A unhada da vida. Uma leitura de Machado de Assis

Por Felipe de Moraes



“(...) je vis um pauvre saltimbanque, voûté, caduc, décrépit, une ruine d’homme, adossé contre un des poteaux de sa cahute; une cahute plus misérable que celle du sauvage le plus abruti, e dont deux bouts de chandelles, collants et fumants, éclairaient trop bien encore la détresse.”
“Le vieux saltimbanque”, Charles Baudelaire


“Outros leram da vida o capítulo, tu leste o livro todo.”
“A um bruxo, com amor”, Carlos Drummond de Andrade



Ilustração para Memórias póstumas de Brás Cubas. Mariana Rio.


I
“O DESOLADO CRONISTA DO ABSURDO”1



Lúcia Miguel-Pereira, em seu Prosa de Ficção (de 1870 a 1930), escreve acerca de Machado:

“Por isso é que a Machado de Assis se pode chamar de realista. Sem preocupação de escola literária desde que se libertou do romantismo, ele observou, como ninguém entre nós, as criaturas em toda a sua realidade, dando a cada aspecto o justo valor, isto é, apreciando a todos com um critério relativo. Foi assim que esse tímido realizou uma audaciosa revolução na nossa literatura ficcionista, até ele subordinada a valores absolutos, que reduziam a simples figurantes as personagens dominadas pela natureza e pela ática convencional. No mais famoso dos romancistas que o precederam, José de Alencar, o caráter simbólico emprestado aos heróis – aos dos livros indianistas, os mais importantes – como que os desumanizava; em Joaquim Manuel de Macedo tudo se passa como se o amor fosse o centro de todas as coisas; o mesmo Manuel Antônio de Almeida foi antes um cronista com imaginação e estupenda capacidade de reproduzir cenas e traçar retratos do que um romancista completo, um criador de pessoas tiradas do plano da vida, mas que só no da arte adquirem toda a significação. Estas, quem as fixou foi Machado de Assis.” (p. 72, grifos meus)

O “critério relativo” de que fala Lúcia Miguel-Pereira é uma das vigas mestras para que compreendamos o narrador machadiano e sua forma de conduzir a narrativa e a análise de suas “criaturas”. Nos contos, a mirada fria lançada pela instância narrativa sobre a matéria narrada produz um discurso onde o juízo moral é suspenso e substituído por uma observação penetrante, aguçada e irônica que o narrador, enquanto senhor supremo de suas personagens, dispende. O pedaço de vida que seu olhar capta é esmiuçado e avaliado com uma paciência diabólica, deixando às vistas do leitor as contradições e ambições mais sombrias que a manutenção de uma condição burguesa do século XIX tentava esconder; o status, portanto, funcionava como máscara que acobertava os afetos mais íntimos e violentos, na tentativa de manter uma mediania assegurada pelas aparências. Esse relativismo como técnica de análise da vida do homem fez de Machado um autor que remava contra a maré das escolas literárias a que seus contemporâneos estavam ligados; se o romantismo lhe soava como falso adorno, como representação que escamoteava o “justo valor” dos atos e do cotidiano, o realismo como escola tampouco o definia nas tintas de um “real exagerado e caricatural”. O que verdadeiramente explorava era a realidade do “visível e do invisível” (p. 72), para além de uma bandeira estética que precisasse levantar. É com ironia que Brás Cubas expõe essa relativização de valores machadiana, no capítulo XIV de suas Memórias póstumas:

“Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como um corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com ele nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixão, o transportou para seus livros.” (p. 618)

