A Papoila e o Monge, de José Tolentino Mendonça (Parte I)

  
Por Pedro Belo Clara


O poeta português José Tolentino de Mendonça.

O livro que hoje lhe apresento, caro leitor, é o mais recente trabalho publicado por este proeminente autor português. Lançado ao público somente no passado mês de Novembro, encerra em si uma inovação notável, deveras significativa até, no que à obra deste autor diz respeito.

Em suma, o livro reúne seis volumes distintos onde o autor apresenta uma enorme diversidade de haikus – uma face que, até agora, havia permanecido desconhecida. A ser verdade, quase que se adivinharia a intenção do autor em reunir todos os livros que criou sob as leis desta específica forma poética e publicá-los, juntos, sob uma só epígrafe. Contudo, não terá sido bem o caso.

O que instigou, então, o poeta a publicar um livro somente de haikus? Um género no qual nunca antes se havia aventurado? A explicação surge na introdução da obra, escrita pela mão do próprio autor: “este livro deve tanto a Jack Kerouac como a Bashô”. Foi, de facto, após a leitura de Book Of Haikus, da  autoria do escritor norte-americano supracitado, que a intenção de Tolentino por certo se terá modelado, uma vez que o poeta português acaba por, neste livro em particular, responder ao desafio/intenção que fora em tempos assumida por Kerouac: “Proponho que o ‘haiku ocidental’ conte simplesmente muito em três curtos versos, e o faça em qualquer língua”.

Assim, como se compreende, as métricas fixas que este tipo de poesia estipula (três versos com cinco, sete e cinco sons respectivamente) são por Tolentino completamente renegadas. Assiste-se, portanto, ao nascimento do poema de verso e compasso livre dentro dos esquemas métricos mais rigorosos, os quais não são de todo respeitados. Em conclusão, Tolentino opta pela comunhão dos preceitos de duas escolas distintas: classicismo (focado, como se sabe, na óptica nipónica (tendo em conta a origem deste tipo de poesia)) e modernismo. E isto por privilegiar, apenas, o conteúdo do poema e a capacidade de transmissão do mesmo, em detrimento da sua forma – aspecto meramente estético e de pouca relevância.

A obra deve igualmente o seu nascimento a uma viagem que Tolentino empreendeu ao Japão em 2010, a convite do Centro Nacional de Cultura. Durante a mesma, foi incumbido de criar algo a partir da experiência aí reunida. Como lhe foi impossível produzir o que quer que fosse durante a estadia em terras nipónicas, segundo a confissão do próprio, somente tempos depois, quando as necessárias condições convergiram, é que o pedido pôde, por fim, ser acedido. Eis, então, o livro que aqui trago a discussão.

De posse do mesmo mote oriental com que Jack Kerouac
engendrou seus haikais, José Tolentino de Mendonça
reinventa-se em novo título apresentado em novembro
pela Assírio & Alvim, em Portugal.

Mas foquemo-nos, agora que as principais envolvências da obra foram apresentadas, no conteúdo da mesma. Como anteriormente foi referido, este livro encerra seis volumes distintos. Comecemos, como manda a tradição do bom-senso, pelo primeiro de todos: “A Escola do Silêncio”.

Ao lermos a sua epígrafe, é natural que se pense que ao longo deste versículo (chamemos-lhe assim) se assiste ao debate sobre o tema que o intitula. E, de facto, o pensamento não está de todo errado. Pois o volume em causa apresenta um conjunto de reflexões sobre o silêncio e suas diferentes formas. É possível conhecer a multiplicidade dos seus rostos, mas em algum instante se prevê uma busca pela sua essência. Ou seja, o poeta, aqui, debruça-se sobre o silêncio, não sobre a busca do silêncio. De certa forma, admite-se que o mesmo seja um lugar-comum onde o poeta se (re)encontra.

Este silêncio, ora pessoal ora impessoal, de toada concreta ou subjectiva, oscila como um pêndulo pelas inúmeras casas que guardam cada um dos seus diversos rostos. É assim possível compreender que o silêncio não é, aos olhos do poeta, uma unidade transcendental, mas pequenos pedaços de diferentes formas que, unidos, provavelmente criarão um conjunto perfeito.

A base de construção dos trinta e três haikus que compõem o volume é, em muitos casos, o retrato perfeito da realidade captada e em três simples versos imortalizada. Eis um exemplo: “As nuvens hoje parecem / monges que tomam o chá / em silêncio”. Ao invés, tendo em consideração a natureza indagadora deste primeiro capítulo, é natural que muitos haikus, por mais enigmáticos que possam ser, reflictam isso mesmo, ou seja, uma reflexão natural, solta e fluida, em verso composta: “O que por palavras nos está oculto / no silêncio crepita / em intimidade”. 

