Engagement, de Theodor W. Adorno*

Por Irina Migliari


Theodor W. Adorno, autorretrato, 1963. Foto: Stefan Moses.

No final de 1945, com o encerramento da Segunda Guerra Mundial, a forma de pensar as artes, portanto, a literatura, mudou. Mais precisamente, a literatura pós-Auschwitz passa a ser pensada de outra maneira. Essas ideias começam a ser articuladas desde o século XVIII com os pensadores da Escola de Frankfurt que iniciam esse “movimento” questionando como pensar a poesia lírica em tempos catastróficos¹ e de barbárie. Influenciados pela teoria da poesia de Hegel (1770-1831), segundo a qual a lírica constitui-se como expressão subjetiva e individual, os pensadores do idealismo alemão foram responsáveis por articular um novo pensamento das teorias utilizadas para os estudos da arte, em especial, a Teoria da Literatura.

Com a ascensão dos regimes autoritários no século XX, tais como o nazismo de Hitler, responsável por políticas de extermínio que resultaram em Auschwitz, dentre outras formas de disseminação de ideologias opressoras, há um impacto no pensamento ocidental que motiva essa revisão da filosofia e da literatura. Nesse sentido, a resistência por meio da arte torna-se fundamental, e, no caso da lírica, essa resistência aparece na forma de “impulso que inspira a literatura engajada” (ADORNO, 1992).

Partindo de uma perspectiva histórica e social, Theodor W. Adorno (1903-1969) elabora uma reflexão sobre a poesia lírica, fazendo críticas ao avanço do capitalismo industrial, à produção cultural, ao autoritarismo fascista e à desumanização. Uma vez que, na visão do pensador alemão, em uma sociedade marcada por conflitos, a lírica é afetada pela opressão, a proposta é que ela tenha impacto político e funcione como “protesto contra uma situação social que todo indivíduo experimenta como hostil, alienada, fria, opressiva […] e como reação à coisificação do mundo” (ADORNO, 2003), ou seja, uma literatura engajada.

Refletindo e utilizando como referência o texto Que é a literatura? (1948), de Jean-Paul Sartre (1905-1980), Adorno publica, em 1962, seu ensaio “Engagement” – cabe ressaltar aqui o contexto pós-Guerra em que o texto de Sartre foi escrito –, em que debate a função social da arte e sua degradação, na visão do autor, a bens culturais de consumo. Retomando seu próprio texto, “Crítica cultural e sociedade”, publicado em Prismas (1951) e escrito 13 anos antes da publicação de “Engagement”, Adorno questiona a poesia lírica pós-Auschwitz e condena a arte e a cultura do pós-Guerra: “eu não tenho a intenção de suavizar o ditado de que escrever poesia lírica depois de Auschwitz é bárbaro” (ADORNO, 1992).

A proposta de Adorno é paradoxal: apenas na arte o sofrimento (referindo-se aos horrores da Guerra) pode encontrar voz e consolo sem ser traído por ela. O autor destaca, entretanto, que, ao narrar o sofrimento e transformá-lo em discurso, o traímos, o estilizamos e o vulgarizamos, o que é minimizado pela ação da própria arte; daí sua relação paradoxal. Nas palavras do pensador:

“Sua própria situação é de paradoxo […] No entanto, o sofrimento, o qual Hegel chamou de consciência da adversidade, também exige a existência continuada da arte enquanto ela a proíbe; é praticamente só na arte que o sofrimento ainda pode encontrar sua própria voz, consolo, sem ser imediatamente traído por ela. […] É na maneira pela qual, transformando o sofrimento em imagens, apesar de toda a sua implacabilidade difícil, que nossa vergonha é ferida diante das vítimas. […] O princípio estético da estilização e, até mesmo a oração solene do coro, faz com que um destino impensável pareça ter algum significado; é transfigurado, algo do seu horror é removido. Isso por si só comete uma injustiça para com as vítimas; no entanto, nenhuma arte que tenha tentado evitar esse acontecimento, poderia ficar em pé diante da justiça” (ADORNO, 1992).

Contrariando umas das mais influentes concepções da estética francesa, “a arte pela arte”, Adorno medita na ideia de uma arte que não tenha como finalidade ser apenas puro prazer ou puro compromisso. Ao passo que, para Sartre, o engajamento está relacionado ao pessoal ou interior do indivíduo e não à intenção de suas ações (portanto, na escrita), Adorno enfatiza questões sobre crítica cultural, em que toda e qualquer atividade crítica parte de dentro de um sistema cultural em que o indivíduo está inserido e, portanto, irá incorporá-lo de alguma maneira na sua criação artística (de tal forma que estará, também, autocriticando-se).