As personagens também não escapam de sua cota de ambiguidade: buscando por vezes uma afirmação, elas ficam à mercê entre o que realmente querem e aquilo que efetivamente podem fazer. “Eterna peteca entre a ambição e a vocação”, diz lapidarmente o narrador do conto “Um homem célebre”. Tal movimento ambíguo exposto pelo narrador, deixa entrever a máquina complicada que conduz cada atitude e mobiliza uma fala, um gesto ou um simples pigarro. Mestre em captar esses quadros, Machado de Assis mergulha em questões fundas revestidas por enredos simples; joga com expressões que dizem A, mas no fundo, bem no fundo, estão dizendo B; avalia a consciência (ou a sua falta) nos ambientes das decisões, sejam elas políticas, sociais, artísticas, pessoais e afetivas. O móbile de cada personagem, na cena restrita em que é flagrado, reverbera às vistas do narrador que não se furta a pingar sua gota de sarcasmo, mostrando ao leitor aquilo que o decoro impedia de confessar.

A consciência ilumina as fissuras da intenção, e Machado de Assis sabia bem como iluminá-las. O autor sondou como poucos a figura do escritor, podemos dizer do artista em geral, no Rio de Janeiro dos tempos do imperador Pedro II. A lucidez que teve para com a observação das consciências de suas personagens, também teve para consigo próprio, perscrutando o que era a atividade de escrever numa sociedade que era a sua e num tempo que era o seu. Perguntas que, se não fez direta e abertamente, abarrotaram suas crônicas, seus contos e romances: Qual a função do escritor e do artista? Devem eles manifestar seu partido? Quais os limites de sua arte e em que medida ela chega intervir no rumo das coisas? Pode um escritor, num país como o Brasil, ter relevância? E se a tiver, como proceder? Qual a identidade de um artista?... São indagações que, sobretudo hoje, urgem, mas que o “Bruxo do Cosme Velho” já antecipava com a justa atenção. Estando no centro de todas elas, e não fornecendo respostas definitivas a nenhuma, Machado sustentou um modo de escrever que foi mais fundo que qualquer outro escritor de nossa língua na atenção dada aos fenômenos que compuseram nossa história.

Em sua última crônica, datada de 28 de fevereiro de 1897 para o jornal A Semana, ele nos dá um balanço dos mais verdadeiros acerca do ato artístico. Com um acento melancólico, mas sem deixar o aparato irônico de lado, diz:

“Adeus, leitor. Força é deitar aqui o ponto final. A mim, se não fora a conveniência de ir para a rede, custar-me-ia muito pingar o dito ponto, pelas saudades que levo de ti. Não há nada como falar a uma pessoa que não interrompe. Diz-se-lhe tudo o que se quer, o que vale e o que não vale, repetem-se-lhe as coisas e os modos, as frases e as ideias, contradizem-se-lhe as opiniões, e a pessoa que lê, não interrompe. Pode lançar a folha para o lado ou acabar dormindo. Quem escreve não vê o gesto nem o sono, segue caminho e acaba. Verdade é que, neste momento, adivinho uma reflexão tua. Estás a pensar que o melhor modo de sair de uma obrigação destas não difere do de deixar um baile, que é descer ao vestiário, enfiar o sobretudo e sumir-se no carro ou na escuridão. Isto de empregar tanto discurso faz crer que se presumem saudades nos outros, além de ser fora da etiqueta. Tens razão, leitor; e, se fosse tempo de rasgar esta papelada e escrever diversamente, crê que o faria; mas é tarde, muito tarde. Demais, a frase final da outra semana precisava ser explicada e cumprida; daí todos estes suspiros e curvaturas. Falei então na confusão da minha alma, e devia dizer que em que é que ela consistia e consiste, e cuja era causa. A causa está dita; é a natural melancolia da separação. Adeus, amigo, até à vista. Ou, se queres um jeito de falar mais nosso, até um dia. Creio que me entendeste, e creio também que me aplaudes, como te anunciei na semana passada. Adeus!” (p. 1283)
               
O romancista e o contista penetravam o cronista, e o cronista escrevia com a lucidez que lhe cabe, de um bom observador do momento, as páginas dos contos dando às personagens a pele do real. Tamanha consciência da própria escrita resultava dessa busca de identidade (“um medalhão perfeito e acabado”) da própria arte.

