Dario Fo



Depois de mais de setenta anos pisando as tábuas dos palcos, e forjando as do compromisso político, ficamos sem Dario Fo, o homem que gostava de se apresentar como um continuador dos menestréis; de uma narração oral arcaica e eficaz, cuja presença, pertinente em sua dramaturgia, Fo conseguiu preservar, contra o vento e as marés políticas e teatrais do século XX. Um século que atravessou levando a arte dramática desde o papel ao cenário como autor, ator, diretor e ativista.

Seu compromisso político criou-lhe problemas com a censura, ataques fascistas, agressões graves – a ele e à sua companheira, a também teatróloga Franca Rame – e inclusive a proibição de participar em importantes trabalhos para atuar nos Estados Unidos devido sua posição de ferrenho esquerdista durante os anos sessenta. As mesmas razões que serviram para que sua obra tenha passado por boicotes em todos os países até pelo menos nos anos oitenta foram as que o converteram numa das mais importantes para a literatura e o teatro; apresentava-se, muitas vezes, sozinho num cenário sem qualquer peça, com uma indumentária escura que destacava um rosto e corpo extraordinariamente expressivos. No seu repertório, ganhou lugar o cômico que colocava em suspenso a hipocrisia do catolicismo e as trapaças da política ocidental e oriental através de uma interpretação que destilava a memória viva da tradição popular – lugar que elegeu para erguer seu universo ficcional onde estabeleceu como figura singular.

Morte acidental de um anarquista, por exemplo, tem todos os ingredientes para seduzir qualquer adolescente revoltado: pureza política, Estado repressor, integridade, ativismo romântico, crítica à democracia, maniqueísmo, esquematismo, drama... Logo considera um dos clássicos do teatro moderno, o texto é uma sátira afiada e hilariante sobre corrupção política a partir do caso de um trabalhador ferroviário anarquista que, em 1969, "caiu acidentalmente" para morte de uma janela do quartel de polícia. Até então, com essa peça, Fo era já uma estrela na Itália enquanto para o resto mundo uma figura da literatura underground cujos livros não eram traduzidos e mesmo suas obras – dentro e fora do seu país – eram ainda apresentadas no chamado circuito independente.

Mas, não foi ao estilo dessa peça que toda sua obra se ergueu. Depois dela, aliás, ele decidiu, ou por conta própria ou por um toque de sua companheira, não ficar apenas na costumeira crítica – é quando suas obras se fizeram mais populares, nalguns casos, comerciais. Saiu do drama para a comédia e fez desse território um lugar para mensagem crítica. É o caso, por exemplo de textos como Um casal aberto, que conta a história de um casal que decide ampliar sua vida sexual com outras pessoas e Tenhamos o sexo em paz, um monólogo de uma mulher sexualmente insatisfeita. É ocasião em que Fo se deixa influenciar pelo que há de mais pitoresco das comédias italianas do pós-guerra e mistura com as teorias da liberação.

Dario Fo também se tornou um produtor pop quando se deixou levar pelas referências da televisão para reanimar sua escrita. Em O mundo segundo Fo, livro de entrevistas com Giuseppina Manin, ele explica: “A Itália se deu conta de que os sábados a noite na tela da televisão se encenava a vida. Autêntica, real, difícil, escandalosa. O sucesso foi incrível: às nove da noite o país parava, até os taxistas deixavam de trabalhar”. É claro que o dramaturgo exagera um pouco nas suas lembranças, mas o êxito que a televisão lhe deu marcou sua obra profundamente.

Ele tinha outra vida antes de se dedicar ao universo da dramaturgia. Seu pai trabalhava para a companhia de trens e era obrigado a mudar de residência a cada certo tempo, quase sempre para o norte da Itália, próximo à fronteira com a Suíça, próximo de Milão, onde nasceu Dario em 1926, enrolado na placenta, o que era, segundo crendices da região, bom agouro.

Seu pai tinha ideias avançadas e estava sempre disposto a colaborar com quem deixava o país para o exílio. Havia estado na guerra e sido condecorado; esse valor o fazia invulnerável ante as insídias de seus inimigos. O pai de Dario Fo foi sempre um exemplo moral para seu filho, e um exemplo de alegria, inclusive depois de morto. Como foi também seu avô, um camponês com avançadas ideias agrícolas. Fo nunca esquecerá uma terrível tempestade de granizo que observou num dos invernos com seu avô e as viagens de carroça puxadas por burro.