O silêncio sobre o qual se reflecte é tão diverso quanto as formas que este pode assumir. É o silêncio que “fala de si”, que “diz o que não é”, que “brilha esplêndido” por ser despojado de qualquer palavra; é a “privação” do mundo, o “avesso” de toda a coisa e não o seu “oposto”. Mas, de certa forma, a bandeira do indizível é um silêncio de renúncia que muitas vezes se quer puro, limpo de palavra ou de uma outra contaminação verbal qualquer. Tampouco de pensamento, claro, pois o silêncio mais virginal será o silêncio absoluto: “nem um grão de poeira / na brancura do crisântemo”. Ao pensarmos assim no silêncio como algo de tão depurado, é natural que se o pense como um vazio, uma espécie de “nada” que, ao mesmo tempo, será “tudo”. Um fim e uma origem, simultaneamente? O poeta não o esclarece.

Tendo em conta as suas ligações ao sacerdócio, é comum vaticinar que “Deus” será um assunto que não ficará posto de parte. Mesmo em pequena escala, Tolentino dedica alguns haikus ao tema do divino. Mas porque surgem “Deus” e “silêncio” num só volume? Serão ambos uma coisa só? Essa questão já Sophia de Mello Breyner com a habitual mestria havia colocado nas linhas de um belíssimo poema seu: “Escuto mas não sei / Se o que oiço é silêncio / Ou deus” - “Escuto”. Tolentino, por ora, não apresenta dúvidas: o silêncio é a “vizinhança de Deus”. O Homem que busca Deus fá-lo em silêncio e quietude, tal como o faz o Deus que busca o Homem. E o que daí resultará? Um encontro ansiado ou mais um frustrado desencontro? Tolentino, enigmático, sugere: “Muitas vezes Deus prefere / entrar em nossa casa / quando não estamos”.

Um dos fascínios (e virtudes) deste volume é a sua capacidade de instigar a reflexão no leitor que a tal se propuser. Devido à sua curta forma de execução, típica dos haikus, permite uma leitura tranquila e ponderada, sem por nada abdicar da merecida reflexão. Talvez aqui se justifique o seu próprio título, “A Escola do Silêncio”, uma vez que em cada página é dada a raiz para uma instrução mais ampla e frondosa sobre o tema. O poeta empresta apenas a sua visão, é claro, mas é a partir dela que muitas outras visões, profundas e significativas, poderão nascer na mente do leitor, graças ao acto que o volume privilegia. Embora o mesmo termine da forma mais paradoxal possível: “Uma iniciação ao silêncio / nunca foi escrita / nem poderia ser”. Na verdade, como escrever algo que se não diz?

O carácter do silêncio é pessoal, sendo o mesmo impessoal… Se resgatarmos uma ideia anteriormente registada, compreenderemos isso. É por essa razão que o aluno/leitor não é iniciado no “estudo do silêncio”, mas recebe do seu instrutor/poeta as ferramentas necessárias para por si só construir um caminho até ele. A busca não é feita pelo poeta, mas pode ser empreendida pelo leitor. Pelo menos, é em seu coração depositada a hipótese de tal concretização.

A criação de haikus requer, por norma, uma notável sensibilidade por parte do seu criador. É, de certa forma, uma arte do sublime. Importa reter o essencial e transmiti-lo, deixando cair todas as pétalas murchas da flor que tem em mãos. Sob uma certa óptica, funcionam como pequenos quadros de letras que fermentam a criatividade visual. O leitor, ao absorvê-los, deve desde logo ser transportado para o instante que o haiku captou, sentir a neve nele retratada, o vento que ele regista ou o sol que também o banha. Devido à opção de Tolentino, isto é, ao benefício da reflexão em detrimento da contemplação poética, esta característica surge um pouco mais esbatida. Mas… não era sua intenção romper com os clássicos preceitos desta poesia oriental? Talvez a beleza que incorpora não seja propriamente uma constante, mas a filosófica composição dos mesmos é, por sua vez, uma certeza deveras inegável. A partir dela, constrói este volume a sua mais sólida virtude.

Silêncio:
na ravina inacessível
o prado em flor

Ligações a este post:
Book of Haikus foi recentemente traduzido para o português no Brasil e sobre este texto, o Letras editou matéria importante de leitura. Aqui.

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Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog preservamos o grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A Jornada da Loucura (2010), Nova Era (2011) e Palavras de Luz (2012) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados nos blogues pessoais do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas) e O Manifesto (artigos políticos). 



            

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