A utopia do título perfeito

Por Cristian Vázquez

Ilustração: Daniel Savage


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Há alguns escritores muito talentosos para intitular seus livros; outros, por sua vez, nem tanto, e muitas vezes necessitam ajuda de fora. Certa vez ouvi dizer de um autor – acredito que isso tenha uma pouco de anedota mas tem também muita verdade – que às vezes lhe apareciam títulos e gostava tanto deles que logo se sentia motivado a escrever romances ou contos apenas para intitulá-los. Com frequência é o editor, no fim de tudo, o responsável pelo título, quem o melhora com sugestões à proposta do autor. Um dos casos mais célebres é o do romance O coração é um caçador solitário, que sua autora, Carson McCullers, havia pensado chamar O mudo.

Segundo Elena Rius, em seu livro A síndrome do leitor (tradução livre de El síndrome del lector, publicado em espanhol pela Trama Editorial em 2017), “os autores se dividem mais ou menos em dois grupos iguais, entre aqueles que desde o princípio pensaram um título para o livro que ainda não começaram a escrever e os que mantêm o característico ‘título provisório’ ou ‘sem título’ até concluir a versão definitiva”.

Sabe-se de alguns livros famosos que mantiveram o “título provisório” durante o processo de escrita. Enquanto escrevia Cem anos de solidão, Gabriel García Márquez chamava essa obra de A casa. Para James Joyce, Finnegans wake foi – durante os dezessete anos que levou para escrevê-lo – Work in progress. Rius enumera alguns títulos anteriores ao O grande Gatsby, de F. S. Fitzgerald: Trimalchio in West Egg (Trimálquio em West Egg), Among ash-heaps and millionaires (Entre as cinzas e os milionários), Under the red, white, and blue (Sob o azul, vermelho e branco) e Gold-hatted Gatsby (Gatsby o do chapéu de ouro). Quem sabe qual teria sido a sorte de seu belo romance se optado por algum desses títulos alternativos, que hoje nos soam tão estridentes.

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A descoberta de um bom título pode ser um ato misterioso, fruto de longas especulações ou uma revelação repentina, inesperada, como se uma epifania. O escritor argentino Sergio Bizzio publicou em 2008 um livro de poemas intitulado Te desafio a correr como um idiota pelo jardim (tradução livre de Te desafío a correr como un idiota por el jardín). De onde sai um título tão diferente como esse? “Quando a editora Mansalva me propôs editar o livro não encontrava o título” – contou Bizzio numa entrevista. “Nunca tive problemas com os títulos, mas desta vez não me vinha. Uma noite meu filho e eu estávamos numa festa muito chata, os dois sentados numas cadeirinhas ao ar livre, e logo meu filho me disse: ‘Papai, te desafio a correr como um idiota pelo jardim’. Aí estava, enfim! E fomos correr”.

Um bom título pode estar escondido na obra, à espera que o autor remova o véu que lhe cobre e o reconheça. É o caso, por exemplo, do conto “The life you save may be your own” (A vida que salvar pode ser a sua), de Flannery O’Connor. Até o fim da narrativa, o protagonista dirige um carro por uma estrada e vê um letreiro que anuncia essa frase. Parece que enquanto O’Connor escrevia não tinha ideia de que o conto ia receber esse título. Mas quando o percebeu – quando leu o letreiro, poderíamos dizer – já não pode imaginar que pudesse intitular de nenhuma outra maneira. Parece-me extraordinário, porque forma parte do conto como um dado quase à margem, secundário, mas como título lança seus sentidos em múltiplas direções.

Os bons títulos também estão escondidos em obras alheias. Dizem que John Steinbeck escreveu um de seus romances convencido de que intitularia Something that happened (Algo que aconteceu), mas no último momento leu o poema “A um rato”, de Robert Burns, que afirmava em dois de seus versos que “O melhor projeto, do rato ou do homem, / muitas vezes falha”. O escritor estadunidense decidiu então que seu romance se chamaria Ratos e homens.