Fo cresceu acreditando que as telhas dos telhados suíços eram de chocolate. Esteve para afogar-se num lago e foi salvo. Esteve apaixonado pela mulher de seu tio. Aprendeu esgrima para poder se defender dos golpes dos companheiros. Descobriu muito cedo o jazz e o blues e escutava abobalhado os contadores de histórias de seu povoado, sopradores de vidro condenados à loucura: porque soprar vidro produz silicose e a silicose levava pelo menos à loucura. Escutava igualmente abobalhado as histórias do avô quando ia vender para os mercados sua mercadoria, como seduzia as mulheres com histórias de velado conteúdo sexual.

Dario Fo passava o dia desenhando e colorindo. E quando não pintava, estava olhando as mulheres, secretamente apaixonando-se por elas. Roubava frutas nos campos e corria com seus amigos. Foi uma criança feliz até quando chegaram os ecos da ditadura fascista de Mussolini; dessa infância feliz escreveu a primeira parte de O país dos contadores, seu livro de memórias, e o melhor de sua obra: da época que o definiu como ator, como escritor e como pessoa comprometida. Foi quando se apaixonou pela esquerda mais à esquerda.

A infância feliz veio ao fim quando foi chamado para recruta, ainda adolescente. E essa participação na Segunda Guerra Mundial conclui O país dos contadores de uma maneira muito sombria. Também a guerra marcou, sem dúvidas, sua vocação dramática e sua escrita. E deixou um círculo de temor e de tremor: em especial quando se viu vestido com o uniforme do exército nazista e foi obrigado a lutar com a artilharia alemã. Essa etapa terrível é muito bem contada – melhor até que sua própria infância – nestas memórias. Aqui se perde menos em digressões psicossociológicas.

Depois desse livro não se publicou mais uma continuidade sobre suas memórias; a partir de então o fio de sua vida pode ser entrevisto pelas conversas com Giuseppina Manin, como seus desejos de ser pintor, sua paixão por Mantegna e Leonardo, seu ingresso na Academia de Brera, no bairro de Milão em que contatava com Giorgio de Chirico e com seu irmão Alberto Savinio – autênticos gênios consagrados que estavam sempre entre o Giamaica, o café gerido pela mítica mamãe Lina e a leiteria das igualmente famosas irmãs Pirovini. 

A pintura sempre lhe pareceu como uma grande fábula: “Pensemos em Mantegna, em Leonardo, em Caravaggio. Meus preferidos também por sua genialidade narrativa. Em seus quadros, se você olha com atenção pode se perder de tanto acompanhar personagens e tramas. Obras cheias de percursos misteriosos, que podem ser lidas de mil maneiras, em que o tema oficial, mostrado, é um pretexto para introduzir quem sabe quais outros relatos. Em cada grande pintura há sempre uma história e uma contra-história. Sim, os pintores roubaram o método dos fabuladores. E roubei de ambos”. Ao falar de Mantegna e de Leonardo Fo explica sua maneira de escrever: pegar uma história real (ou uma ficção conhecida) e revirá-la para dizer o contrário como faz em seu livro de contos O amor e o riso.

Dario Fo e Franca Rame.

Sua coerente atualização de toda uma tradição – da qual bebeu com todo vigor – aproximando-se aos temas mais caros de nossa sociedade foram suficientes para que em 1997 ganhasse o Prêmio Nobel de Literatura; foi quem abriu a galeria dos chamados nomes populares num lugar onde só pisava a mais alta cultura. O mais curioso é que Bob Dylan, o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2016, outro nome que promove a continuidade dessa tradição do popular no ambiente erudito, tenha alcançado a honraria justo no dia da morte de Fo. No discurso de recepção ao Nobel, o dramaturgo homenageou os menestréis, os bufões renascentistas, Molière e os contadores de histórias de sua infância; uma linhagem de profundas raízes tão necessárias antes como agora e que deu um alcance universal.

Fo iniciou sua carreira como ator no papel de narrador de histórias de raiz popular, até que, nos anos 1950, o mímico francês Jacques Lecoq, durante uma viagem de Itália, o ensinou a usar o cenário oferecendo com as palavras a outra cara do que sua mímica ainda podia oferecer. O resto da escola vinha da rica tradição italiana do teatro popular e, claro, com a parceria com Franca Rame. A insólita mistura da vanguarda transmitida pelo francês, os motivos populares, próximos ou distantes, formam a base totêmica de sua personalidade, que nunca deixou, mesmo depois das aproximações com o erudito, de lutar contra a mera erudição.

Seu compromisso político e sua arte permitiram desenvolver uma linguagem própria, atualizando a tradição oral e a estilística do teatro de rua, oferecendo-lhe uma forma combativa e mordaz, fundamental para a história do século XX. Não só a do teatro, como o leitor poderá verificar sempre na diversidade de sua obra.


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