Palavras impossíveis: livros a partir do horror de Auschwitz


Por Guillermo Altares

Sobreviventes do campo de Ebensee, Áustria. O registro data de 7 de maio de 1945, após alguns dias da libertação.

 
Elie Wiesel, Prêmio Nobel da Paz, sobrevivente de Auschwitz, autor de livros como A noite, acabava de voltar de Sarajevo, sitiada então (em 1992) pelas forças genocidas sérvias. Visitou Madri e falou do longo século XX, em que a violência parecia não ter fim. Perguntado sobre o campo de extermínio nazista, explicou: “Ainda não conseguimos abordar este tema. Está fora de todo entendimento, de toda percepção. Podemos dizer algumas situações, alguns fragmentos; mas não a experiência. O que vivemos ninguém jamais conhecerá, ninguém compreenderá”.

Setenta e cinco anos depois do fechamento do campo nazista alemão, em 27 de janeiro de 1945, Auschwitz-Birkenau gerou uma incontornável produção literária e histórica, milhares de volumes em todas as línguas. Os livros sobre o campo de extermínio poderiam se dividir em três categorias. A primeira, a fundamental, os relatos dos que estiveram aí, entre os quais se contam uma variedade de obras-primas como as de Wiesel, Primo Levi – a trilogia de Auschwitz¹ – ou Imre Kertész, Prêmio Nobel de Literatura, autor de Kadish para uma criança não nascida ou Sem destino. À medida que avança o século XXI e os testemunhos vão desaparecendo, suas palavras ganham maior importância. Nesta categoria poderia se incluir ainda a HQ Maus, de Art Spiegelman, ganhador do Prêmio Pulitzer, que relata a vida de seu pai, sobrevivente do campo, e O diário de Anne Frank, que permite compreender o terror vivido pelos judeus europeus fora dos campos.

Todos esses livros de testemunho – Última parada: Auschwitz, de Eddy de Wind, Auschwitz e depois, de Charlotte Delbo ou Sem flores nem coroas (tradução livre), de Odette Elina – recolhem uma experiência que não pode ser transmitida, que não pode ser compreendida e que, talvez, estejam em suas palavras. Além disso, 80% dos prisioneiros que chegavam a Auschwitz eram enviados imediatamente para as câmaras de gás e nenhum deles sobreviveu. Não existe, portanto, nenhum testemunho da experiência que melhor define o horror de Auschwitz, do centro do extermínio em escala industrial que converte o Holocausto num crime sem parâmetros na história. Os que sobreviveram foram alguns dos poucos sonderkommando, presos obrigados pelas tropas nazistas a se ocupar do trabalho nessa fábrica de cadáveres. Dois deles deixaram seus testemunhos por escrito, que vão outra vez além do compreensível: Shlomo Venezia, em Sonderkommando e Filip Müller, em Três anos nas câmaras de gás (tradução livre)².

A segunda categoria está centrada nos livros de história, nos ensaios que tratam de reconstruir o funcionamento do campo de concentração baseando-se em testemunhos, de sobreviventes e também de algozes, assim como em documentos. Dois são especialmente importantes: um do historiador e cineasta britânico Laurece Rees, Auschwitz. The Nazis and Final Solution (Os nazistas e a solução final, em tradução livre), e outro da historiadora alemã Sybille Steinbacher, Auschwitz. Geschichte und Nachgeschicht (História e posteridade, em tradução livre). Este último consegue em pouco mais de duas centenas de páginas, em formato pequeno, reunir com uma grande quantidade de dados e um rigor implacável e eficaz o horror administrativo do campo. Steinbacher resume em dados a banalidade do mal: os judeus tinham que pagar os trens que os levavam para a morte, um bilhete de terceira classe, com desconto para os menores de 10 anos. As SS obtinham um desconto de grupo para transportes de mais de 1000 passageiros e os trens de regresso, vazios, eram gratuitos. “Trata-se de um dos detalhes mais terríveis da organização do assassinato em massa”, escreve Steinbacher.

E, por último, estão os romances, a ficção que foi construída a partir de Auschwitz, tanta que se converteu numa forma literária própria. Alguns livros têm vendido milhões de exemplares em dezenas de idiomas, como O menino do pijama listrado, de John Boyne, e O tatuador de Auschwitz, de Heather Morris. O Memorial de Auschwitz, que se ocupa da conservação e da gestão dos restos do campo de extermínio, tornado patrimônio da humanidade pela Unesco, se pronunciou sobre estes dois livros e desaconselhou sua leitura para entender a realidade histórica devido a uma sorte de erros factuais. Outro romance, A bibliotecária de Auschwitz, do escritor espanhol Antonio Iturbe, também alcançou êxito internacional. Trata-se de uma reconstrução rigorosa de alguns fatos históricos baseando-se em entrevistas com sua protagonista. Apesar de ser ficção, A escolha de Sofia, de William Styron, é outro grande romance sobre o Holocausto e os trágicos dilemas suscitados pelo sistema criado pelos nazistas para desumanizar suas vítimas.

No fim, frente ao silêncio da poesia como predisse o filósofo Theodor Adorno, ficam as palavras dos sobreviventes, a viagem ao incompreensível, ao território da morte e da desumanização:

“Jazíamos num mundo de mortos e de fantasmas. O último vestígio de civilização desaparecera ao redor e dentro de nós. [...] É um homem quem mata, é um homem quem comete ou suporta injustiças; não é um homem que, perdida já toda reserva, compartilha a cama com um cadáver. Quem esperou que seu vizinho acabasse de morrer para tirar-lhe um pedaço de pão, está mais longe (embora sem culpa) do modelo de homem pensante do que o pigmeu mais primitivo ou o sádico mais atroz.” (Primo Levi, É Isto um Homem?)³  

“Nosso primeiro ato como homens livres foi atirar-nos para as provisões. Isso foi tudo que pensamos. Nenhum pensamento de vingança, ou dos pais. Só do pão.” (Elie Wiesel, A noite)4

“Ao final daquele dia senti, pela primeira vez, que algo havia se degradado no meu interior, e a partir daquele dia todas as manhãs eu me levantava com o pensamento de que aquela seria a última manhã em que me levantaria”. (Imre Kertész, Sem destino)5


Notas do tradutor:

¹ Formada por É isto um homem?, A trégua e Os submersos e os salvos.
² Os dois livros são, até o presente, inéditos no Brasil.
³ Da tradução de Luigi Del Re, publicada pela Editora Rocco (Rio de Janeiro, 1988).
4 Da tradução de Irene Ernest Dias, publicada pela Ediouro (Rio de Janeiro, 2006).
5 Tradução a partir do texto em espanhol.


* Este texto é uma tradução de “Palabras imposibles: libros desde el horror de Auschwitz”, publicado aqui no caderno Babelia, do jornal El País.

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