareça quem obtenha das nossas leis, uma ressalva que permita ao Clube de São Paulo trazer os filmes que estao em Buenos Aires sem pagar a mesma taxa que os filmes comerciais...” Paulo Emílio, no artigo acima.

Em pleno debate Vinicius de Moraes soube que Mme. Falconetti, a Joana D’Arc de Dreyer, estava no Rio de Janeiro e foi correndo entrevistá-la. “As coisas que Mme. Falconetti disse, se bem que a maior parte não esteja ligada com os pontos precisos da polêmica, são o momento mais importante da mesma. Porque podemos evocar o que era o trabalho de criação artística de um diretor de cinema dos bons tempos...” Paulo Emílio, no artigo acima citado transcreve o depoimento concedido pela atriz a Vinicius, depoimento esse que reproduzo apenas em parte, na sequência. Mme. Falconetti cota que Dreyer queria realizar um verdadeiro filme: “o movimento supremo de uma criatura, o quadro monumental de uma vida de mulher. Não amava especialmente a Joana D’Arc. Queria sim revelar uma mulher. Para isso precisava de toda sua atenção, de toda a sua dedicação, de sua renúncia absoluta. Fê-la chorar como experiência. E avisou-lhe que ela precisaria viver chorando, que não veria ninguém, que só trataria com ele, que precisaria de sua obediência absoluta...” Madame Falconetti afirmou que sofreu bastante, que foram cinco meses de tortura, de brigas com Dreyer. “Perguntava-lhe: mas M. Dreyer, se o sr. me deixasse um pouco de liberdade para a ação eu poderia dar alguma coisa de mim mesma. Ele recusava-se formalmente. Obrigava-me à maior passividade [...]. Acabada a cena recolhia-me a uma casa de campo a que só ele tinha ingresso. Falava-me constantemente, incutindo-me a ideia da obra que queria realizar. Era-lhe uma ideia fixa. Não foi à toa que enlouqueceu. Está internado. No dia em que acedi a que me raspassem a cabeça coisa que ele pedia sempre, foi de uma extraordinário doçura comigo”. A uma pergunta de Vinicius de Moraes, Madame Falconetti ainda disse: “sou pelo silêncio. Meu pronunciamento não o creio de muito valor. Sou uma atriz de teatro. Mas no que posso julgar, estou de acordo com o seu ponto de vista. O silêncio é o mais fundamental. Não é possível imaginar uma ‘Joana D’Arc’ sonora ou falada, nem fazê-la melhor. Estou certa que M. Dreyer diria o mesmo no seu debate. Sabe de uma coisa, tudo o que é ‘decór’ é pouco importante. O artista que usa disso como meio de expressão, esse, não vai longe, já transigiu”.

Um leitor de Santa Catarina, Frederico Pohlman Primo, crê que “...nas artes, e muito mais no cinema, a perfeição está em aproximar-se o mais possível da realidade, da vida que vivemos cotidianamente”. Por isso e pelo falado e, de acordo com Paulo Emílio, a opinião do Sr. Pohlman é importante porque é bastante corrente.” Um outro leitor, Pedro Enout, de Belo Horizonte, polemiza com Ribeiro Couto, afirmando que “a arte, a literatura têm justamente capacidade, cada uma no seu próprio campo e com os seus próprios meios materiais aparentemente precários e insuficientes [...] para transmitir ‘representações da vida total’ sem precisar recorrer ‘a representações totais da vida’. É necessário que haja na obra de arte, segundo o leitor mineiro, “...o esplendor da verdade. entretanto, este esplendor da verdade não resulta da maior ou menor veracidade da reprodução das coisas, nem da maior ou menor clareza e facilidade com que a obra em si apresenta os fatos, as ideias, as coias mas sim da capacidade do gênio artístico de fazer resplandecer na matéria um princípio de inteligibilidade. O som em cinema veio trazer a subversão deste princípio fundamental em arte. O aprimoramento material abafou e suprimiu o elemento formal tomando-lhe a fundação”. Ainda de acordo com Pedro Enout, “o som é um bem em si, mas bem muito relativo no cinema. Na arte da imagem em movimento, o falado por ter eloqüência. Aí está o princípio geral [...]. Temos a impressão, seguindo Vinicius de Moraes, que há sempre uma solução silenciosa. Que dá trabalho, dá, que exige gênio, exige, que não agradará de saída o grande público, viciado como está, também estamos certos. Mas é cinema, é o que se quer. A solução equilibrada não pode ter, porém, tabu pelo som. Trata-se de um recurso secundário como outro qualquer que pode ser usado, apesar de muita gente ver grandes contradições nisto”.