Essa consciência, portanto, do poder e querer do fazer literário, no autor de Dom Casmurro foi tão aguda em se tratando de sua identidade como escritor que gerou dois contos em que o escopo da reflexão sai do indivíduo Machado de Assis e passa para as suas personagens: um, sobre o “compositor de polcas” do conto “Um homem célebre”, do livro Várias histórias de 1896; outro, sobre um “pintor habilidoso” do conto “Habilidoso”, que não foi recolhido em livro, mas publicado na Gazeta de Notícias em 6 de setembro de 1885. As duas personagens desses contos, Pestana e João Maria, se veem divididas entre o desejo do reconhecimento – “[...] mas o primeiro lugar na aldeia não contentava a este César, que continuava a preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma” (p. 456) – e o efetivo papel que desempenham no seu meio. Pestana queria compor como seus santos, figurar encadernado “entre Bach e Schumann”, mas ao cabo só consegue compor polcas “saracoteantes”, ritmos da moda e que se popularizam logo. João Maria pinta quadros infindáveis... Mas a esse “pobre-diabo”, já chegaremos logo.

O válido dessa reflexão sobre a identidade e a consciência é que posta dentro das narrativas, elas operam como lentes de análise para as duas personagens: o narrador de “Um homem célebre” não hesita em ser cruel no retrato que nos dá da vida de Pestana. Ele nos mostra que a incongruência do compositor não está unicamente relacionada ao talento em não conseguir compor o repertório clássico, mas tem relação com o que a sociedade requisitava como gosto definido, embate, portanto, que se estabelecia entre a criação pessoal e o ritmo exigente da moda. Diferentes da grande maioria das personagens machadianas, João Maria e Pestana não estão assentados num conforto de classe abastada; ambos são pobres e atrelado ao seu elã artístico está a dependência de um trabalho formal que garanta o andamento da vida – o compositor dá aulas de piano, sem dúvida para a elite; o pintor tem uma ‘‘loja de trastes’’, que mal vende, e uma mulher e um filho que sustenta às duras penas. Penso que atentar para esse embate entre a arte e o trabalho (o ócio e o nec ócio [negócio]) nos permitirá fazer uma leitura bem rente ao conto “Habilidoso”.

Feito este pequeno excurso sobre o estilo de Machado, podemos passar agora a análise e comentário do conto “Habilidoso”. Nosso intuito será observar a sua forma muito peculiar, mesmo dentre a diversidade dos contos do autor, e relacionar como ela auxilia na progressão do enredo e com o próprio “ofício” de João Maria; o narrador também será objeto de interesse, ele e sua relação com a personagem, mostrando à primeira vista uma ironia bem menos comum que o geral da relação narrador-personagem nos contos elaborados por Machado. Avencemos pelo beco.

II
ÓLEO SOBRE TELA

Paremos aqui. Na galeria de pinturas machadianas, “Habilidoso” seria o tipo de quadro escuro que numa exposição atrai pouco porque a luz é esparsa e as tintas carregadas de “sombra”2. Com pouca luminosidade, o espectador não distingue bem, força a vista para enxergar as linhas e, enganado por falsas proporções, se angustia pela atmosfera decadente e lúgubre. Se esperam encontrar esplendor, rococós, pompas de ilusão, o leitor dos quadros de Machado de Assis vai se aborrecer: se quer um Delacroix, Machado lhe dá um Goya enlouquecido; se anseia por um Renoir, recebe um Munch de linhas estranhas. Os meios sempre serão o da contenção; avessas ao explosivo das cores e aos cenários deslumbrantes, suas histórias partem do raso do cotidiano – das cenas banais da vida de todo dia, das ações dos indivíduos motivadas pelo interesse e pelas ideologias – e são levadas a uma profundidade que raramente foi alcançada em língua portuguesa. A cena de João Maria não escapa dessa contenção, ainda que destoe um tanto dos contos mais famosos do autor. É nesse pintor “habilidoso” que vamos nos deter um pouco para tentar acompanhar a sua “consciência”, ou a falta dela, desse que é “apanhado em toda a sua verdade” pelo narrador. 

