Por outros meandros da Geração Beat


Peter Orlovsky e Allen Ginsberg na Índia.

Quando Allen Ginsberg chegou à Índia com seu companheiro, Peter Orlovsky, em 1961, para passar 15 meses, havia acabado de publicar Kaddish, um extenso poema dedicado à sua mãe que já havia morrido; o poema é sua obra-mestra e algo mais: o testemunho de que havia deixado de ser uma criança e que, portanto, tem que fazer algo para merecer uma idade adulta, que necessita estar à altura de seus objetivos. Esses objetivos, claros desde que William Blake lhe falara há uma década, numa visão que marcou o resto de sua trajetória literária e existencial, não eram outros que converter-se na “voz das multidões” e em “um santo”.

A Índia tinha que ajudar-lhe nisso, tornando-o um mestre e modificando sua percepção da realidade. Também lhe falando em outro tom da morte: a de sua mãe, que levou toda sua vida morrendo por causa das suas desordens mentais, e a do próprio filho, que parecia aos olhos dela como um fantasma preso nas drogas, nos amantes, na poesia ou nas viagens. Depois de Kaddish – o testemunho de um amor que lhe dá vida – veio a luz, já estava preparado para o seguinte passo: fazer-se adulto na Índia.

O que aconteceu aí, o próprio Ginsberg contou nos seus diários e em sua correspondência, bem como nos registros de seus companheiros de aventura, além de Peter Orlovsky, Gary Snyder e Joanne Kyger, que estiveram em parte ou totalmente envolvidos nesse percurso; e Gregory Corso, Jack Kerouac ou William Burroughs, que planejaram segui-los, mas se limitaram a acompanhar os testemunhos apaixonados dos amigos à distância. Embora o que fizeram, em termos narrativos ou psicológicos, tenha nos chegado de maneira fragmentária, interessada, negligente e contraditória, todos deixaram marcas suficientes para refazer com certa minúcia seus itinerários naquele país. 

Deborah Baker, por exemplo, com todos esses testemunhos, reconstruiu o périplo dos escritores em A mão azul (tradução livre para A Blue Hand). E mesmo o seu ensaio rigoroso, fruto de sua grande erudição e do conhecimento do país, onde viveu parte do período de escrita, o resultado se lê como um grande romance: porque consegue enredar, com todos esses dados, um roteiro (o de uma busca, das relações mútuas, de uma época ávida por mudanças), pela estrutura não linear que utiliza (há saltos temporais e biográficos que, como em obras do gênero policial, dosificam a informação e intensificam a intriga) e porque a sensação que deixa no leitor é a de estar escutando uma espécie de fábula que transcende o riquíssimo anedotário de seus protagonistas. Também porque lhes dedica quase mais páginas às personagens secundárias, que são as que dão corpo e credibilidade à história, que às figuras centrais.

Alguns deles são sujeitos anônimos (leprosos, mendigos, brâmanes), mas outros têm nome e sobrenome: Pupul Jayakar, Nagendra Nath, Meher Baba, Buddhadev Bose, Elise Cowen, Asoke Sarkar, Swami Sivananda, Swami Sri Shivalingam, Manjula Mitra ou os poetas da chamada Geração Faminta reunidos em torno da revista Krittibas, onde foi publicada uma versão de Kaddish, como Sunil Gangopa­dhyay, Shakti Chattopadhyay ou Utpal Kumar Basu.

Dentre estes, a que mais se destaca, como um ponto que é quase o elo invisível do livro, um centro do qual irradiam todos os demais, é uma misteriosa mulher chamada Hope Savage / Esperanza Salvaje. Deborah Baker conta que ela pertencia a uma família de posses, e foi noiva ou algo parecido, de Gregory Corso, e que saiu de casa ainda jovem para percorrer o mundo sozinha (viveu na Grécia, Irã, Afeganistão, Iêmen e Índia, e aprendeu árabe, urdu, hindi, sânscrito e alemão), que se separava de seus eventuais companheiros de estrada para fomentar o desapego, que foi comparada com Shelley e com Rimbaud, que em muitos lugares acreditavam sê-la espiã da CIA, que visitou Ginsberg e Orlovsky em Calcutá (o primeiro se encarregava de lhe enviar notícias suas a Corso para convencê-la a juntar-se a eles)... Mas, sua pista desaparece em 1963. Baker, confessa, que ainda tentou buscar informações no Oriente e no Ocidente, mas sem êxito.

Jack Kerouac

Esperanza Salvaje é uma mulher que desaparece no ar e uma fórmula que resume a poética Beat, que luta com unhas e dentes contra o conformismo habitual e contra as poderosas perdas de esperança institucionalizadas. Afinal, é uma esperança selvagem que também subjuga Kerouac quando se dedica durante um ano, 1955, a interrogar o budismo sobre a essência das coisas que então lhe atormentavam: a realidade (porque levava uma década colecionando irrealidades) e a mente (porque o álcool e os sucessivos desamores haviam lhe feito em pedaços). É então quando descobre a verdade revelada em romance (Os vagabundos iluminados, que é de 1958): que só o amor divino (beatífico) e a compaixão que encarna Buda e Jesus podem salvá-lo.

Ele, que pode ter sido “o maior bodhisattva dos anos cinquenta” (para Robert Thurman, autor do hagiográfico Desperta – tradução livre), não soube pagar o preço que devia pagar para chegar a ser isso, mas, em troca, deixou esta obra, que não se publicou como livro até 2008, intensa e bem escrita (com um ritmo, um uso de recursos expressivos e uma precisão terminológica que as traduções nem sempre são fiéis) e fruto de um grande conhecimento de algumas fontes budistas, em especial o Sutra Surangama.

