Vá, coloque um vigia, o não-livro de Harper Lee

Por Renato Fernandes


Harper Lee é autora de apenas uma obra, O sol é para todos. E continuará sendo, mesmo depois da publicação de Vá, coloque um vigia – livro vendido mundialmente com a falsa ideia de ser uma continuação do romance de 1960, quando na verdade, é uma versão possível ou rascunho dessa obra. A história desde a aparição do manuscrito à publicação com esse apelo comercial é cruel, divertida ou triste (e talvez melhor do que a própria resultada desse imbróglio); sim é quase uma novela e com um desfecho sem grande fôlego para a principal inventora – Tonja Carter – a mentora de trazer a lume esses papéis e torcer para que entre O sol é para todos e Vá, coloque um vigia, ainda tivesse uma terceira versão publicável da obra. Não teve. Muito recentemente os avaliadores do espólio concordaram que o restante dos papéis que ainda existiam eram sim outra versão de O sol é para todos, mas sem qualquer valor para publicação.

O romance que deu o Prêmio Pulitzer a Harper Lee um ano depois de sua aparição e o advogado Atticus, defensor de um negro acusado injustamente de estupro de uma mulher branca num sul profundo dos Estados Unidos, são para os desse país quase ícones entregues pela mão de Deus. De repente aparece o burburinho de um romance inédito. Vá, coloque um vigia nunca merecia ter sido vendido com esse apelo porque ele é apenas o primeiro rascunho do outro, e mais, foi um manuscrito reprovado por cerca de dez casas editoriais até que um experiente editor de um pequeno selo viu nele algo que ninguém havia visto antes.

Três anos de revisões e reescrita não do romance mas de alguns dos flashbacks que nos leva há vinte anos depois da história que todos conhecemos, em parte pela adaptação cinematográfica de Mulligan com o incomparável Gregory Peck. Vá, coloque um vigia é um não-livro ou livro que veio a ser depois de a imagem da sua autora já consolidada como uma das mais importantes da cena literária estadunidense desde a década de 1960. 

Aqui entraria muito bem um enredo a Stephen King. A senhora Harper Lee, uma velhinha desejosa de agradar a todos, há alguns anos entregou a um agente literário sem escrúpulos os cuidados de O sol é para todos que apenas os tribunais permitiram que os direitos sobre a obra fossem recuperados pela família graças à intervenção e, mais tarde, a proteção da irmã mais velha, Alice, que utilizou como justificativa o fato da escritora já ser dona de uma lucidez mental questionável.

Enquanto a irmã esteve viva, as ofertas de publicação desse rascunho foram muitas, mas, nenhuma foram aceites por muito dinheiro que se oferecesse. Alice era um osso duro de roer e sabia do interesse de Harper Lee em trazer a lume esse manuscrito. Teria sido um crime, mas nessas histórias, sempre sobra a pergunta: se gostaria de ver publicado, por que não destruiu? Nesse caso, Lee sequer suspeitava que ainda houvesse um manuscrito; caiu naquele golpe do destino que sempre adia nosso desejo de deitar no lixo os papéis que já não nos servem. Com Alice viva, a lógica sempre dizia que os especuladores não conseguiriam vencer o cerco. E se ela não se desfez do texto foi por zelo à memória da irmã e da própria obra. Todos sabiam que, para meter a mão nessa botija, a natureza haveria de se colocar no caminho dessa guardiã e a levasse. Bom, assim aconteceu – e aqui entram Ethan e Joel Coen –, esta morreu em novembro de 2014 aos... 103 anos.

Poucos meses depois, Harper e sua nova advogada, a já citada Tonja Carter, ex-sócia de Alice, e quem devia se desesperar a cada aniversário desta, decidiu, depois de expor um comentário breve que teria sido redigido pela própria escritora, trazer a lume este romance supostamente encontrado em 2014. A história é tão mal contada que depois se descobriu que desde há três anos, Carter já tinha ciência da obra e novamente a justiça abriu inquérito (logo fechado) para apurar denúncias de aproveitamento sobre a situação, claro, com base nos antigos depoimentos da irmã de Lee.