O enredo é simples: Um homem de trinta e seis anos, o “eterno João Maria”, tem uma loja de “trastes”, onde vende badulaques e coisas velhas, ao mesmo tempo em que concilia a atividade da pintura de quadros de Virgens. Sua vida é extremamente modesta, é casado com uma mulher que faz todos os deveres da casa, e tem um filho. Sua infância e mocidade ficaram espremidas entre o querer da família e dos parentes e a passividade dele próprio em aceitar em ser um “brinco”. Após tentativas de reconhecimento pelos quadros que pintava, chegando a expô-los, casa-se, e passa a pintar para si mesmo. O conto termina num tom melancólico e algo patético com João Maria pintando sua “sétima” Virgem, e com os meninos, que observam, sentados na calçada.

A narrativa começa pelo fim, com a instauração de um aqui e um agora que o narrador estabelece, tornando o leitor um integrante da cena, convidado a partilhar de um ponto de vista muito próximo, focalizando a personagem: é como observar um quadro numa moldura. Sabemos também, pela descrição do narrador, que nos encontramos numa “espécie de mundo insulado”, sem a presença do movimento de transeuntes ou fregueses; em suma, um local onde a “notoriedade” é nula e o reconhecimento não passeia na calçada. Esse ambiente, muito diferente da movimentada Rua do Ouvidor no centro da Corte, conta com uma moça que se penteia e vem se exibir à janela para ninguém, e cinco garotos que se espantam com a habilidade de João Maria. Tal cenário, indispensável para o desenvolvimento do conto, Machado o pinta com a máxima cautela, empregando minuciosamente cada palavra. Nos faz perceber que o artista pinta para um público estranho que está longe de corresponder àquele dos salões da Academia das Belas-Artes, um vazio que preenche o próprio espaço do conto e pontua como a figura desse pintor não tem uma identidade própria, tampouco uma atribuída por outros com vias de consagração. Com ênfase na simplicidade do local, na sua pobreza e no seu isolamento, o narrador dá o tom central do conto:

“Paremos neste beco. Há aqui uma loja de trastes velhos, e duas dúzias de casas pequenas, formando tudo uma espécie de mundo insulado. Choveu de noite, e o sol ainda não acabou de secar a lama da rua, nem o par de calças que ali pende de uma janela, ensaboado de fresco. Pouco adiante das calças, vê-se chegar à rótula a cabeça de uma mocinha, que acabou agora mesmo o penteado, e vem mostra-lo cá fora; mas cá fora estamos apenas o leitor e eu, mais um menino, a cavalo no peitoril de outra janela, batendo com os calcanhares na parede, à guisa de esporas, e ainda outros quatro, adiante, à porta da loja de trastes, olhando para dentro.” (p. 225)  

Tal tom rebaixado já antecipa uma pergunta que será feita quatro parágrafos adiante: João Maria pinta ‘‘o quê, e para quê’’? Essa franja de ironia do narrador nos leva a outras indagações que giram em torno de uma identidade possível e precária: como pode um homem como João Maria pintar? O que ele entende por arte? Por que pinta?... Não são perguntas que o narrador faça diretamente, mas o leitor intui que elas preenchem as entrelinhas. Nós não temos uma reposta definitiva a todas elas, mas acredito que possamos refletir a respeito e comentar os pontos mais proeminentes.

