Noite dentro da noite, de Joca Reiners Terron


Por Pedro Fernandes



Há pelo menos três instantes de corte metalinguístico – não explícito – que estabelecem três possibilidades de leitura sobre Noite dentro da noite. O primeiro deles remete a ocasião quando o narrador tece uma explicação (e são muitas) para um termo que é recorrente na sua narrativa; esclarece que pyhareryepypepyhare para os mbyá-guarani corresponde a um instante mais denso da noite, uma vez o tempo para eles pertencer a outra dimensão diferente desta forjada pelo homem branco – “o instante mais denso de escuridão que antecede o alvorecer incerto, o instante mais negro de toda existência, pois não se sabe se haverá o seguinte”.

Depois, o segundo, a exposição metafórica sobre a história narrada: uma “saga pantanosa que, como tudo que se origina no pântano, não tem bons alicerces, não tem fundamentos que a sustentam, é feita de lama movediça que engole tudo e às vezes devolve, às vezes não”. E, por último, o registro de uma fita K7 da rata, personagem que integralmente designada dessa maneira em todo romance, isto é, destituída das feições humanas ou com estas feições transmutadas nas feições do roedor, registro, aliás, que esclarece o pantanoso território onde circulam os acontecimentos; diz a personagem que: “Toda história de família é uma história de fantasmas. Quem escreve essa história sempre está morto nem que por um momento, um tempo de exílio para observar a vida de maneira isenta, à distância”.

O primeiro instante é o de um elemento linguístico tornado metáfora cuja expressão justifica a própria estrutura do romance: este se concentra na densa escuridão da existência, que é do apagamento da memória e a tentativa exasperada por sua recuperação a fim de, conseguindo vencer esse feito, poder explicar sobre si. Isto é, tem valia aqui a pergunta de corte filosófico e existencial quem sou eu. A busca pela memória coincidentemente deságua noutro terreno de treva que são os períodos da conturbada história da América Latina, aqueles que só foram áureos para os interessados no exercício da opressão, do silenciamento, do ódio ao diferente, e presos num sectarismo obscurantista estiveram muito próximos, se não alcançaram, da degeneração total do homem. Ou seja, não apenas a de um passado que se esconde no mais profundo da escuridão, é também um tempo que se oculta; tempo este que se vivifica como uma espécie de afloramento tal como a memória esquecida que mesmo não existindo em sua totalidade insiste em constituir interferência sobre o presente.

Nesse sentido, Noite dentro da noite se constitui por uma extensa diversidade de camadas, ficções no interior de ficções, intersecção de várias temporalidades que compõem uma complexa caligrafia sobre as histórias individuais em que as mais simples situações encontram ecos em outras que estão num passado alheio a nós. O universal somos todos – parece querer nos dizer este romance. Nossa consciência é que ainda é insuficiente para alcançar essa compreensão do Todo. Porque o contexto que o passado da personagem principal, cuja única feição mais concreta que se mostra é a de ser o filho bastardo de um revolucionário que toma para si o filho de um embaixador alemão morto numa tentativa de sequestro da luta armada contra a ditadura, é o de quando se misturam ciência, misticismo e experiências paranormais, o pantanoso na narrativa de Curt Meyer-Clason, o narrador, é a incursão que faz pela história dos Reiners. Ciência, misticismo e experiências paranormais dão forma a uma intricada tessitura de acontecimentos que visam justificar uma espécie de destino possível a que a personagem principal estava condenada. É como se nossas ações fossem repetições contínuas do já-acontecido, com pequenas alterações propiciadas por falhas que diríamos, desvios de curso do que estabelecemos como metas individuais nas linhas da existência. A história dos vivos, concorda esse narrador, é feita em grande parte pelo eco dos mortos.

Sem memória, essa personagem designada apenas por você – na relação assumida pelo narrador para com ela (como se uma voz que tentasse contato com a própria consciência de quem escreve) – a saga familiar é continuamente interceptada com perspectivas fabuladas pelo narrador. Sobretudo as da infância vivida entre fugas entre Rio de Janeiro, Mato Grosso e Paraguai. Quer dizer, há um registro que é a fita da rata a descrever sobre como essa personagem chegou ao interior da família Reiners e como se envolveu ainda em criança com o assassinato do irmão postiço e quando adolescente num atentado na escola onde estudava – o resto é preenchido com possibilidades que encontram reverberações no passado da família alemã. Estas ficções da história principal em grande parte funcionam como alternativa frente ao horror e ao desencanto, tal como a comprida narrativa que a rata conta na fuga entre o Mato Grosso e Paraguai.

