Natalia Ginzburg, deusa das pequenas coisas

Por Luis Alemany



Literatura, judaísmo, feminismo, política... Se Natalia Ginzburg houvesse sabido que, 100 anos depois de seu nascimento, a recordamos com essas ideias avançadas, talvez não tivesse se sentido deprimida. Os estudos de gênero a aborreciam muito, o judaísmo era uma parte de sua bagagem com a qual não se dava bem e sua história com a política tendia ao desencanto. Bom, resta a literatura. O centenário da escritora italiana propicia agora uma visita à sua obra: Léxico familiar, Caro Michele, O caminho que leva à cidade, Foi assim, entre outros.

Por onde começar? Elena Medel, autora dos prefácios que acompanham as novas edições de alguns desses importantes títulos na Espanha, oferece um conselho aos recém-chegados à obra de Natalia Ginzburg: “Eu leria primeiro Todos nossos ontens romance que antecipa a atmosfera da Léxico familiar e As tarefas de casa, obra que esclarece a imaginação e a voz de Ginzburg. Além disso, é curioso pela atualidade, e surpreendente pelo que Ginzburg esboça”.

Aqui teremos de começar pelo feminismo, que é o grande assunto que não se pode ignorar quando se trata de Ginzburg. “A relação da escritora com o feminismo sempre foi difícil e ambígua. Como muitas mulheres de sua geração que se dedicaram à literatura, Ginzburg estava incomodada com a etiqueta de ‘mulher escritora’”, escreveu Rebbeca West num estudo dedicado à italiana e publicado no Canadá em 2000 (Natalia Ginzburg, a voice of the 20th century).  “Numa entrevista lhe perguntaram se sua relação com Elsa Morante era especial porque as duas eram mulheres e contestou com um por que teria que ser especial”. Agora, pensemos nos heróis da literatura italiana de sua época: Alberto Moravia, Italo Calvino, Giorgio Bassani, Primo Levi, Cesare Pavese... Parece-nos que Ginzburg está à sua altura? Sim, verdade? Mas temos que recordar que existiu, que seus livros são tão bons como os dos seus colegas.

Seus contemporâneos tinham uma boa imagem de Ginzburg; boa mas não excelente. Seus livros haviam tido êxito de crítica e público, estava considerada como uma alternativa ao par Calvino / Moravia... Mas seu trabalho se considerava, no fundo, coisa de mulheres, algo que podia estar bastante bem mas que não era o mesmo. “O comezinho, o cotidiano, o familiar”, assim definia West os temas de Ginzburg. Todos os ontens, por exemplo, está cheia de mães estoicas, de jovens malquistas, de universitárias que perdem a fé nos estudos e pensam em casar-se e deixar as dificuldades da vida... Isto é, personagens e conflitos que são o contrário do que então se pensava no que se chamava de “grande literatura”.

Também está a memória íntima em seus livros. Essa debilidade a usou Luigi Malerba, um autor de romances históricos, um autêntico macho de seu ofício, para ridicularizar Ginzburg numa crítica que escreveu nos anos 1960. “É a galinha pensativa: como não lhe ocorre nem argumento nem ideias, título, se dedica a fazer umas memórias de infância. Renuncia entrar em estruturas complexas. E tem êxito”.

Ginzburg, ao invés de rebelar-se frontalmente com opiniões dessa natureza, lutou para entrar nesse mundo viril. Sua maneira de ser feministas consistiu em lutar, beber, fumar e falar como um homem. Despojou-se até a última gota do ornamento e quis ser uma mais entre os garotos. Tralhando como editora na Einauldi, foi aceita pelos seus pares como uma mais da quadrilha. Mas não escrevia como um homem. Essa talvez tenha sido sua maior resistência. Como se dissesse hão de me aceitar assim como sou. Os leitores que durante anos devoraram a série napolitana de Elena Ferrante entenderam facilmente esse aparente paradoxo.