Os dois parágrafos seguintes à abertura do conto podem nos fornecer algumas pistas. Sabemos que atrelado a arte, está o negócio3. João Maria trabalha vendendo o pouco que a pequena loja permite, é um homem maltratado pelo tempo, (“a vida feriu a natureza”), e pela condição em que vive. Ele não teria, portanto, nenhuma das condições que permite a um artista criar: a beleza intrínseca e a sua percepção nas coisas, o tempo livre de ocupações utilitárias e o Gênio (Geist), como queriam os românticos. Podemos, desse modo, recolocar nossa primeira pergunta: como pode um homem como João Maria pintar? À medida que sua vida vai sendo nos sendo apresentada pelo narrador, por meio de uma digressão temporal, tal indagação parece ficar mais e mais marcada. Essa motivação mais elevada que guiaria todo ato de criação artístico, em João Maria se fazia ignorar: “João Maria ignora absolutamente as primeiras lições do desenho [...]” (p.225, grifo meu). Tal desacordo, entre a imagem romântica, sagrada e tradicional do artista e o homem que pinta diante de nós, é reforçada pela sua dupla condição – a de acúmulo “do negócio com a arte”.

A segunda pergunta que propus acima como guia para identificação dessa consciência que estamos procurando traçar entre a João Maria e sua arte – O que ele entende por arte? –, dá ideia da metodologia, se assim pudermos chamar, desse pintor “muito habilidoso”:

“Toda arte tem uma técnica; ele aborrecia a técnica, era avesso à aprendizagem, aos rudimentos das coisas. Ver um boi, reproduzi-lo na tela, era o mais que, no sentir dele, se podia exigir do artista. A cor apropriada era uma questão dos olhos que Deus deu a todos os homens; assim também a exação dos contornos e das atitudes dependia da atenção, e nada mais. O resto cabia ao gênio do artista, e João Maria supunha tê-lo. Não dizia gênio, por não conhecer o vocábulo, senão no sentido restrito de índole – ter bom ou mau gênio – mas repetia consigo mesmo a palavra, que ouvia aos parentes e aos amigos, desde criança.
– João Maria é muito habilidoso.” (p. 226, grifos meus)

Algumas palavras dos comentários do narrador chamam a atenção. Nesse perfil do pintor, três expressões são cruciais: “técnica”, “gênio do artista” e “supor”. De posse delas vemos que João Maria “era avesso à aprendizagem”, preferindo não ser adepto de uma técnica, seguindo muito da intuição e da vontade que o impelia a pintar o que quer que fosse no início, de papeis de parede e selos a cenas inventadas de assassinato, numa “elevação gradativa dos objetos de referência e imitação” (cf. Hélio de Seixas Guimarães em “Pobres-diabos num beco”). Esse desprendimento que contrapõe a afirmação do narrador na abertura do parágrafo – “Toda arte tem uma técnica” – cria uma fissura entre a imagem do técnico que domina os dispositivos de uma arte e os seus “rudimentos” e a verdadeira condição desse pintor insulado4.

Creio ter explorado com bastante atenção até agora essa imagem borrada entre o querer do protagonista e a sua real capacidade de execução para atingir o reconhecimento e a glória. O narrador não ameniza suas observações quanto a falta de talento de João Maria, muito embora em comparação a outros dos narradores que Machado cria, este que acompanha “Habilidoso” mostra uma farpa de indulgência, um leve sentimento de pena, que o final do conto deixará transparecer.

Essa “obstinação, filha de um desejo, que não corresponde às faculdades” (p. 226), luta contra a falta de luz que recobre o miserável pintor. A luz no conto é algo fundamental, é ela que cria os jogos de ver e não ver, que esfuma a visão da “glória” arrebatadora tão almejada. O quarto sem luz, onde João Maria “encafuava” suas gravuras, é flagrante no quanto a visibilidade é algo que falta mesmo na esfera do real. O escuro desse “quartinho” se estende ao artista, e se apossa dele; mas à medida que foi pintando, “lembrou” de expor uma Virgem que achou digna e bem-acabada. Para isso escolhe um lugar onde a visão como busca de uma afirmação é ponto central, onde as pessoas veem e são vistas: uma “casa de espelhos e gravuras”. O trecho é o centro do conto, seu ponto de apoio conceitual:

