Do (des)engano

Por Guilherme Mazzafera





... a razão de ser do ensaio consiste menos em encontrar uma definição reveladora do objeto e mais em adicionar contextos e configurações em que ele possa se inserir.

Max Bense, “O ensaio e sua prosa”


1.

Ledo engano: poucas expressões idiomáticas são tão assertivas em seu acoplamento de contrários. O descaminho que conduz ao encontro com o novo é a vereda do sábio e “Os sábios só falam do que conhecem”. O logro de Leda por Júpiter transformado em cisne, eternizado no quadro perdido de Leonardo, deu à luz figuras de primazia nos mitos gregos: Cástor, Pólux, Clitemnestra e Helena, aquela cuja beleza – topos do engano clássico – raptada moveu o exército grego às plagas de Ílion, pondo em marcha a literatura ocidental.

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Para a teologia cristã, o ledo engano irmana-se à felix culpa, engastada por Eva, cujo ouvido cede ao verbo melífluo do ínfero anjo. A queda que demanda expiação potencializa-se em símbolo na entrega apaixonada dos mártires, em gozo profundo de um amor maior, vincado pelo sangue que fertiliza a terra.

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Na confluência dos rios que irrigaram o solo da literatura do Ocidente – a nascente greco-latina e a foz judaico-cristã – Erich Auerbach desvelou o que há muito se ocultara: a sublimidade do cotidiano como matriz de um realismo progressivo, alçada à forma. Momento iniciático: o Novo Testamento e seu herói, o Jesus evangélico, pedra que os construtores rejeitaram e que sabiamente nos adverte: “A candeia do corpo é o olho. Se o teu olho for simples todo o seu corpo será luminoso”. Simples (haploûs) aqui é o que não se deixa adulterar pela imago mundi, vendo através das aparências. Lição preciosa, que ainda nos cabe.

2.

Trompe l’oeil, expressão francesa, é uma técnica artística pictórica que, amparada no conceito de perspectiva que ganha novos ares no período renascentista, promove uma ilusão ótica em que formas bidimensionais semelham ter três dimensões. Para além de seus efeitos específicos, entre os quais se inclui a sensação de alargamento ótico dos espaços – ver, por exemplo, o belo trabalho de Antonio Correggio no domo da Catedral de Parma, em que a Ascensão da Virgem ganha foros de live action pela impressão de continuidade entre o domo e o céu –, sua eficácia radica, como em qualquer procedimento artístico que permanece, na representação mimética de uma experiência humana fundamental.

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A propensão do olho ao engano é explorada pelas mais diversas modalidades de arte, do mágico de rua ao fotógrafo que, em situações sociais de tensão, se vê obrigado a manter um olho no visor e outro no entorno. Se, em arte, o engano é deliberado, por processos complexos de edição e ocultamento, na vida que corre, pode ser experiência desnaturalizadora. A confusão infantil entre uma flor e uma lagarta, o tocar aquilo que se julga conhecer, traz em si todo um novo universo de sensações, muitas vezes mediado pela dor. A incapacidade inicial de distinguir – distingo, verbo dileto de Montaigne – ganha renovado matiz pelo esgarçamento dos sentidos.

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O alargar-se, no entanto, é confrangido pelo contexto em que o eu da experiência se insere. Em estudo fundamental presente em seu livro Arte e ilusão, Ernst Gombrich mostra, a partir da comparação entre dois quadros que retratam uma mesma paisagem, o quanto seus resultados se atrelam ao previamente conhecido dos pintores, isto é, ao seu contexto formativo.  Em certa medida, o mesmo se dá com a linguagem: ao nascer, todas as possibilidades sonoras nos são factíveis; uma vez que determinadas maneiras de pensar e produzir cadeias sonoras são introjetadas, certas consoantes e nuanças vocálicas tornam-se irreproduzíveis.

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Sabatina-se o olho ao mirar uma foto premiada. As interpretações que se podem elucubrar a partir disso são inúmeras, mas, pela ação coercitiva do caldo cultural, parece haver sempre uma tendência a associar tais fotos com crises históricas profundas, em que um agrupamento de homens (ao fundo) e mulheres (à frente, sob véus) em campo aberto, coercitivamente se projeta como a de um grupo de refugiados em marcha perigosa. O olhar esquivo de uma única menina, branca, sem véu, que quase nos encara, parece reforçar a dimensão de mudança repentina, viagem indesejada, que não se entende, mas teme. Teria ela tocado sua lagarta?

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Reverso da medalha é, também, o deletério efeito da cristalização interpretativa. Uma vez clarificada sua imanência ao contexto, torna-se praticamente impossível reler a foto sob viés distinto, sendo este, inclusive, um interessante teste diante da insuspeitada conformação de nossas disposições hermenêuticas.

3.

O exemplo mais fragoroso na literatura brasileira parece ser a disputa exegética sobre Dom Casmurro:

i) Programático ou não, o engano dá-se no romance “pelos olhos de cigana oblíqua e dissimulada” de Capitu, “olhos de ressaca”, que, para Bentinho, procuram trazer à praia o corpo de Escobar, seu pretenso amante, derrotado em porfia a braçadas com o úmido elemento.

ii) Publicado em 1899, por seis décadas o monopólio crítico apontava a obra como um romance sobre adultério, aceitando com considerável facilidade as asserções não raro contraditórias do protagonista-narrador, Bento Santiago, que descreve sua imaginação como égua emprenhada pelo vento.