Não há dúvida de que a poesia é uma grande fonte de inspiração. Para citar outro exemplo: quão bonito é o título do filme Eternal sunshine of the spotless mind (Michel Gondry, 2004), um verso do poema “De Eloisa para Abelardo”, escrito em 1717. Na América Latina se traduziu como Eterno resplandor de una mente sin recuerdos (o que corresponde à tradução brasileira “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”). Na Espanha, por sua vez, talvez porque o protagonista era Jim Carrey, pareceu melhor intitular o filme como ¡Olvídate de mí! (em tradução livre, Esqueça de mim!) Quem sabe quantas pessoas acreditaram que se tratava de outra comédia simplista do ator de O Máscara e deixou de ver o filme por esse motivo.

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As traduções dos títulos são, portanto, toda uma questão à parte. Pela decisão inicial do tradutor e pelas discussões que podem ser suscitadas no futuro. Dizem os especialistas que A transformação é um título “mais apropriado e honesto” do original de Franz Kafka que A metamorfose. Mas, quando uma versão se impõe e um título leva décadas inserido na tradição e na cultura de uma língua, é possível se mudar depois? Tem sentido? Vale a pena?

J. D. Salinger, diferente de Kafka, teve a oportunidade de dar sua opinião. Consultado sobre qual título lhe parecia mais apropriado em espanhol para The Catcher in the rye, traduzido primeiro na Argentina como El cazador oculto (O caçador oculto) e depois na Espanha como El guardián entre o centeno (próximo do título no Brasil, O apanhador no campo de centeio), escolheu este último. A escolha não evitou o debate. A propósito: há pouco vi no Netflix o filme Asthma (de Jake Hoffman, Estados Unidos, 2014) e, quando uma das personagens se referiu ao romance, na legenda se leu El cazador oculto. Senti uma satisfação parecida a quando soube que para nós latino-americanos, apesar de tudo, o Joker continua sendo o Guasón¹.

Minha resposta é que, em certas ocasiões, o título não pode ser mudado. Quando se impõe, já é o título da obra. Mesmo se não é o mais exato. Ainda assim é errado. Seria, em todo caso, uma dessas situações em que deveríamos desfrutar da beleza dos erros na escrita.

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Assim, cada um com suas manias, então. Juan Filloy colocou em seus mais de sessenta livros títulos de sete letras, nem uma a mais nem uma a menos: Op Oloop, ¡Estafen!, Decio 8A, Yo, yo y yo. Hoje em dia pareceria com Los Ochoa se enganou, mas quando o escreveu, em 1972, a ch era considerada uma só letra.

Pablo Ramos, por sua vez, intitula todos seus livros com construções de cinco palavras: El origen de la tristeza, Cuando lo peor haya passado, Hasta que puedas quererte solo (A origem da tristeza, Quando o pior tiver passado, Até que possas desejar-te sozinho – respectivamente). Contou que sua “ideia dos títulos longos” se deve ao fato de ter sido sócio, quando jovem, de uma biblioteca chamada “Veladas de estúdio después del trabajo” (Estudo noturno depois do trabalho). Por isso, diz que os títulos “no têm que ser El hambre, La noche. Isso é produto da estilização: colocar um título como uma estratégia de marketing publicitário, um título chamativo e curto. O título de uma obra não tem que ser nem chamativo nem curto. No possível tem que referir ou ser a essência poética do que se quer transmitir”.

Acredito que é a chave dos melhores títulos: frases que condensam “a essência poética” da obra. Muito melhor se isso se faz de um modo “não figurativo”, indireto, oblíquo. E melhor ainda se a frase faz parte do texto, e se, colocada como título, adquire uma nova profundidade e expande seus sentidos. Não é simples, claro está. O título perfeito talvez seja uma utopia. Mas aí está, por exemplo, “A vida que salvar pode ser a sua”, de Flannery O’Connor. Os que escrevemos podemos tomar isso como um modelo, uma pista. Talvez, de tanto tentar, possamos acertar com algo que se pareça mais ou menos.

¹ Coringa, no Brasil.

* Este texto e uma tradução de “La utopía del título perfecto”, publicado aqui, em Letras Libres.


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