“João Maria cedeu a Virgem e foi pintar outra; era a terceira, acabou-a em poucos dias. Pareceu-lhe o melhor dos seus trabalhos: lembrou-se de expô-lo, e foi a uma casa de espelhos e gravuras, na rua do Ouvidor. O dono hesitou, adiou, tergiversou, mas afinal aceitou o quadro, com a condição de não durar a exposição mais de três dias. João Maria, em troca, impôs outra: que ao quadro fosse apenso um rótulo, com o nome dele e a de não saber nada. A primeira noite, depois da aceitação do quadro, foi como uma véspera de bodas. De manhã, logo que almoçou, correu para a rua do Ouvidor, a ver se havia muita gente a admirar o quadro. Não havia então ninguém; ele foi para baixo, voltou para cima, rondando a porta, espiando, até que entrou e falou ao caixeiro.
– Tem vindo muita gente?
– Tem vindo algumas pessoas.
– E olham? Dizem alguma coisa?
– Olhar, olham; agora se dizem alguma coisa, não tenho reparado, mas olham.
– Olham com atenção?
– Com atenção.” (p. 226-7)

A projeção do ser em um outro como tentativa de afirmação de uma condição indenitária não é estranha dentro da narrativa machadiana, a obra prima “O Espelho” é uma prova disso. Se os olhares sociais não promovem mais a afirmação de um eu, os espelhos passam a cumprir tal papel; João Maria, no diálogo cômico com o caixeiro, mostra essa ânsia pela afirmação pública – “Tem vindo muita gente?” –, por sua vez, as respostas do empregado da loja assumem um monocórdio tom de despreocupação e desinteresse. Os olhares surgem, então, como afirmadores da criação do pintor, como testificadores de sua “alma exterior”; ao mirarem com “atenção”, eles aumentam o “círculo de ambições” do contemplado e o afirmam, menos para si que para a sociedade, evidentemente.

O “círculo de ambições” do protagonista vai progressivamente encolhendo, amigos e conhecidos são o último lastro ao qual essa identidade tateante do pintor pode se agarrar. Todavia, esse “horizonte” mirado cada vez se distancia mais, e o elogio, “moço habilidoso”, ressoa na boca e se reflete nos olhos desses “próximos”, num limite estreito que nunca afirma, nunca faz João Maria ser. Tal tentativa de afirmar um jeito de pintar, e portanto um jeito de ser, ligados sem dúvida a sua própria condição de “homem subterrâneo”, fica à mercê dessa aprovação que, em último caso, desesperadamente se aferra aos próximos e neles se desfaz.

“Assim que, o círculo das ambições de João Maria foi-se estreitando, estreitando, estreitando, até ficar reduzido aos parentes conhecidos. No dia do casamento forrou a parede da sala com a suas obras, ligando assim os dois grandes objetos que mais o preocupam na vida. Com efeito, a opinião dos convidados é que ele era ‘um moço muito habilidoso’. Mas esse mesmo horizonte foi-se estreitando mais; o tempo arrebatou-lhe alguns parentes e amigos, uns pela morte, outros pela própria vida, e arte de João Maria continuou a mergulhar na sombra.” (p. 227)

O trecho é exemplar, Machado o constrói pensando na ênfase do estreitamento dessa condição de vida e da sua tentativa de adquirir um status – a repetição feita três vezes do gerúndio ‘‘estreitando’’ dá essa ideia de movimento progressivo e constante de aperto ao redor de João Maria; isso é reforçado de modo mais firme por meio do advérbio aditivo “mais”, nessa frase espacialmente construída, quase como um verso:

Mas esse mesmo horizonte foi-se estreitando mais

O próprio horizonte de glória do protagonista se vê comprimido entre a impossibilidade, traduzida pela adversativa “mas” que sonoramente se liga ao intensificador “mais”, dando a ver a justa imagem dessa compressão da arte do indivíduo.