Impressionado com os extremos de violência da Guerra e refletindo sobre a lírica pós-Auschwitz, o debate de Adorno sobre a arte engajada e sobre a arte autônoma, a nosso ver, propõe uma relação dicotômica, uma vez que 

“cada uma das duas alternativas nega, ao negar a outra, também a si própria: a arte engajada porque, como arte necessariamente distinta da realidade abole essa distinção; a da arte pela arte porque, pela sua absolutização, nega também aquele relacionamento irrecorrível para com a realidade, que no processo dinâmico de sua independentização do real, entende-se como seu a priori polêmico. Entre os dois polos dilui-se a tensão de que a arte tem vivido até as mais novas eras” (ADORNO, 1992).

Nesse sentido, o autor considera que uma arte puramente autônoma é uma má arte, e o excesso de ideologismo (ou a arte panfletária) trai a causa: a literatura que “existe para o ser humano, como a literatura engajada, mas também como o tipo de literatura que a moral filistina quer, trai o ser humano traindo o que poderia ajudá-lo somente se ele não agisse como se estivesse fazendo isso” (ADORNO, 1992). Em contrapartida, a concepção de “a arte pela arte” nega sua relação com a realidade e peca pela ausência de uma política verdadeira.

Outra complexidade com relação às artes engajadas consta ainda no ensaio “Engagement”, em que Adorno apresenta a temática do fetichismo aludindo o avanço do capitalismo industrial vinculado à degradação das artes a bens de consumo, pois as tornam os “trabalhos uma distração da batalha dos interesses reais” (ADORNO, 1992). O autor aprofunda essa temática em uma palestra proferida na Academia Berlinense de Artes, em 1966, ao refletir sobre a regressão das obras de artes ao “fetichismo por meio de seu progresso intransigente”, de maneira que se tornam um “autopropósito cego” e “algo não verdadeiro, como uma loucura coletiva, tão logo o seu teor de verdade objetivo começa a oscilar” (ADORNO, 2017).

De que maneira podemos, então, fazer poesia (ou qualquer outra arte) sem explicitar e sem pecar pela ausência de uma crítica político-social ou ceder ao fetichismo? De acordo com o próprio autor, “um poema lírico perfeito tem de possuir totalidade ou universalidade, tem de oferecer, em sua limitação, o todo” (ADORNO, 2003); esse processo não só atinge o “ideal” proposto pelo pensador alemão, mas nega também a reificação da cultura e o fetichismo pela arte como mercadoria cultural.

A arte deve apresentar possibilidades de resistência e não forçar uma alternativa: “fazer arte não é uma questão de apontar alternativas, mas de resistir, unicamente pela forma artística, ao curso do mundo, que continua a segurar uma pistola na cabeça dos seres humanos” (ADORNO, 1992). A grandeza das obras de arte existe ao “deixarem falar aquilo que a ideologia esconde. Seu próprio êxito, quer elas queiram ou não, passa além da falsa consciência” (ADORNO, 2003).²

Adorno destaca o escritor tcheco Franz Kafka ao falar de seu ideal artístico. Mesmo que suas obras não sejam consideradas engajadas, elas surtem efeitos maiores com relação às mudanças de atitude do que as que são declaradamente engajadas. No caso da literatura brasileira, podemos apontar Cecília Meireles que, em o Romanceiro da Inconfidência (1953), conta, por meio da poesia, a História de Minas Gerais desde o início da colonização até a Inconfidência Mineira; denuncia a escravidão por meio de metáforas, como no poema “Eles eram muitos cavalos”.

Notas

* Todas as traduções de citações de obras em língua estrangeira são nossas.
¹ Cf. Hobsbawn, E. A era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
² Para Adorno (2003), a ideologia é uma “inverdade, falsa consciência, mentira”.

REFERÊNCIAS

ADORNO, T. W. “Commitment”. In: ADORNO, T. W. Notes to literature III. Tradução S. W. Nicholson. Nova Iorque: Columbia University Press, 1992.
ADORNO, T. W. “Lírica e sociedade”. In: ADORNO, T. W. Notas de literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003.
ADORNO, T. W. A arte e as artes e primeira introdução à Teoria Estética. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2017.


Comentários

Anônimo disse…
Pertinente e verdadeiro. Muito bom!

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