Evidentemente que é melhor vender três milhões de livros que um rascunho se acabar no rói-rói das traças. Mas, além do montante de dinheiro que alguém ganhará com sua publicação (esperamos que Harper Lee), a operação, sabe-se, talvez nunca agradasse, de verdade, à escritora que foi Harper Lee. Não muito tarde, depois da publicação circularam imagens da recepção sua à obra onde denuncia entre a fragilidade da visão certo ar incógnita. 



O livro ora publicado e depois uma operação que moveu grupos editoriais do mundo inteiro num ritual quase secreto, é indispensável como material de pesquisa, sobretudo para os estudiosos da obra da escritora estadunidense. Vá, coloque um vigia tem, assim, um sentido e um valor histórico e literário, principalmente porque revela a gênese de uma escrita. Ninguém haverá de questionar sobre isso. Mas, por tudo o que foi dito até aqui e justamente por esse valor outro do texto, esse não é uma obra que alcança a necessidade de sua publicação. Ou, se publicado, que fosse vendido de maneira honesta ao público leitor. Porque este não é um livro para consumo como outros livros.

Do ponto de vista de compreensão sobre a escrita de Harper Lee ou mesmo sobre a composição de seu único romance é válido saber, assim como sobre qualquer boa obra literária, levou tempo e um longo trabalho de maturação, reflexão, construção e aperfeiçoamento da narrativa; no caso de O sol é para todos, agora sabe-se, foi necessário pelo menos três versões e o trabalho conjunto entre editor e autora até que ficasse no ponto de ser levado ao leitor. Isso demonstra, primeiro, um zelo com a escrita, segundo, um respeito com a capacidade do leitor; dois elementos que a publicação de Vá, coloque um vigia, da maneira como foi feito, destrói como se colocasse no lixo todo o esforço da escritora. E para quê? Apenas em nome do destruidor valor do capital.

O roteiro de Vá, coloque um vigia é o regresso de Scout, morando em Nova York, a Maycomb, sua pequena cidade natal. Pouco a pouco precisa conviver com a lembrança que tinha de seu pai e sua família não ser em nada aquilo que achava ter com a realidade. Uma realidade que vai abrindo algumas feridas não cicatrizadas sobre os direitos da população negra e a recusa ao intervencionismo do Estado. O trajeto da personagem Atticus, de herói divinizado a vilão amigo da supremacia branca, é o que dará mais o que falar e, possivelmente, aponta para compreender por que esta versão do romance de 1960 foi tão reprovada pelos grupos editoriais. Se publicado dessa maneira teria sido uma celeuma de maior proporção para o momento delicado de uma década antes. 

Mesmo agora, com outra imagem de uma das figuras principais de O sol é para todos, uma grande parte dos leitores nos Estados Unidos que adquiriu o livro deve tê-lo rasgado logo em seguida. Claro, não pelo forte tom de denúncia sobre a realidade passada, mas porque, afinal, O sol é o livro em que alguns dos estadunidenses mais confiam depois da Bíblia. Já outra parte deverá esquecer Vá, coloque um vigia como um se um Evangelho de São Ninguém (rindo da citação bíblica do Evangelho de Lucas de onde foi retirado o título da obra). Esses dois grupos de leitores tem ainda Atticus como uma das personagens mais queridas da literatura daquele país. E os que desgostaram da personagem (sim, há desses) como continuarão a tê-lo?

