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Jorge Fernandes. Foto: Arquivo do jornal Tribuna do norte. |
O ano é 1920. A capital do Estado
se resumia a uma cidade provinciana; quase parada. A noite natalense resumia-se
às festas da Igreja e, como atesta-nos o poeta Veríssimo de Melo, aos raros
dias de agitação da política nacional. No cenário literário apenas os cafés
eram os centros da boemia, das atividades culturais e dos saraus recheados de
sonetos. Isso também nos é constatado nos vários textos que Câmara Cascudo
escrevia nos jornais da época.
Num deles, “Cabelos curtos ou
compridos”, em 1924, no jornal
A Imprensa, Cascudo apresentava o resultado
duma pesquisa no mínimo engraçada, mas que refletia bem o espírito do povo
norte-rio-grandense por essa época: fez ele uma entrevista com quinze pessoas –
poetas, jornalistas, comerciantes, teatrólogo, médico –, perguntando acerca do
cabelo feminino, se o preferiam curto à moda inglesa ou se longos e
encaracolados. O resultado foi que seis votaram pelo primeiro, seis pelo
segundo e três pelos dois, o que nos leva a perceber que, apesar do
provincianismo havia no espírito certa inquietação ou necessidade pelo moderno.
Basta lembrar que, já por essa a época o sul do País já era agitado pelas
influências vanguardistas que desembocaram na Semana de Arte Moderna, 1922.
As inquietações dessa pequena
parcela da população norte-rio-grandense traduzida na voz solitária de Câmara
Cascudo, já, certamente, profundo conhecedor das transformações porque passava
o País seriam respondidas, pelos menos no campo literário, sendo mais
específico, no campo da poesia, esta, ainda presa à forma métrica e tradicional
do verso, noutra voz, a de Jorge Fernandes. Ele foi o primeiro, no Rio Grande
do Norte, a cantar no verso livre, sem rima; ele foi o primeiro a escandalizar
a pacata cidade escrevendo desse jeito, completamente fora do alto requinte
literário.
À moda do
Caderno do aluno de
poesia Oswald de Andrade, Jorge publica, em 1927, o seu
Livro de
Poemas que também era um simples caderno de oitenta e seis páginas, em
brochura, mais largo que comprido, em papel de segunda categoria. Outra
novidade é que os exemplares desse livro eram distribuídos, o que talvez tenha
contribuído para o maior desprezo que a ele foi dado, servindo mesmo muitos
deles nas bodegas até como papel de embrulho para embalar barras de sabão.
Tamanha agressividade do poeta não pára por aí: os quarenta poemas que se
apresentam nessa edição trazem também estranheza e espanto não apenas pela fuga
das tradicionais formas parnasianas, mas pela presença de novos recursos de
linguagem que dão uma forma nova de construção poética: vem o texto carregado
de elementos do sertão nordestino, do linguajar popular – algo como já fizera
Ferreira de Itajubá – de recursos onomatopaicos e, sobretudo, da síntese e do
cotidiano, seja este o da Capital ou do interior do Estado. Jorge refletia o
seu tempo e o tempo, não só o dele, estava mudando, mesmo que todos não
percebessem nada ao seu redor.
O resultado disso é que a obra foi
mal-recepcionada. Ficou o livro esquecido durante mais de quatro décadas, até a
realização dum trabalho de resgate feito por um grupo formado por Veríssimo de
Melo, Newton Navarro e Lenine Pinto, entre outros jovens, sendo ele
republicado, finalmente, em 1970, pela Fundação José Augusto, através do
próprio Veríssimo de Melo. Nele, além dos poemas publicados na primeira edição,
também vem acrescido doutros poemas inéditos, recolhidos dos jornais da época.
Seis anos depois, a mesma Fundação José Augusto traz uma edição fac-similar do
livro de Jorge Fernandes.
A edição de 1970 foi que mais deu
respaldo a obra do poeta, porque já fora ela pedida por pessoas influentes do
meio literário no eixo Rio–São Paulo, como Manuel Bandeira, e foi ela, sem
dúvida, a grande divulgadora da obra de Jorge Fernandes. Sem dúvida também é
que a importância dessa obra não reside apenas no respaldo que ela adquire nas
rodas literárias do sul do País. Ela inaugura um novo modo de fazer poesia que
previa, ou pelo menos anunciava movimentos outros como o da Poesia Concreta,
que apesar de buscar suas raízes nas vanguardas européias e na poesia
internacional dum Mallarmé, dum Pound, dum Cummings ou dum Apollinaire, já em
Jorge se fazia presente os recursos que estes traziam: subdivisões prismáticas
de idéias, o espaço em branco do papel como elemento substantivo da composição
poética – citem-se os poemas “Té-téu” e “Rede”; a palavra-ideograma ou o método
ideogrâmico – cite-se o modo como se apresenta grafada a palavra “Suspensa”, no
poema “Rede”; atomização de palavras – cite-se o poema “Canção do Inverno”; o
poema como visão, mais do que como realização.
Essa rápida constatação nos faz
perceber que é por tudo isso que o livro de Jorge Fernandes é caracterizado por
Câmara Cascudo, no posfácio feito à obra, como um livro isolado, sozinho,
descolado no cromo da sala de jantar dos poetas de sua geração. No Estado,
apenas a obra de Palmira Wanderley, iguala-se ao caráter da poética de Jorge.
Ainda parafraseando Câmara Cascudo, há no espírito poético de Jorge
originalidade natural e lógica, brilho, coragem honesta e moça, limpidez,
sobriedade, fulgor.
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Jorge Fernandes: o poeta de vários atos
* Este texto foi publicado no
caderno Domingo do jornal De Fato, no domingo, 7 de setembro
de 2008, na edição 321.
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