A infância dessa personagem-enigma de Noite dentro da noite revela-se assinalada por uma brutal e torturante violência. Como tudo neste romance é empregado a serviço de dizer sobre outra coisa, tal como a metafórica expressão-título, estes episódios da infância se permitem a compreender como num estado militar a violência instituída reverbera nas relações mais simples. Assim, o diverso catálogo de horrores vividos na escola se mostra como uma pequena fábula sobre o que significa os tempos que vez ou outra se quer ignorar com a falsa consciência da paz social. Nisso Terron-Curt são impiedosos: o primeiro quer nos despertar dessa letargia sobre trágico; o segundo quer despertar a consciência de sua personagem para o que foram os anos da infância, esses que certamente agravaram ainda mais seu estágio de perda da memória. É singular ainda que essa personagem desmemoriada também seja uma sem voz, apontando claramente para uma compreensão de que, somente ao sem memória é permitido olhar para o passado trágico e não o reconhecer ou ignorá-lo e se mais não sabemos da nossa tragédia é porque os que poderiam falar estão mudos porque mortos e nos resta falar por eles.



Toda memória é rizomática. E por isso o pântano, lugar favorável ao desenvolvimento do rizoma, que cresce em direções sem direção, é designado enquanto metáfora sobre a narração de Noite dentro da noite. É um extenso labirinto e uma tenebrosa visita ao submundo da violência instituída. Sim, não é apenas a violência escolar, o embate entre crianças e jovens, é a visita à nascente dos campos de concentração nazista e aos experimentos de ordem perversa com crianças judias, é o trânsito pelas prisões militares, pelo tratamento contra os opositores ao regime, pelas estratégias de perpetuação no poder de uma ordem cujo único desejo é benefício próprio e o apagamento das individualidades pelo enquadramento de todos numa ordem de contínua subjugação. Como intercalar o horror do mundo numa história individual? Cabe novamente voltar à compreensão de que o mais denso da escuridão noturna se apresenta manifestado nessas situações – assim, pyhareryepypepyhare, é como um visgo no qual se grudam as várias histórias que representam a saga dos Reiners e é também uma força onipresente (o mal?) que se mostra em toda parte, entre as perversidades e por entre a consciência perturbada nascida daí. Mais: esse espírito, um zietgeist, também nos perpassa, porque a trajetória dessa personagem em busca de sua memória é a nossa própria trajetória. Ao referir-se a ela como se se dirigisse ao leitor, o romance nos propicia mesmo essa possibilidade.

O amontado de histórias que parecem se repetir continuamente ao ponto de nos confundir personagens e situações esclarece o pantanoso como matéria sobre qual narrador (e o leitor) transitam. Mas, em cada uma delas, como se estivéssemos num romance de mistério, se revela uma ou outra peça sobre o passado dessa personagem-enigma. Quer dizer, embora estejamos num pântano que tudo engole, dele emergem, por vezes, as informações mais precisas sobre a figura central que nele habita; assim, além do já dissemos sobre, nos apontam o período quando abandona o curso de arquitetura na Universidade Federal do Rio de Janeiro, fica à mercê de uma célula militar que o sequestra para uma atividade que ponha abaixo as primeiras presidenciais no Brasil, foge para São José, o sítio de Hilda Hilst onde encontra-se com Curt Meyer-Clason, situação que o permite recompor sua trajetória de quando criança a fim de descobrir melhor seu passado. Não sabemos nada mais da personagem central.

Possivelmente, porque o grande protagonista deste romance de Joca Reiners Terron, seja mesmo a noite, que como notamos se assume em várias feições desde o título: do mundo, da humanidade, do indivíduo. Ao dizer isso chegamos ao ponto final das três situações recobradas no início deste texto: de que “toda história de família é uma história de fantasmas”. Novamente seria ingênuo tomar a expressão apenas pelo que revela na sua superfície, isto é, a possível compreensão de que a memória, signo que determina a saga familiar, é um falso ancoradouro para a certeza de quem somos. O fantasmático aqui se configura num elemento do qual estamos condenados a não o renegar, tal como a ficção e a fabulação. É pela memória que podemos estabelecer uma unidade de significação capaz de nos dizer sobre nós; é nossa primeira forma de alteridade, a que assumimos de nós para nós, para em seguida assumirmos de nós para com os outros – os de dentro e os de fora de nós. O fantasmal é a iluminura sobre a mesma superfície escura que define o eu-oco e a noite que de tempos em tempos recobre os homens.

Noite dentro da noite junta-se a breve lista dos melhores títulos construídos pela recente ficção nacional – aqueles que bem podemos designar como novíssimos. É uma obra que nos obriga ruminar uma diversidade de possíveis porque está alimentada por uma rica capacidade inventiva e imaginativa capaz de reunir num só livro o encantamento pelo que se narra e a reflexão mais elaborada sobre nós e nossa história, dois dos valores mais caros da literatura desde sempre – e isso é um privilégio que atenta contra o discurso simplista de que as grandes criações literárias no Brasil estão em extinção.

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