A ignorância, de Milan Kundera

Por Christopher Domínguez Michael



Não sem certa culpa descobri, ante A ignorância, que há quinze anos não lia um romance de Milan Kundera. A brincadeira (1967), A vida está em outro lugar (1973) e O livro do riso do esquecimento (1978) formam uma trilogia essencial na e sobre a história contemporânea da Europa. Irei mais longe: Kundera foi decisivo para que muitos leitores ocidentais rompêssemos as últimas amarras sentimentais e simbólicas com o universo stalinista. Quando vivíamos à sombra da cinzenta árvore da ciência, perdíamos o tempo buscando em Trótski, Bruno Rizzi, Charles Bettelheim ou Rodolf Baho uma iluminação teórica que prometia entender esse eufemismo chamado “real socialismo”. Kundera, com essa convicção não apenas brinda a arte do romance, aparece para permitir, às vítimas da ilusão lírica, o festejo da queda do Muro de Berlim em 1989.

Mas a história castiga seus profetas. Kundera, nascido na antiga Tchecoslováquia em 1929 e refugiado em Paris desde 1975, olhou de fora a Revolução de Veludo, obra direta de outra geração, a de Václav Havel, o dramaturgo-presidente. Entretanto, Kundera continuou publicando ensaios luminosos sobre música e literatura (A arte do romance, 1986 e Os testamentos traídos, 1996) e um par de romances que acrescentavam sua riqueza erótica e intelectual: A insustentável leveza do ser (1985) e A imortalidade (1990).

Quando Alexander Dubcek morreu, em 1992, o rosto humano da Primavera de Praga, muitos se perguntaram se seu desaparecimento não seria também o de Milan Kundera. A ignorância é a resposta do romancista a esse apressado epitáfio.

Em 1955, Kundera tomou a decisão capital na vida de um escritor. Abandona o tcheco pelo francês para escrever não só teatro e ensaio, mas também o romance. Além disso, supervisionou as antigas traduções de sua obra e deu às versões francesas “o mesmo valor de autenticidade que o texto tcheco”. Não é preciso saber tcheco para entender sua trilogia seguinte formada por A lentidão (1995), A identidade (1997) e A ignorância (2000) como um voto de pobreza, com tudo o que há de humildade e soberba em tomar as Ordens. Diferentemente de Kafka, para quem o alemão era a língua do judaísmo europeu, ou de Nabokov, quem elegeu o inglês como um capricho genial contra a extinção, a Kundera, aparentemente, nenhuma razão radical o forçava a abandonar sua língua nativa. Talvez em A ignorância estejam as razões explícitas dessa decisão.

O voto de pobreza de Kundera reduziu o léxico em A lentidão e em A identidade, nouvelles à maneira de receber a hospitalidade do público francês majoritário. A primeira resgata o museógrafo e libertino Vivant Denon (1747-1825) e confronta a deliciosa preguiça do Antigo Regime com a velocidade, uma das essências finisseculares, segundo os exegetas pós-modernistas. Menos feliz resulta A identidade, onde Kundera recorre a uma paródia que ele mesmo havia previsto numa página magnífica de A imortalidade: o casamento entre a alma eslava e a petulância francesa pode resultar tragicômico.

Ambas essências se atraem com a gravidade que criam um vaporoso apocalipticismo cotidiano, onde cada coito, embriaguez, gesto de desamor, piscadela inconsciente, doença da alma ou do corpo, alcançam uma dimensão de dramática tortura dostoiévskiana... que se resolve no divã de um psicanalista lacaniano. Esta impostação que é notória em A identidade pode ser vista nos filmes que compõem a trilogia das cores do polonês Kieslowski e é como transcrever as sinfonias de Dvorak para as valsas e as mazurcas de Emile Waldteufel.