A publicação, vê-se, não trouxe apenas uma série de discórdias e questionamentos que só serão sanados ao longo de um tempo; representa o recrudescimento de uma carreira literária cuja toda fama despontou com um só (e excelente) livro. Ainda assim, Lee poderia ter publicado não cinquenta e cinco anos mas cinco, dez ou quinze anos depois de sua obra-mestra, na plenitude de seu talento e seu vigor competitivo. Se fosse publicável. Mas, está claro que não redimiria seu público daquela catarse e nem reavivaria as cores de seu tour de force criativo. E o fato de não o fazer foi uma opção sua e, logo, fora de discussão. Eis aí outros três motivos que o feito de agora seja questionável e esta publicação receba no mínimo a crítica devida. O livro não condiz com seu feito literário e talvez sua única ventura, depois de servir aos leitores mais criteriosos (os especialistas sobre a obra), seja a de reanimar o clássico. Mas, será esse novo fôlego, algo que o projete no rol das cinco estrelas atribuídas por seu público leitor?

Contudo, o livro também tem outras boas notícias – para além de acalentar os espíritos mais curiosos dos que estudam a obra da escritora e permitir a todos ver o coração genuíno de uma obra ou lançar algumas luzes sobre as relações secretas entre escritores e editores e essa oxigenação do livro de 1960. Lee foi desde sempre uma escritora de raro domínio com a objetividade e a clareza da escrita. A aproximação com os planos iniciais do romance quando não curiosa é, no mínimo divertida. Leva-nos a perscrutar alguns meandros da atividade criativa da romancista. A voz da jovem Jean Louise Finch, Scout, é viciante. A influência do discurso adolescente com raízes em J. D. Salinger que há poucos anos havia revolucionado a literatura dos Estados Unidos é algo a se notar, mas o leitor também notará em Vá, coloque um vigia que Lee deu-lhe, desde o início, uma personalidade própria e inimitável. Isto é, eis o contato com uma escritora que soube incorporar e reinventar uma tradição nascente na letras estadunidenses.

O que mais atrairá o leitor é sua desenvoltura, sua independência, sua confiança sobre a modernidade da nova América enquanto a população de Maycomb é intransigente e antiquada. Assim também são Atticus, a tia Alexandra, o tio Jack e o pretendente sempre recusado, Hanck.  E é aqui que Vá, coloque um vigia pode deixar de ser lido como uma mera versão-aprendiz de O sol é para todos, para alcançar outro sentido, este com o qual as editoras do mundo inteiro tem vendido, como uma continuidade do único romance de Lee. 

O leitor poderá compreender o livro como mais avançado que o clássico de 1960, afinal oferece uma sutil e surpreendente exploração sobre a política racial da época, e não apenas pelos comentários racistas do pai de Scout mas por essa posição antiquada da sua cidade natal. O texto logo se apresenta mais revelador e contundente quando contemplado como um roteiro acerca da complexidade sobre a política no sul dos Estados Unidos e sobre a transição política dos brancos da região entre o Partido Democrata e o Republicano, mudança que transformou a vida política estadunidense no último meio século. Há na obra certo ímpeto da posição crítica da romancista sobre os tais temas mais caros para o seu país nessa época (e sempre, uma vez que não é heresia afirmar que a questão racial não foi nunca superada de um todo nos Estados Unidos).

Agora, a pergunta que sempre escapará ao leitor é: como é possível que o imparcial Atticus Finch de O sol é para todos – a qualidade que o converteu numa das figuras da ficção de maior carisma entre os leitores – tenha se convertido no racista amargurado retratado em Vá, coloque um vigia?

Num texto que busca responder essa questão, Joseph Crespino tece uma série de considerações importantes que vão além da compreensão simples, a que apela sobre a mudança de ponto de vista da filha, e recai sobre alguns componentes da história política do sul dos Estados Unidos, cheia de figuras que evoluíram de maneira parecida. “Um dos melhores exemplos é Strom Thurmond, senador pela Carolina do Sul durante muitos anos. Ele era um democrata partidário do New Deal nos anos 1930, quando foi deputado estadual. Quando governador, pediu ao FBI que investigasse um linchamento ocorrido no seu estado. Em 1948, foi cabeça de uma campanha de protesto pelas políticas sobre direitos civis dos partidos nacionais. E, na década seguinte, encabeçou a muito generalizada resistência dos sulistas brancos frente à igualdade racial e, não é só, conseguiu obstruir durante 24 horas a Lei de Direitos Civis de 1957”.