iii) Os ventos, de fato, começaram mudar apenas em 1960 quando a crítica norte-americana Helen Caldwell publicou seu importante estudo The Brazilian Othello of Machado de Assis, no qual propõe, à luz da peça shakespeariana, uma inovadora leitura da obra, compreendendo a escrita do livro por Bentinho como engenhosa peça de acusação contra Capitu, puramente baseada em indícios sem evidências irrefutáveis. Provar a inocência da moça é o cerne da leitura de Caldwell, que divisa na escrita de Bentinho uma contraescrita do autor Machado que, quebrando as próprias regras da intenção autoral desvelada pela estudiosa (a deixar o veredito ao leitor), estaria a advertir o júri contra as artimanhas sedutoras do ex-seminarista, Otelo tupiniquim que, sem lenço, acena convicto: J’accuse!

iv) Houve considerável renitência diante do livro no Brasil, que não provocou grandes debates, sendo traduzido apenas em 2002. O grosso da crítica acabou por não dar-lhe muita pelota, com a exceção de leitores atilados (Antonio Candido, Roberto Schwarz, Alfredo Bosi, Silviano Santiago e, em Portugal, Abel Barros Baptista) que, com maior ou menor intensidade, levaram adiante suas propostas. Como ponto pacífico da absorção do legado Caldwelliano, indetermina-se a efetividade do adultério, que permanece, a cada leitura, como possibilidade.

v) O fulcro, no entanto, é que a descoberta de tal “ponto melindroso” (para usar uma expressão machadiana) do mecanismo romanesco tenha sido feito por uma mulher não brasileira, conjunção importante pelo seu distanciamento geográfico e de gênero do arcabouço construtivo da narrativa, de cujos efeitos ideológicos Machado, cujo respeito e cuidado na construção de figuras femininas é imenso (ver “A desejada das gentes”, “Singular ocorrência”, entre outros), parecia ter clara consciência, apostando, como propõe o excelente estudo de Silviano Santiago, no efeito do verossímil sobre a verdade.

vi) Nesse estudo, Santiago identifica como matrizes da articulação narrativa de seu homônimo os discurso bacharelesco e jesuítico, prepúcios da colonização. Alimentando-os profusamente, o estigma do analfabetismo, que nos impele a ler, na letra impressa, a letra da lei, mesmo quando esta é violentada em praça pública.

4.

Não é preciso tal recuo no tempo para contemplar a supremacia do verossímil: basta olhar com atenção para os últimos desdobramentos políticos nacionais, que mesclam profusamente a produção de notícias falsas, a edição desavergonhada de vídeos e resoluções jurídicas calcadas antes na convicção do que em incontestáveis evidências. Curiosamente, a parte interessada em catapultar o verossímil é também a que mais fala em “capitalização da narrativa” feita pelo lado oposto, perniciosamente projetando no inimigo, que ousa optar pela narrativa em lugar da verdade, o que ela mesma faz de forma quase desabrida.

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A obsessão pelo engano, corporificada nas fake news, palavra do ano, dá as cartas de um jogo perigoso: engana-se a todos para não ser mais enganado. E eles não leem ficção.

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“O primeiro sintoma da corrupção dos costumes está no desamor à verdade”. E eles não leem Montaigne.

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“As pessoas já não acreditam nos fatos”. E eles não leem Chomsky.

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Diz a epígrafe de um dos mais potentes estudos sobre a inércia ocular: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. E eles não leem Saramago.

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“Mire e veja”: leitmotif não de um romance, mas da construção parcimoniosa de uma obra que, a cada passo, precisa readequar sua mirada, reconhecendo as distâncias para, quem sabe, travessá-las. E eles não leem Rosa.

5.

Na década de 1940, o crítico inglês I. A. Richards distribuíra a um grupo misto de 60 leitores 13 poemas de autores ingleses de qualidade diversa, apagando-lhes os nomes e recolhendo as impressões dos leitores. Conclusão: poetas de almanaque facilmente sobrepujaram os de ofício. Despidos de assinatura visível, os poemas flutuam, sem a âncora do cânon. Mais alarmante, lembra-nos Otto Maria Carpeaux ao relatar o caso, além da confusão entre expressão e intenção, era a stock response (possível tradução inglesa de trompe l’oeil) à própria poesia: eles não leem poesia, e aceitam um mundo lido por outrem. A poesia não pode ser manual de valores afirmativos, mas inquisição permanente, deslocando o verbo e a vida. Todos alegam ter opinião (em verdade vos digo: imagens do grupo de família do WhatsApp), mas poucos conseguem ter, de fato, voz pessoal. A poesia fala da construção dessa voz, de seu esforço muitas vezes baldado, mas persistente. Fala, acima de tudo, de um fazer. O poeta, nos lembra Borges, é um fazedor.

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Recuperando uma importante imagem fakebookiana das últimas semanas: o que fazer diante disso? Poesia. Eles odeiam poesia. Mesmo fora do verso.

Sugestões de leitura

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2016.
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Vários tradutores. São Paulo: Perspectiva, 2009.
BAPTISTA, Abel Barros. O paradigma do pé atrás. Santa Barbara Portuguese Studies, v.1, 1994, p. 145-177.
Bíblia: Novo Testamento – Os quatro evangelhos. Traduzido do grego por Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
BORGES, Jorge Luis. El hacedor. Buenos Aires: Emecé Editores, 2005.
CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
CARPEAUX, Otto Maria. Poesia e ideologia. In: Ensaios reunidos – Volume I (1942-1978). Rio de Janeiro: Topbooks; UniverCidade, 1999.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Tradução e notas de Sérgio Milliet. Revisão técnica e notas adicionais de Edson Querubini. Apresentação de André Scoralick. São Paulo: Editora 34, 2016.
AHRENS, Jan Martínez. “Noam Chomsky: As pessoas já não acreditam nos fatos”. El País. Brasil, 12 de março de 2018.
ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
SANTIAGO, Silviano. Retórica da verossimilhança. In: Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.



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