Crónica dos bons malandros, de Mário Zambujal

 Por Pedro Belo Clara


Considerando uma anterior abordagem aqui exposta ao trabalho deste autor, mais concretamente sobre os principais traços espelhados no título Serpentina, de 2014, é no mínimo justo, tanto por louvor ao homem e seu ofício como para o enriquecimento do acervo deste espaço virtual onde vos escrevo, que nos debrucemos agora um pouco sobre a obra-prima de Zambujal, uma bem-amada crónica que desde 1980 tem vindo a arrebatar os corações das entretanto vindouras gerações.

O próprio criador obedece à força da criação e humildemente admite a sua impotência diante do brilho da mesma, da sua extraordinária capacidade de encantar e de permanecer viva na memória de quem lendo a viveu, tanto como daqueles que, muito depois do seu nascimento, com ela criaram relação, cedendo, quem sabe?, às artes sedutoras de um trabalho tão cativante em sua origem. São suas as seguintes palavras: «Sinto-me sequestrado por estes “bons malandros”. Aos livros que fui escrevendo, e outros que venha a escrever, não lhes valem possíveis méritos».

Qual será, então, a receita de tanto sucesso? Secreta, certamente. Mas alguns dos condimentos que a apuram serão muito provavelmente passíveis de se identificar na escrita fluida e elegante de Zambujal, de construção simples mas magistral, incrivelmente bem-humorada e inteligente. Bem reunidos tais ingredientes, decerto que se adivinhará o celebrado êxito que a obra ao longo dos anos tem desfrutado.

Pela sua brevidade, desde logo poderemos compreender que dificilmente teremos em mãos um romance digno desse nome. Na verdade, o título da obra esclarece tudo a esse respeito: “crónica”. Sem dúvida que é algo criado nesses moldes que seguramos diante do olhar. É pois importante lembrar que este livro, sendo o de estreia do autor, constrói a ponte entre a sua profissão de jornalista e os seus primeiros passos como escritor independente dessa área. Não que tenha abandonado o jornalismo nos anos seguintes, apenas se serviu de um estilo de escrita bastante recorrente no meio que lhe era conhecido para se lançar no universo literário português. Compreende-se.

A obra reúne na maioria dos seus capítulos as histórias de vida de cada personagem que tomará parte num histórico assalto, ficando assim o leitor apto a compreender os motivos que levaram cada uma delas a enveredar por uma vida de índole criminosa. Tendo apenas em conta, uma vez mais, o título da obra, não se estranhará que, com maior ou menor desvio, a tal acabe por remeter. Contudo, estes “malandros” que iremos conhecer com sentido gosto e interesse são, em seu primo carácter, nada mais que um conjunto de bons rapazes e raparigas, vítimas da sociedade onde se viram inseridos e das circunstâncias de uma vivência já à partida de parcas perspectivas. Será caso para se dizer: criminosos, sim; mas não por maldade.

Em abril de 2011 a editora “Clube do Autor” lançou a edição ne varietur (definitiva) da obra, pela qual se pauta este texto, e nela, mais concretamente no prefácio assinado por Gonçalo M. Tavares, esta figura de proa do actual panorama literário lusitano define-a como sendo uma «síntese divertida de uma tragédia». E, de facto, sintetizando a sua essência, é esta uma apreciação justa. Pois não se limita a oferecer as histórias das personagens envolvidas em jeito de crónica, existe também uma narrativa por detrás dessa cortina reveladora. Mesmo adquirindo uma menor extensão na dimensão global da obra, obviamente não se priva da sua importância. Será pois nesse contexto que a adjectivação antes transcrita, “tragédia”, terá o seu sentido completo. Mas não elevemos o pano mais do que o necessário.

No primeiro capítulo, devidamente titulado e com uma breve descrição daquilo que no seu interior iremos encontrar, à boa maneira dramatúrgica, como uma espécie de enunciado de cena, é-nos apresentada a magnífica quadrilha destes “malandros” (bons, claro está), chefiada por Renato, o Pacífico, e os seus planos para executar um extraordinário golpe pelo grupo nunca antes aplicado, tão extraordinário que encerraria de vez, caso bem sucedido, com a carreira criminosa, ou melhor, com a “carreira de malandragem” (pois o fundo destes heróis incompreendidos é, como já sabemos, enternecedor). Infelizmente, certos augúrios trazem no regaço mais do que se poderia contar…

