Sergio Pitol: muito além dos lugares comuns


Por Jezreel Salazar

Sergio Pitol, 1988. Foto: Rogelio Cuéllar


Diante o universo anedótico que só se multiplica quando desaparece um autor insubstituível, é essencial ir além dos lugares comuns em torno de sua personalidade para situá-lo da melhor maneira na história literária do país. Entre as qualidades que acompanham Sergio Pitol (e que seguramente se repetirão centenas de vezes), há uma que me parece difícil de continuar sustentando: o vanguardismo voluntário de sua obra, que se supõe acompanharia sua extravagância pessoal. A ideia de que pertenceu ao universo “dos raros” me parece pouco séria, muito conjuntural e associada ao desconhecimento de seus livros. Quando alguém revisa os comentários críticos da série de textos que publicou depois de voltar a Xalapa em 1993 (depois do grande périplo de quando viveu fora do país), se fala de livros insólitos, híbridos, pós-modernos ou difíceis de classificar. Há alguma razão nisso, mas estes epítetos nos levam a ler tais obras como deslocadas de sua produção literária inicial e como os escritos de um autor culto, quando foi a publicação precisamente desses livros o que o levou à consagração comprovável com o Prêmio Cervantes que recebeu em 2005.

Sua chamada Trilogia da memória (que não é uma trilogia se consideramos que além de A arte da fuga, A viagem e O mago de Viena, Pitol publicou Uma autobiografia enterrada, Memória 1933-1966 e O terceiro personagem) só se interpreta como a obra de um escritor que em seus últimos anos havia abandonado o romance com o objetivo de transgredir os cânones pré-determinados; nesse sentido, estaríamos ante um vanguardista. Não estou de acordo. A ambiguidade genérica de suas últimas obras responde não a um afã de ruptura, mas a essa exploração dos limites que tanto interessava a Pitol. Mais que ante um dessacralizador pós-moderno, estamos ante um sátiro moderno, em cuja escrita o que prevalece não é a busca da inovação, mas o interesse de transtornar seu entorno. Daí que seu espírito não seja bélico, mas festivo: seu projeto não tem como mira o confronto, mas o festejo. O tom de sua literatura confirma isso: seus livros não estão do lado da épica, mas da comédia. Diria mais: suas aventuras formais não nasceram sob o amparo de uma moda ou contra uma tradição, mas em relação com uma maneira pessoal de ver o mundo.

Por isso, nos melhores momentos das últimas obras de Pitol, o afresco autobiográfico alcança um tom confessional ligado ao disparate, ao jocoso delirante e ao grotesco social. Mais que a iconoclastia pública, Pitol preferia a conspiração cúmplice e privada, a ridicularização festiva das solenidades, as hipocrisias e as autocomplacências. Daí também que não seja possível sustentar que a ambígua escrita autobiográfica de Pitol se derive de um busca vanguardista ou pós-moderna. É necessário rastrear noutro lugar sua origem.

Quando Pitol afirmou que lhe interessava do mundo latino seu caráter de “simultaneidade no diverso”, formulou uma noção que parece descrever não apenas o espírito libertário de sua obra, mas também a ambiguidade genérica da Trilogia da memória e, especificamente, de O mago de Viena. Múltiplas formas discursivas e tipologias textuais aparecem no mesmo lugar e ao mesmo tempo, como se se tratasse de uma espécie de Aleph textual. Numa entrevista, Carlos Monsiváis lhe faz uma pergunta que nos confirma este elemento borgeano: “Em O mago de Viena, mais que em nenhum outro de teus livros, localizo as referências de tua ‘oficina’, o modo como observas, memorizas, inventas, subvertes. Por que aproximar os leitores das entranhas de teu trabalho?” Pitol responde: “A oficina é absolutamente indispensável em minha obra, especialmente neste Mago de Viena. Sua escrita é sua construção. É um livro que nasce sob a sombra de um lema primordial dos alquimistas: ‘Tudo está em tudo’”.

Esta simultaneidade no diverso não justifica simplificar a obra ao caracterizá-la como o resultado da desaparição dos gêneros (ou da presença de características pós-modernas em sua escrita). O problema de fazer isto é que tende a homogeneizar as particularidades de cada um de seus livros, o que impede compreender o modo diferenciador em que se esgarçam as diferentes formas genéricas neles. Do mesmo modo, meter num mesmo baú obras que possuem sua própria organização formal dificulta apreciar o futuro do projeto de escrita do narrador veracruzano. E não só isso, também apaga de questão a genealogia peculiar da qual surge cada obra, uma genealogia que por todo o resto resulta de grande importância para Pitol, como uma e outra vez nos recorda em suas reflexões como leitor.

Uma ideia reiterada na hora de ler Pitol é o estabelecimento de cortes entre distintos períodos, os quais suporiam mudanças fundamentais em sua produção, descobertas criativas que aparentemente trazem consigo modificações fundamentais ao interior de sua arte poética. Esta leitura se deve, em parte, ao que o próprio Pitol enumerou como etapas na obra de narrar sua evolução intelectual. De acordo com esta visão esquemática, a primeira etapa estaria constituída pelos primeiros contos compilados em Tempo preso; a segunda por mais dois volumes de contos (Os climas e Não existe tal lugar) e os romances O som de uma flauta e Jogos florais; a terceira pelo Tríptico de carnaval; e a quarta pela Trilogia da memória. Romper esta organização e  rastrear algumas linhas de continuidade pode ser útil para compreender melhor o valor da literatura de Pitol.