Kerouac encarnou uma modalidade de esperança selvagem que o atou os pés e as mãos no espaço de uma casa emprestada enquanto memorizava passagens da vida de Buda. A esperança selvagem de Ginsberg, por sua vez, o levou a meditar na árvore sob a qual Buda se iluminou e a visitar Dalai Lama e muitos outros mestres. Entre meios, o espectro de Hope Savage fazendo uma espécie de ponte invisível entre um e outro.  

O contato dos Beat com Savage, reafirma a presença da mulher num movimento que ficou conhecido mais como uma reunião de machos psicodélicos. Em A Geração Beat, de Cláudio Willer, está registrado depoimentos como o de Gregory Corso sobre o feminino entre os da cena Beat: “Houve mulheres, estiveram lá, eu as conheci, suas famílias as internaram, elas receberam choques elétricos. Nos anos de 1950, se você era homem, podia ser um rebelde, mas se fosse mulher, sua família mandava trancá-la. Houve casos, eu as conheci, algum dia alguém escreverá a respeito”. Enquanto no Brasil, soubemos de Elise Cowen, há quem tenha organizado uma singular antologia que reúne a poesia dessas mulheres rebeldes citadas por Corso.

Diane di Prima

Como define Jesus Aguado, elas “são intensas, escrevem muito bem, não têm complexos, fazem a revolução e o amor, não se deixam tiranizar e, quando toca, levam a música a outro lugar”. Na antologia Beat Atitude dez delas falam sobre temas diversos: da menstruação (Diane di Prima se queixa de que nesses momentos seu amigo se desentende com ela; Anne Waldman adverte os homens para que não toque nelas quando “as palavras descem ao ventre”); de crianças (a uma não-nascida Diane promete ensinar-lhe a amar, há outra que vomita em Hettie Jones, uma terceira que Joanne Kyger ameaça queimá-la para fazê-la mais real); de sexo (“te amo / teu pau em minha mão / se agita como um pássaro”, escreve Lenore Kandel, ao que Elise Cowen parece responder, “Quero uma porra de prazer dourado mais pura que a heroína”, e, corrigindo as duas, Mary Nobert Körte, parece aconselhar, “acasalarmos com o sol”); de mitos (que “são verdadeiros” para Ruth Weiss, quem renuncia as maiúsculas como crítica ao seu idioma materno, o alemão, o que a leva falar de Eros e Psique, Afrodite, Perséfone).   

Também aparece com frequência, lembra Jesus, a figura desse anjo tutelar hermafrodita que foi Allen Ginsberg: como amante de Cowen (que se suicidou com menos de 30 anos e que os pais queimaram a maior parte de seus manuscritos por conter referências ao seu lesbianismo e sua experiência com drogas), e um poema de Norbert Körte (monja e ativista muito próxima a Gary Snyder na sua devoção pela natureza, a oração e o amor aos veados) intitulado “Eddie Mae a cozinheira sonha que a irmã Mary foge com Allen Ginsberg”; e em outro de Waldman em que recrimina seu famoso e genial amigo por ser “tão convencional”, por não sentar-se à vontade, por ser um “sabichão” ou por sua avidez “de terna carne de garoto”.

Do grupo que foi à Índia, Peter Orlovsky foi o último que morreu; há quatro anos. E o texto de Deborah, na medida em que apresenta outras personagens desse itinerário até então desconhecidas, traz um melhor retrato sobre o papel dele nesse momento singular do grupo e, logo, sobre a própria atuação na cena Beat. A importância disso reside no fato de que sua imagem é sempre a de um elemento da geração, um sexy-simbol gay, o eterno namorado de Ginsberg, com quem teve uma relação de mais de três décadas, ou o libertino, ilimitado e audaz (estas últimas características, talvez as mais honestas e pintadas por Andy Warhol num documentário em 1965 tendo Orlovsky como personagem principal). Mas, pouco se fala de que tenha produzido uma obra de algum valor, mesmo sabendo que escreveu (pouco e dispersa) romances e poemas.

Se Kerouac foi o que nunca conseguiu alcançar a transcendência que tanto buscou; se Orlovsky foi o animador do grupo; Ginsberg cada vez mais se assume com o eixo aglutinador, o que tem a habilidade de manter unidos os do grupo num contexto muito próprio. Jordi Doce, no prológo ao livro de Deborah, fala precisamente de como o autor de Uivo era “o centro espiritual dos beats”, “o promotor do grupo, seu agente literário, o correspondente incansável que o mantinha unido em tempo de mudanças, viagens e desastres, o homem de mil braços que lia, aconselhava, incentivava e convencia seus amigos de atuar (e escrever) de uma ou de outra maneira”. Nem precisa dizer, então que, por todo esse esforço agregador, pela posição que alcançou no interior de um movimento que não fosse sua atuação possivelmente teria passado despercebido, que aquele desejo assumido depois da morte de sua mãe, de se tornar um adulto, se realizou plenamente.

Ligações a esta post:
>>> A passagem de Allen Ginsberg pela Índia
>>> Reivindicar a presença das mulheres na cena Beat

* Este texto existe graças aos textos "Los 'beat' e la esperanza selvaje", "Mujeres extraterrestres", de Jesus Aguado (El País) e "La cena beat" de Toni Montesinos.


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