Por sorte, o voto de pobreza tomado por Kundera depende de uma regra canônica estabelecida pelo próprio romancista: o seu romance deve ser uma promenade a século dezoito. Em seus grandes momentos o escritor se jogou no trapézio para evitar tocar a terra do século XIX e cair elegantemente em pé junto a Diderot, Voltaire, Sade, Chordelos de Laclos. Até A imortalidade, com esses soberbos diálogos entre Goethe e Hemingway, o surpreendente artifício funcionava: a má consciência romanesca se salvava em nome do conto filosófico. Mas com um sentido de humor do qual carecem “verdadeiros” escritores franceses como Marguerite Duras e sem a inteligência geométrica de Cioran, outro expatriado, Kundera não podia ignorar o risco nem fingir que lançava suas cartas à sorte sendo, como é, um brincalhão empedernido e audaz.

Ante formas breves e concentradas como A lentidão, A identidade e A ignorância, Kundera foi intensificando os rigores de seu voto de pobreza. Em 1985, num congresso em Madri, escutei um intelectual espanhol de conhecida trajetória antifranquista interromper as lamentações dos escritores sul-americanos: “Senhores, eu também sei o que é sair de uma ditadura sem ter nada a dizer”.



Kundera, digno, deixou de se apresentar em Praga e ante ao mundo com um romance instantâneo que acreditará sua autoria moral, intelectual e artística na Revolução de Veludo. Talvez contra sua vontade, com as personagens de A vida está em outro lugar, se viu deslocado da história, embora esta houvesse lhe brindado uma satisfação política. Retirou-se, meditabundo, talvez se perguntando se a destruição de seus perseguidores não seria também o fim de sua vida estética. Não abandonou o romance mas guardou silêncio nele ante a Tchecoslováquia como problema. Uma década depois, quando a rotina democrática se impõe em Praga, Varsóvia e Budapeste enquanto o horror nacionalista toma conta da Iugoslávia, Kundera rompe o silêncio do exilado.

O anseio do desterrado, disse Kundera, é a dor da ignorância. Seu esperado romance tcheco não é um roman-fleuve onde o imago de Rimbaud / Jaromil, poeta e verdugo, reaparece no século XXI à maneira de consequência oportunista.  Graças a dois exilados sem características, Irena e Josef, que se encontram fortuita e kunderaniamente no aeroporto de Paris, o romancista dialoga com Ulisses, o príncipe dos desterrados e como ele sabe que a terra abandonada, como as águas heraclitianas, já não é a mesma trinta anos depois.  

Irena e Josef, recebidos cordialmente, são Ninguém, como Ulisses. Seu improvável retorno depende da ignorância desejar por seus compatriotas. Pedem-lhes para esquecer o seu caminho até Ítaca. Por isso, os antigos consideravam mais infame o desterro que a morte. Mas a Ulisses lhe restava a função narrativa, enquanto que ao casal acidental de A ignorância só lhe é dado o silêncio, como a Kundera a assumida pobreza de ser um mais dos escritores franceses.

Como Schönberg em A ignorância, Kundera não se subestima. E até agora, não subestimou o futuro, pois não caiu na vulgaridade de apresentar-se como alguém melhor dos que não sabem o que dizer por baixo de uma ditadura. Só um filósofo do romance poderia tomar a decisão de não confundir o artigo de opinião com a ficção artística. Seu romance tcheco, e digo com aliviada decepção, não adotou a majestosa forma sinfônica. Ao contrário, A ignorância deixa em seus leitores essa excitante tristeza própria das “Letras íntimas”, o segundo quarteto de cordas do músico tcheco Leos Janácek.

Kundera dedicou seus primeiros romances a desmontar a natureza epopeica do comunismo, a desenhar com giz a roda da alegria revolucionária como um círculo do inferno. O comunismo é história, mas o fim abrupto dessa longa marcha não deu motivo algum a Kundera para reconciliar-se com a história. No inverno de 1989 soube que o anseio é uma forma de ignorância mais radical que a política ou qualquer outra manifestação fenomênica do tempo. A vida, certamente, está em outra parte.

* Este texto é uma tradução de "La ignorancia, de Milan Kundera", publicado na Letras libres.


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