O problema do judaísmo é parecido. Existe um ensaio de Nadia Castronuovo sobre os casos de Giorgio Bassani, Primo Levi e Natalia Ginzburg, os grandes autores judeus da literatura italiana, nascidos os três entre 1916 e 1919. A primeira diferença entre Ginzburg e seus colegas é que ela não apenas vagamente judia. Seu pai, Giuseppe Levi, era um médico de Trieste, um cientista ateu, docemente descrito em Léxico familiar. Em troca, sua mãe, Lidia, era católica. Mas o verdadeiramente importante é que sua filha, a mulher que nasceu como Natalia Levi, quis ser, antes de qualquer outra coisa, uma revolucionária socialista. Para esse propósito, sua cultura judaica era algo que a impedia, de novo, ser apenas mais uma.

Depois, logo chegou Leone Ginzburg, o editor e ativista antifascista com quem Natalia se casou (também era judeu, embora não italiano; era um recém-chegado da Romênia). E veio Mussolini. “Minha identidade judia só se converteu em relevante no dia em que os judeus foram perseguidos”, disse Ginzburg. Sempre interessada em extrair da vida material suficiente para sua literatura, Léxico familiar tornou-se, então, o livro mais judeu da italiana: um grande relato de ternuras, anedotas e dramas numa família laica. Suas raízes se expressavam através de algumas quantas manias e traços pitorescos e encantadores que não poderiam causar nenhum dano a ninguém. Mas a tragédia estava esperando à medida que avançavam os anos. Aos interessados pela literatura da italiana (e a italiana) devem ler Léxico familiar antes de O jardim dos Finzi-Contini, de Giorgio Bassani, como uma maneira de multiplicar o afeto pelos dois romances.

Natalia Ginzburg foi a um povoado dos Abruzos esconder-se da Guerra. Leone morreu executado pelas forças de Mussolini, como tantos outros, no cárcere de Regina Coeli. Tinham três filhos. Quando findou os conflitos, ela foi morar em Roma; começou a publicar seus livros e a participar na política com entusiasmo renovado. Todos esses elementos não serviriam de outra maneira à escritora se não na construção de uma obra cuja memória fosse uma questão primária e necessária.

Há um cenário simbólico que explica aqueles anos: o traforo  Umberto I, o túnel que atravessa, revestido de branco, a colina do Quirinale em Roma. Ali, como cristãos antigos, se reunia um grupo de antigos resistentes que haviam migrado do comunismo e se aproximavam de uma nova esquerda que já não era marxista e que se expressava através do Partido d’Azione. Naquele núcleo, Ginzburg acreditou ver um novo mundo, uma Itália “clara, linear e simples”. Ferruccio Parri, seu líder, chegou a integrar o Governo em 1945, mas não aguentou nem um ano no poder. A Democracia Cristian previu sua debilidade e o deixou cair.

Aquele desengano foi uma das grandes decepções vitais de Ginzburg, que se recolheu em sua casa de Piazza Campo Marzio; quando já era uma anciã venerável, alguém quis convertê-la em senadora do Partido Radical. A escritora se deixou, ainda com a expressão de ligeira indiferença.


Por que ler Natalia Ginzburg?

Como lembra Patricia Peterle “A narrativa de Natalia Ginzburg, apesar da sua singularidade, acompanha os movimentos tortuosos das manifestações artísticas do entreguerras e do crucial período posterior à década de 1940. Memórias, ensaios, uma prosa ou um texto teatral [de uma figura que foi atriz em produções de Pier Paolo Pasolini] revigorantes, uma escritura nítida preocupada com as ações e os gestos cotidianos. Num panorama pelos seus escritos, passa-se de um neorrealismo inicial, presente nos primeiros romances, para uma narração mais vigorosa que aos poucos vai sendo aprendida e construída, fruto das experiências de mundo e daquelas vivenciadas em primeiro plano. Preocupações íntimas, mas também relacionadas à essência do ser humano, perfiladas pelo toque e pela sensibilidade do seu olhar e testemunho”.

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