Crespino lê Vá, coloque um vigia como a obra de alguém que conhece a fundo as sutilezas políticas que não chegam a ser mencionadas em O sol é para todos. “Neste romance, Atticus defende Tom Robinson porque é o que lhe dita a decência. Mas é no novo romance onde descobrimos um motivo oculto, compartilhado pelos segregacionistas politicamente astutos das décadas de trinta, quarenta e cinquenta. Se os funcionários brancos do sul não se ocupavam na escala local de que se fizesse justiça nos crimes em que havia afro-americanos envolvidos, o Governo Federal ou a Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor se encarregavam disso”.

O livro de Lee agora publicado está ambientado em meados dos anos cinquenta. Nele descobrimos, por exemplo, que Atticus votou no republicano Eisenhower, ato aparentemente herético num Sul unanimemente democrata, mas que se tornou cada vez mais comum com o passar dos anos. “Ao ser perguntado como alguém que se define como um ‘democrata jeffersoniano’ pode votar no republicano Eisenhower, Atticus pede friamente à sua filha que ‘volte para a escola’. Defende a ‘plena cidadania’ como ‘um privilégio que há de se ganhar’ e reafirma seu direito a viver sem ingerências governamentais e ‘encarregar-se de seus próprios assuntos numa economia onde impera o ‘vive e deixa viver’. O jeffersonismo vincula a postura política dos sulistas brancos com a fundação do país e servia de ponte entre os sulistas brancos desencantados com o Partido Democrata nacional e os conservadores do Oeste e Meio Oeste que buscavam aliados com o intuito de empurrar o Partido Republicano mais para a direita”.

O Atticus Finch de Vá, coloque um vigia sempre foi uma personagem ligada a condições morais difíceis. Em 1960, quando Harper Lee publicou seu romance, o Sul acabava de por fim a uma década de reações ferozes sobre os direitos civis dos negros. Onde estavam os sulistas brancos decentes, se perguntava muita gente, capazes de administrar a região nesses tempos de crise? Atticus Finch estoico e com consciência cívica deu esperança aos estadunidenses. Mas o preço desse consolo foi dar respostas fáceis a problemas complexos. “Independente de suas falhas como obra de ficção, amplamente denunciadas pela crítica, Vá e coloque um vigia dá a Atticus Finch uma complexidade moral e política muito necessária em seu tempo”.

Do ponto de vista estrutural, a primeira parte do texto se mantém firme, bem construída, embora os flashbacks sejam excessivamente cinematográficos. Explode o conflito, ganancioso no fundo, mas mal desenhado. Toda a comunidade é como se parte de uma seita da Supremacia, nascida como freio às imposições do norte. O romance torna-se quase numa narração de The Twilight Zone sobre alienígenas que foram abduzidos por terráqueos do sul – não é desdém: são os anos da Guerra Fria –, mas tem a valentia de expor que o conflito racial e social é muito mais profundo e difícil de superar que desarmar o Klux-Klux-Klan. Mas, se essa ousadia está bem expressa pela construção de Atticus, ela finda por se diluir em quase nada numa escrita, apesar de objetiva e clara, muito sem expressividade.

Os longos monólogos reiterativos de Scout com um e outro, justificativas ambíguas, enredadas, o narrador que deixa, sem mais nem menos, de ser objetivo para ser subjetivo – a cena do café com as amigas –, um final abrupto, confuso e fracassado, tudo faz levar o romance para um precipício como um carro sem freios numa descida. Enfim, é melhor admiti-lo como um rascunho do que viria depois. Ainda um não-livro porque ainda não é um romance, mas o que poderia ser e foi, anos mais tarde. Aquilo que se pode louvar dele, portanto, é muito pouco perante o que poderia representar para a obra de uma escritora consagrada com um único, e este sim, um excelente romance.


* As citações a Joseph Crespino são do texto "Atticus Finch a lesson in Southern politics" do The New York Times.

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