Portanto, a partir deste momento, ou seja, findado o primeiro capítulo da obra, entramos numa série contínua de analepses com referências às origens de cada membro da quadrilha.  Começamos por Pedro, o Justiceiro, que adquiriu tal apelido não só graças a uma pergunta básica da História de Portugal colocada um dia pela professora da sua escola, como também, irónico destino, pela sua reacção peculiar a um incidente ocorrido no mesmo local, algo que o fez escapar da sua terra natal e refugiar-se em Lisboa, onde aprenderia o ofício que faria a sua arte criminosa: uma esplêndida habilidade para abrir fechaduras. Até ao dia em que conhece Renato num bar (o Bar do Japonês, «clube dos proscritos, finamente rasca», um perfeito lugar de recrutamento, como se vê), que ao terceiro copo vencido o convence a se juntar ao bando que, à época, não passava de uma boa ideia.

Segue-se Flávio, o Doutor. E tal atribuição não se estranhará, dado que é o único membro do gangue, perdão, da quadrilha que frequentou a universidade. Quase formado em Direito, cedo se perde de amores pela bela Zinita. E como aos ternos abraços segue-se um desfiar de beijos, e os beijos ateiam incêndios por vezes difíceis de controlar, quando um homem cai em consciência uma namorada grávida está a ser levada pelo braço e um inevitável casamento bate à sua porta. Mas esse nem foi o problema maior do malfadado Doutor. Devido à inflação dos custos da nova vida, adicionando uma certa precaridade monetária nos primeiros anos da profissão, Flávio obriga-se a correr certos riscos para manter a sua nova família. Para cúmulo maior, na única vez que o faz vê o crime ser exemplarmente punido, qual pobre rato que da primeira vez que intenta roubar o queijo acaba morto nas molas da ratoeira… Será contudo na prisão que a sua vida esboçará um novo rumo, ao conhecer, precisamente, Renato. Findada a pena, renegado por filha pequena e esposa, mais amigos de outras aventuras e colegas de trabalho, sem direcção a tomar vê-se sentado no Bar do Japonês. E o resto já poderemos adivinhar.



Arnaldo Figurante, de óbvia alcunha, começou por ser um jovem com talento para o boxe. Até que um combate mal sucedido o arrastou para longe de uma carreira que mal tinha ganho forças para crescer. As esperanças foram desfeitas prematuramente, mas tudo na vida parece ter um propósito: os sonhos cinematográficos que cultivava secretamente desde há muito permaneciam, palpitantes. Não obstante as agruras da existência, não havia perdido aquela ilusão juvenil. Mal a oportunidade se lhe depara, mergulha de cabeça no meio. Um papel, apenas… E como figurante num filme franco-português. No entanto, acontece que por aqui e por ali já se ia imiscuindo em práticas muito pouco respeitáveis. Abandonara os punhos e ganhara subitamente um fascínio por armas. Vida fácil, pensar-se-ia: «salteador de travessas e becos, dado aos copos e à briga com amigos e inimigos, maníaco da pistola». Até conhecer Renato e, por força do seu código, ter de acalmar o temperamento de boxeur e abandonar alguns dos seus hábitos em nada recomendáveis.

Adelaide era uma menina feia. Além disso, fez-se uma mulher magrinha. A sua alcunha de rua não permite dúvidas. Num baile de bairro conhece Carlos, que sem nada lhe dizer já sabia ser o amor da sua humilde vida. Mas esta, a vida, muitas vezes se assemelha a uma roda, ou seja, dá voltas e voltas, e por vezes entorta-se. Quando a polícia executa uma rusga à casa onde ambos partilhavam o seu amor, Adelaide vê-se forçada a entrar no mundo do «sobe-e-desce da Avenida», ou melhor dizendo, da prostituição. Mesmo sem o saber, somente desconfiando, era cúmplice do esposo nos seus furtos a residências, e agora caminhava as ruas com quem a amparou, a desinibida e avisada Lina Despachada. Incapaz de continuar a vida nesse vai-e-vem de fregueses em becos obscuros, procurará abrigo junto dos fiéis amigos de Carlos. Somente Renato e Marlene, a sua companheira, lhe darão guarida e, posteriormente, acento no seu ínclito grupo de malandragem.