Ao explicar como escreveu seu primeiro romance, O som de uma flauta, afirmava: “O medo de criar um híbrido entre o relato e o tratado ensaístico me impulsionou a intensificar os elementos narrativos”. E sim. Quando alguém lê esta obra pode comprovar que desde o início Pitol tinha uma forte tendência a dilatar as tramas em favor da reflexão, a qual quase sempre se expressava através de elementos metadiscursivos. Nesse sentido, o que Ricardo Piglia chama metacrítica (o uso da crítica no interior da ficção) seria uma das marcas estilísticas de Pitol. O emprego intensivo de estruturas de caráter digressivo assim como o uso reiterado do comentário interno são características que podem ser apreciadas em outros de seus romances e em muitos de seus contos.

O que chama a atenção é como Pitol qualificava esse impulso criativo de mesclar narração e reflexão em termos negativos: “O medo de criar um híbrido”, dizia. Dessa mesma relação conflitiva nasceu, trinta e três anos depois, um livro como O mago de Viena, e é o receio de publicar um livro de ensaios chato, tradicional e parado (um livro contrário ao seu caráter explorador, excêntrico e paródico), o levou a experimentar formalmente com ele, introduzindo componentes narrativos e elementos de fabulação.

Como se combatesse conscientemente a tendência à reflexão e à crítica textual, Pitol pensou suas obras sob o ideal narrativo do romance, mas paradoxalmente não pode anular o impulso ensaístico que sempre o acompanhou devido a grande autoconsciência que possuía como narrador. Nesta tensão intrínseca se encontra boa parte do atrativo de sua obra. Vista desta perspectiva, sua historia foi a do escritor que viveu buscando uma forma de conciliar dois sistemas de escrita tradicionalmente concebidos como opostos (dado que toda reflexão afeta o caráter narrativo de um texto e na medida em que a narração equivale a ação).

O significativo é que talvez seja em O mago de Viena onde melhor conseguiu fazer conviver esta dupla escrita, sob o designativo do autobiográfico (basta recordar que A arte da fuga mantinha estruturalmente uma divisão entre “Memória”, “Literatura”, “Leituras”, e que A viagem alternava entradas de um diário com comentários de leitura e crônicas autobiográficas).

Consciente disso, ao referir-se à forma deste tipo de obras, o próprio Pitol sublinhou na introdução aos seus Escritos autobiográficos: “Nesta fuga de gêneros literários quase todos os ensaios se imbricam com algum relato. O ensaio e a narração se unem”. Fuga de gêneros foi a formulação que ele utilizou numa reflexão em que a carga negativa com que se referia ao hibridismo textual havia desaparecido.

A epígrafe de E. M. Forster com que inicia O mago de Viena (“Only connect...”) é também um sinal neste sentido, pois alude ao princípio de associação livre próprio do ensaio como marca fundamental da estrutura da obra, princípio que aí se torna praticamente um mecanismo narrativo graças ao que o próprio autor, já convertido em personagem, adota o papel de eixo articulador: “Na realidade a autobiografia está presente desde meus primeiros contos e na Trilogia da memória o que busquei foi uma forma diferente de abordá-la, convertendo-me em personagem que deambula por todas as páginas”.

Vista desse modo, a ambiguidade genérica de O mago de Viena não é resultado pós-moderno ou o rupturista de um projeto de vanguarda, mas a solução individual que Pitol encontra para evolução interna de sua própria obra. Da mesma maneira, tem a ver com a genealogia literária que o escritor constrói para dialogar com a literatura mundial construir um lugar especial no interior do campo cultural mexicano.

Como disse Ignacio Sánchez Prado, a estratégia fundamental de Pitol na hora de construir suas genealogias literárias consistiu na reivindicação de figuras ou “menores”, que permitiam-no inscrever-se em “cânones que fogem das linhas principais da moderna narrativa ocidental”. Ao filiar-se a esses espaços marginais do cânone ocidental, Pitol reivindicava a excentricidade como modelo de leitura e se situava, a partir dessa genealogia provocativa, à margem da tradição literária dominante no México. Se pensamos que no momento quando apareceu A arte da fuga não se publicavam no México livros semelhantes, e recordamos que foi a partir daí que Pitol começou seu caminho de consagração, podemos afirmar que o efeito renovador e recanonizador de sua estratégia teve êxito.

É preciso dizer que a genealogia pessoal de Pitol, além de muito original, foi realmente diversa. Assim como o Tríptico de carnaval sua linhagem foi elaborada a partir de autores da tradição eslava e saxônica dedicados à sátira (o que lhe permitiu construir um inovador contexto de leitura para sua própria obra), em seus textos memorialísticos Pitol bebeu de outras fontes. No princípio, a tradição alemã do romance-ensaio em suas versões clássicas (Thomas Mann, Herman Broch) e contemporâneas (Claudio Magris e W. G. Sebald), que têm o pensamento como um elemento fundamental da narrativa; além disso recuperou livros de alguns autores eslavos, sobretudo russos, em que o biográfico se mistura com a teoria ou a reflexão (Marina Tsvetáieva, I. N. Tyniánov). E para o caso ibero-americano, Pitol recobrou a miscelânea ensaística de Reyes, com toda sua capacidade para a ars combinatória, assim como a obra de Enrique Vila-Matas com sua forte tendência em misturara fabulação e reflexão intelectual.

O lugar singular de Pitol na literatura mexicana depende desta dupla estratégia discursiva (narrativizar a crítica e construir uma genealogia descentrada). Daí derivam boa parte das razões intelectuais (e afetivas) do por quê vamos estranhá-lo.

* Este texto é uma tradução de "Sergio Pitol: más allá de los lugares comunes", publicado no El Universal. 

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