Manuel Bandeira participou da polêmica enviando um bilhete a Vinicius para chamar Octávio de Faria e Plínio Süssekind Rocha de “enfezadíssimos” e para dizer que “às vezes tem vontade de assinalar nos escritos dos silenciosos, certos pontos fracos, certas brechas. Infelizmente, não o fez...”

Quanto a Ribeiro Couto, este continua a ser o principal advogado do falado no debate escrito. Seus dois primeiros artigos e o bilhete enviado a Vinicius de Moraes sobre o pronunciamento de Octávio de Faria contribuíram para dar animação no debate. Todavia, dia 11 de junho de 1942, o principal defensor dos “talkies” publicou um artigo chamado “Os estetas da tartaruga e a evolução da técnica”, que começa assim, bem agressivo: “Certamente, as pessoas que têm o costume de ir ao cinema nunca tomarão muito interesse pela reabertura do debate sobre o mudo e o falado. Para elas, o assunto já passou em julgado. O som e a voz humana são agora indispensáveis à imagem. Ocorre, até, nas salas de espetáculo, que quando há um desarranjo na projeção sonora e o filme é exibido silencioso por uns instantes, explodem os protestos impacientes. O mudo, já hoje, não é estimado se não por alguns ‘estetas’, assinto de granfinagem. Nem poderiam valer, contra o falado, as obras-primas que nos deu outrora o silencioso. Obras-primas houve sempre em todos os estágios de uma técnica em evolução. Por exemplo, a pena de pato. Foi uma obra-prima para os escritores, antes da invenção das penas de aço e, ultimamente, da máquina de escrever. Nem por isso os estetas quererão voltar à pena de pato para escrever os seus poemas e os seus romances”. Paulo Emílio irrita-se com as colocações realizadas por Ribeiro Couto e resolve dirigir-lhe a palavra das páginas de Clima, ponderando o seguinte: “Compreendo muito bem o que aconteceu. Quem de nós, no entusiasmo duma discussão, ainda não soltou asneiras incríveis? É uma coisa que acontece, sobretudo quando a gente fala de assuntos sobre os quais se está pensando pela primeira vez. Seu artigo foi naturalmente escrito às pressas. Provavelmente não foi nem relido. Eu lhe peço, Ribeiro Couto, que escreva um novo artigo dizendo que você não pensa aquilo que escreveu, que foi engano, que foi pressa, que evidentemente você sabe que tudo aquilo é besteira. Porque do contrário é impossível continuar uma discussão séria. Seu artigo é surpreendente demais, e um quase irresistível convite à pândega”. E, no término de seu artigo, Paulo Emílio realiza uma última observação. Em seu entender, nos escritos dos defensores do cinema falado nunca há citações de filmes, diferentemente do que acontece dos silenciosos. “Em seus três artigos Ribeiro Couto só cita um desenho animado sem importância e os jornais cinematográficos em que aparece o presidente Roosevelt fazendo discursos... temos a impressão nítida de que os silenciosos, Vinicius de Moraes principalmente, escreve sempre pensando em filmes, e que os falados, principalmente Ribeiro Couto, escreve sempre sem pensar em nada”. Mas, adverte, a polêmica do Rio continua, sendo que os pressupostos teóricos da discussão são os dos clássicos dos anos 20: Canuto, Delluc, Moussinac, Epstein. De acordo com Maria Rita Galvão, entre os participantes do silencioso, exalta-se a “simplicidade original do cinema, chapliniana, griffithiana, eisenteiniana”; distingue-se “Cinema” (o verdadeiro, a arte do filme) de “Cinematografia” (o cinema corrente); fala-se em cinemático, subentendimento, visualização, fotogenia, no “específico cinematográfico”, na “linguagem pura das imagens”. Aurora, O gabinete do Dr. Caligari, O lírio partido, A linha geral, A paixão de Joana D’Arc continuam sendo as grandes armas levantadas contra a execrada Hollywood. Ao que os “talkistas” respondem com argumentos não menos clássicos: o cinema sonoro é “representação total da vida”, é a “síntese de todas artes”, “arte total”, democrática, popular; lutar contra o som é ato de saudosismo, injustificado e retrógrado, é elitismo. E mais: afirma-se ser o falado “o início de uma nova idade na educação de massas”, é a possibilidade de criação de uma “cultura das multidões”. Segundo Ribeiro couto, “...somente a criação de cinema falado brasileiro de produção intensa poderá permitir que ganhemos o tempo perdido em matéria de educação popular”.