Silvino Bitoque será talvez o único destes “sete magníficos” que apresenta como inata a sua vocação para a ladroagem, porta menor de entrada para o universo do crime, se degenerada. Um autêntico «trafulha por vocação» que desde muito cedo iniciara a sua longa lista de incidentes: «Ao que constava da memória da família, o primeiro roubo de Silvino foi a chupeta do irmão gémeo». Cleptomaníaco de aparência, claro está, pois parecer médico haveria de negar a suspeita, mesmo que o douto juiz tenha como tantos outros sofrido os actos de rapinagem do irrequieto petiz. Ora, torna-se evidente que uma inclinação tal só poderia dar em vara torta. As escapadelas nocturnas do colégio interno em Lisboa, o furto de um Mercedes de matrícula diplomática e a vida dúbia nos Estados Unidos, com o FBI à espreita em cada esquina, acabariam por tecer a lenda do Bitoque. Mas nenhum artista do roubo e da mentira reina para sempre. Até que uma nova figura surja em cena, demonstrando-se mais inteligente e capaz que a anterior, os reinados do engodo em princípio não sofrerão ameaça. Mas Silvino não escaparia ao revés. Desfalcado de grandes montantes por artes que ele próprio quase inventara, dá por si num certo bar à conversa com alguém desejoso de formar uma competente quadrilha. Com «dois votos a favor e um contra», uma nova linha na sua existência malandra acabava de ser desenhada.

Resta-nos apenas Renato e Marlene. A eles, o autor dedica um capítulo inteiro e em conjunto, o sétimo, dado que ambas as histórias se interligam com um passado em comum e não isento das suas tragédias: «Linhas paralelas que não tardaram a encontrar-se porque a vida não é assim tão geométrica». Marlene era filha de artísticas de circo e uma promissora trapezista no encalço dos pais, ao passo que Renato acompanhava os progenitores na sua vida andarilha de feirante. No fundo, duas crianças com infâncias errantes até as sortes as cruzarem. Renato sofre uma tragédia familiar que coloca o seu rumo na direcção de Marlene e, sem o saber, moldaria a sua futura alcunha, o Pacífico. Cresceram os jovens e, entre afastamentos e aproximações, percalços de saúde das ascendências familiares e novas oportunidades de carreira, paixões e ciúmes exaltados, fogem do circo que se tornara a sua vida. Sem grandes modos de expandir uma sólida ideia de futuro, a via do roubo depara-se-lhes com a única possível e aceitável, fruto de alguma agilidade física e talento para o engano. Assim foi tomando forma a nova vida destes Bonnie e Clyde em versão portuguesa, e menos violenta também, hábil no engodo e com extrema aversão a armas de fogo.

Este é o corpo principal da narrativa, exposto fielmente através dos bem calibrados moldes que Mário Zambujal tanto utiliza, ao ponto de deles fazer o seu marcante estilo literário. Contudo, não nos esqueçamos do grandioso golpe que ficou a cozinhar desde o primeiro capítulo. Não obstante uma desistência de última hora, o assalto ao museu Gulbenkian, em Lisboa, mantém-se bem vivo nas ideias. Correrão as coisas como pensaram, dada a extrema originalidade na abordagem ao plano? Qual será a tragédia que se esconde nas dobras do tempo esperando a hora do seu ataque?

Talvez, agora que este texto se alongou, se consiga entender melhor o porquê de um sucesso tão duradouro. E talvez até se consiga resumir o caso numa só frase. Este que vos escreve decidiu arriscar: os “malandros” que ficam na história de todos nós são sem dúvida os mais autênticos. Pois como cativar audiências sem sincera malandragem por detrás de disfarces tão malandros? “Malandros”, repito, e não “maldosos”. A disparidade existe, e torna-se agora evidente: requer-se um coração afogado em paixões para merecer um tamanho epíteto. Bem se vê que não é graça para qualquer bandido.

"Por muitas penas passaram pelo que fizeram penar, mas não se evadiram da vida que tinham. Porquê essa vida? «Era o destino», dizia Marlene. (…) Também gostariam de folhear o futuro, Marlene dizia que estava tudo escrito, mas era segredo, só depois se sabia, tarde de mais – era o destino."

***

Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservam-se a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogs literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012), O velho sábio das montanhas (2013), Cristal (2015) e Quando as manhãs eram flor (2016). Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blog pessoal do autor – Recortes do Real; Pedro organiza também o Uma luz a Oriente, onde partilha poemas de origem oriental, e The beating of a celtic heart, blog dedicado a traduções de poemas e canções de origem celta. 


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