Quando o conto se encaminha para o seu fim e retoma o presente da enunciação, saindo do tempo digressivo, o leitor vai deparar-se com uma pobreza pisada e sofrida que Machado é mestre em mostrar em sua realidade desnudada e nunca caricaturada. Pela primeira vez temos a descrição da família de João Maria, “unhada do trabalho e da miséria”; sua mulher vai levar o filho ao médico, que fornece medicamentos gratuitos, e pede que o marido, em seu êxtase em pintar eternamente uma Virgem, que olhe a panela no fogo. Ele mal a ouve, raptado da vida e mergulhado nas cores que tanto retoca a ponto de deformar o que pinta.

Se a narrativa havia começado nas trevas, como a vida de seu protagonista, após uma chuva que havia caído, agora Machado devassa com a luz as malhas da visão do leitor, das crianças que ainda “olham embasbacadas” e de João Maria, que pinta:

“Olhemos bem para ele. O sol enche agora o beco; o ar é puro e a luz magnífica. A mãe de um dos pequenos, que mora pouco adiante, brada-lhe da janela que vá para casa, que não esteja apanhando sol.
– Já vou, mamãe! Estou vendo uma coisa” (p. 228)

O leitor mais afeiçoado e companheiro da prosa machadiana deve estranhar um adjetivo tão efusivo como “magnífica”; no entanto, ele guarda algo de extrema importância. Se numa primeira leitura o tom da descrição do narrador parece grande e positiva, ele, na verdade, recobre uma temática mais funda que procurei explanar um pouco nesta análise: o descompasso entre a figura que quer ser e sua efetivação – o seu ato e a sua verdadeira potência. A luz que rasga a penumbra, aos meninos é epifânica, ao narrador é fato que se dá pela natureza, para João Maria é cena que desperta a atenção almejada (a saborosa “admiração”), ao leitor é captada com certa ironia e por que não dizer, pena. O rebaixamento de um Da Vinci que a luz toca, para um vendeiro que esquece a panela ao fogo e que pinta sua Virgem é o vetor da prosa de Machado, toda ela local de contradições e de contrastes que formam o tecido de uma vida. A “coisa” é uma imagem já desfigurada pelo excesso do fazer da arte, é um produto bruto, só cor e traço:

“Não lhe lembra a panela ao fogo, nem o filho que lá vai doente com a mãe. Todo ele está ali. Não tendo mais que avivar nem retificar, aviva e retifica outra vez, amonta as tintas, decompõe e recompõe, encurva mais este ombro, estica os raios daquela estrela. Interrompe-se para recuar, fita o quadro, cabeça à direita, cabeça à esquerda, multiplica as visagens, prolonga-as, e a plateia vai ficando a mais e mais pasmada. Que este é o último e derradeiro horizonte das suas ambições: um beco e quatro meninos.” (p.228, grifo meu)

Longe do otimismo de um final confortável, o narrador reitera a condição do pintor, que numa performance final tenta capturar a atenção de sua “plateia” mais uma vez. Esses garotos que lhe conferem uma consciência de si e da sua arte, (com ironia, sem dúvida), uma identidade, não a conferem na inteireza e na proporção que esse pobre coitado deseja, mas ainda assim, nesse encerramento cíclico, que funciona como abertura, Machado, e o narrador, deixa em aberto esse caráter identitário que as criaturas de suas obras são exímias em exibir. Busca humana, trajada de fina ironia, de lucidez de observação e de consciência histórica.