É importante destacar, principalmente, que o cinema brasileiro começa, timidamente, a ser discutido. No entender de Maria Rita Galvão, fala-se dele como se nunca tivesse existido. “O cinema brasileiro está em gestação”, diz por exemplo um leitor partidário dos filmes mudos, “não seria nada mau que ele ao nascer soltasse um grito... silencioso”. Ocasionalmente surgem referências elogiosas a filmes determinados, como por exemplo a Barro Humano. Há um pronunciamento do então ministro Mário de Vasconcelos, em que é discutida especificamente a produção nacional existente, atribuindo à má qualidade técnica o insucesso dos filmes, pois “bons artistas não nos faltam”. Diferentemente do que acontece em São Paulo, não demora muito tempo até que comecem a aparecer pronunciamentos de pessoas ligadas à produção, entre as quais Humberto Mauro e Carmen Santos; José Sanz, ‘jovem cinegrafista’, resume sua contribuição à polêmica numa frase incisiva: ‘Cinema não se discute, faz-se”.

Vinicius de Moraes luta até conseguir uma sala do Serviço de Divulgação da Prefeitura para exibições culturais. São projetados filmes seguidos de debates, após as sessões. “Carmen Santos interrompe um deles – uma discussão sobre ‘Caligari’ – para dizer que o ‘problema fundamental do cinema brasileiro é dinheiro’. ‘Carmen Santos esquece que não se faz cinema só com dinheiro’, responde Vinicius, ‘nem sempre com dois ou três valores de direção, mas sobretudo com um público consciente, amigo da arte, e que isso se consegue exatamente criando-se esse interesse cinematográfico que vive à base do presente debate’. Esta ideia será frequentemente retomada pelo movimento cineclubista que alguns anos depois tomaria corpo em São Paulo: a condição fundamental para que se possa existir um cinema brasileiro é o desenvolvimento da ‘cultura cinematográfica’. Prossegue Vinicius: “o cinema brasileiro não existe, ou pelo menos [...] está apenas latente em dois ou três filmes em que alguns diretores de talento tiraram do nada. Ora, se ele não existe, é o caso de criá-lo [...], movimentá-lo, dar-lhe sangue, vida (o que é um dos fins principais desse debate), traçar-lhe os fundamentos estéticos para o futuro [...]. O debate visa criar um cinema, um futuro cinema, e não ressuscitar um morto.”

Ao encerrar finalmente a polêmica, em julho de 1942 – “que já deu o que tinha de dar” – Vinicius anuncia a sua intenção de prosseguir com as projeções, e de organizar um pequeno curso de cinema onde se pudesse aprofundar as discussões iniciadas. Entretanto, é impossível destacar, o que não tem a menor repercussão é a discussão sobre o cinema brasileiro. “Moderno ou antigo, o cinema que se vê, se discute e sobre o qual se escreve, é o cinema estrangeiro. Será preciso esperar os rodapés cinematográficos de Benedito Duarte em O estado de São Paulo para que tais problemas, ainda que vagamente, sejam recolocados”.

Dessa maneira acredito ter destacado em linhas gerais, embora com não poucas lacunas, a participação de Vinicius de Moraes na crítica cinematográfica brasileira no início dos anos 40, antecedida por breves considerações acerca do cinema da época bem como por um ligeiro esboço biográfico onde se procurou situá-lo no tempo e no espaço.

Para terminar, gostaria de transcrever um pequeno trecho do depoimento de sua irmã, Laetita, onde afirma que Vinicius foi forçado a parar com suas críticas de cinema: “honesto demais em suas críticas, antagonizara certos produtores que ameaçavam retirar do jornal os seus anúncios caso Vinicius não os elogiasse de quando em vez”. Casado, com uma filha para criar, prestou concurso para o Itamarati, onde ingressou em 1943, após uma tentativa frustrada. Bom, mas isso já é uma outra história, bem mais conhecida pela maioria dos leitores...


* Afrânio é professor titular (desde julho de 2009) na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

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