Os sertões, notas e impressões de uma leitura

Por Pedro Fernandes



A guerra de Canudos foi um refluxo em nossa história. Tivemos, inopinadamente, ressurreta e em armas em nossa frente, uma sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada por um doido.
– Euclides da Cunha, Os sertões


Há alguns grandes livros da Literatura que são-nos custosos ler; parece que necessitam, por parte do leitor, de uma vontade que venha de fora para dentro para seu feitio. Os sertões, de Euclides da Cunha, foi-me um desses grandes livros que teve de vir o incentivo de leitura da parte de fora para a vontade de lê-lo, já em tempos em mim, realmente fosse desperta. O que irei apontar nesse texto são notas resultadas da primeira leitura que fiz da obra. Logo, talvez, muitas das constatações sejam constatações corriqueiras, capazes de serem encontradas na próxima esquina que o leitor comum for, mas são constatações válidas, no sentido de que trazem o sentimento meu de leitor diante desse texto.

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A primeira parte da obra, intitulada de “A terra”, é a meu ver a preparação de um cenário, meticulosa, dada num movimento de câmera que ora é uma miragem cartográfica, ora geográfica, distante como alguém que só observa/descreve um mapa de perto como que o narrador dele (o cenário) fazendo parte. Um movimento que primeiro obedecer uma linha de fora para dentro, mas que adentrando mais na narrativa percebemos que não há linhas a obedecer, apenas um fluxo, como o de uma mente/olho que observa e lança esse olhar no papel a partir de então esboça coordenadas para o cenário que vai se erguendo à sua frente. 

O sertão ou os sertões – o sertão está em toda parte, como dizia Guimarães Rosa – palco, da trama também é-nos na rica carga de detalhes que mais parecem aqueles bordados coloridos tecidos pelas sertanejas, de tons diversos, vivos, pulsantes, engenhoso, que perde a vista de quem vê/ler. Esta primeira parte dá ao romance o caráter de Gênesis cristão: primeiro a criação do mundo para depois povoá-lo com a vida. Detalhe interessante é que em sendo o sertão personagem maior da obra, os elementos que o vão compondo, enfeitando, como as árvores – juazeiro, umbuzeiro, jurema, mandacarus, xiquexiques etc. (verdadeiros apanhados biológicos de um bioma!) são eles também além de elementos do cenário que se vai sendo construído, são personagens do drama. Com o sertão elas sentem a seca e a fartura, padecem do mesmo processo cíclico que castiga ao passo que esculpe o cenário.

A primeira parte da obra tem sua plasticidade invadida já pelo caráter de denúncia: quando o narrador aponta o processo de desertificação – algo que cem anos depois ainda se discute acaloradamente e pouco tem sido feito – afinal, continua-se Brasil afora as queimadas sem controle; quando o narrador aponta a necessidade de se fazer algo para a convivência com a seca, fenômeno atestado como processo climático histórico.

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A segunda parte intitulada “O homem”, é, fazendo jus ao Gênesis cristão; uma vez formada a terra, o cenário, o palco, para o correr das ações, há de se colocar as persona em circulação, dá-lhes corda, movimento, para que se possam ser apuradas e processadas as cenas e, constituir-se o enredo. Esta segunda parte de Os sertões: a criação do homem/ interior do brasileiro/ sertanejo que trilhará o drama de Canudos, além, é claro, da constituição das figuras adjacentes, típicas personagens – o vaqueiro, o jagunço, o sertanejo etc. - figurantes ou coadjuvantes na empreitada. 

As reflexões do narrador euclidiano se colocam para além das cartografias, geografias, biologias da primeira parte; entram em cena o espírito de um historiador/ antropólogo que se põe em movimento com aquele mesmo olhar perscrutador, fino nos detalhes, para refletir a constituição desses seres. 

E aqui reside o caráter fundamental que se vai distanciar do Gênesis cristão: não estamos acompanhando um sujeito de vara de condão nas mãos dizendo “faça-se a luz”, “faça-se o dia”, faça-se a noite”, “faça-se isso”, “faça-se aquilo”, e tudo vai surgindo como que num passe de mágica, não, estamos acompanhando um sujeito que tem o faro científico e entendimento de que tudo é um processo gradativo, lento, que se dá na corrente lerdeza dos séculos. Também assistimos um narrador entusiasmado com os fatos culturais, religiosos e com a formação de espaços outros que se vão esboçando nessa cena maior que é o sertão, até que damos Antônio Conselheiro, figura mítica do romance.

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A terceira parte d'Os sertões, não é nominada inocentemente, certamente. “A luta”. Assistimos o que foi o desenrolar real, no sentindo de verdadeiro, da formação do interior do Nordeste: é o correr das cenas, depois de montada a arena povoada. Povoada de cangaceiros, jagunços, o que o narrador de Euclides vai apontando nesse apocalipse são as pelejas, as rixas, que a sangue e valentia iam delineando a cara do sertão. É outro Brasil o que se vê. Bem distante da beleza e pacificidade com que narra as páginas tradicionais da História. Se por entre os fatos históricos se vão mesclando ficções, não deixamos, entretanto, de ter em mãos um rico documento dessa formação das veias internas do País, que se deu a custo de sangue, nas rixas entre famílias, entre polícia e Estado. Preservado está também a memória do que foi a saga de Canudos – fulcro dessa terceira fase do livro.


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Por tudo o que foi dito, deve ter ficado claro que, Os sertões é certamente o único romance que reflete diretamente a constituição/ formação do Brasil e sua multiplicidade étnica. “Não temos uma unidade de raça. Não a teremos, talvez, nunca.”; “Não há um tipo antropológico brasileiro”. Sem perder o caráter literário, Os sertões, também é o um rico documento histórico quando atesta os movimentos misóginos que povoaram o País a remontar as chegada dos portugueses. É, como documento, fotografia do poder opressor que sempre este pisoteando os mais fracos. Entretanto, é o sertanejo, antes de tudo, não fraco, mas um forte – parafraseando a célebre passagem do romancista de Os sertões: “O sertão é homízio. Quem lhe rompe as trilhas, ao divisar à beira da estrada a cruz sobre a cova do assassinado, não indaga do crime. Tira o chapéu, e passa.”



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