NOTAS 

1 Expressão cunhada por Antonio Candido, ao se referir a Machado de Assis em “Esquema de Machado de Assis”.

2 Palavra usada pelo narrador para qualificar a própria situação da arte de João Maria: “(...) e a arte de João Maria voltou a mergulhar na sombra.”, Cf. ASSIS, Machado de. Machado de Assis – v. III. São Paulo: Nova Aguilar, 2015, p. 227. Esse jogo cromático de luz e sombra (de chiaroscuro se quisermos ficar com o termo renascentista), é um ponto de extrema relevância para entendermos a forma do conto, e que comentaremos com mais vagar.

3 Isso retoma a oposição que foi referida acima, e que, me parece, ser uma das linhas de orientação dentro do conto. O ócio e o nec ócio [negócio] é uma oposição antiga que põe em choque o tempo para produzir a arte, para a reflexão, de um lado; e do outro, o nec ócio, que posteriormente daria origem a palavra negócio, referindo-se ao tempo da não arte, da atividade utilitária e pragmática. O narrador parece mostrar essa contradição ao observar João Maria e expor sua vida. Essa hipótese está sendo retomada ao longo do ensaio de diferentes formas, atrelada a reflexão sobre a identidade e a consciência do dito pintor. 

4 O crítico Hélio Guimarães chama atenção para esse adjetivo “insulado”, que em Machado, homem de substantivos, cada qualificativo tem seu peso exato. O crítico aponta para imagens recorrentes dessa “clausura” do reconhecimento: o beco e a gaiola. Diz Hélio acerca dessas imagens, quando comenta a referência ao pintor Jean-Louis Hamon que Machado faz no conto: ‘‘Na referência a uma gravura, cópia de uma pintura do francês Jean-Louis Hamon, está embutida também uma certa concepção de arte encampada por João Maria. [...]. Trata-se muito provavelmente [a gravura que João Maria compra] de uma reprodução da tela Ma souer n’y pas, de 1853, comprada pela imperatriz Eugênia, mulher de Napoleão III, para a coleção imperial que rendeu ao neogrego Hamon (1821-74) um enorme sucesso popular. A descrição da cena não diz que, na gravura, o jovem grego traz o pássaro apanhado dentro de uma gaiola, mais uma das várias imagens de restrição e confinamento presentes no conto. A referência a gaiola, que limita a liberdade e o sonho, está omitida aí, mas reponta em outro momento, por ser um dos dois únicos objetos vendidos pelo comerciante em seus dias de confinamento no beco. Concretização da imagem que serve, em “Cantiga de Esponsais”, como termo de comparação para a inspiração do músico Romão, descrita como “um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes da gaiola.” (Cf. Hélio Seixas Guimarães, p. 155).

BIBLIOGRAFIA

ASSIS, Machado de. “28 de fevereiro de 1897”. In: Machado de Assis – Crônicas. São Paulo: Nova Aguilar, 2015, volume IV.
ASSIS, Machado de. “Habilidoso”. In: Machado de Assis. São Paulo: Nova Aguilar, 2015, volume III, p. 225-8.
ASSIS, Machado de. “Memórias póstumas de Brás Cubas”. In: Machado de AssisObra Completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015, volume V.
ASSIS, Machado de. “Um homem célebre”. In: Machado de Assis – Contos. São Paulo: Nova Aguilar, 2015, volume II.
BASTIDE, Roger. “Machado de Assis, paisagista”. In: Machado de Assis – Contos. São Paulo: Nova Aguilar, 2015, volume II, p. 39-50
BOSI, Alfredo. “A máscara e a fenda”. In: Machado de Assis – O Enigma do Olhar. São Paulo: Editora Ática, 1999, p. 73-126.
CANDIDO, Antonio. “Esquema de Machado de Assis”. In. Machado de Assis – Obra Completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015, volume I, p. 117-128.
MEYER, Augusto. “O homem subterrâneo”. In:  Machado de Assis – Obra Completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015, volume I, p. 33-6
MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. “Prosa de Ficção (de 1870 a 1930)”, Machado de Assis – Obra Completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015, volume I, p. 66-76.

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