Utz, de Bruce Chatwin


Por Pedro Fernandes



Utz é um romance que se insere na rica tradição de estudo da personagem. Um pesquisador interessado pelo Renascimento do Norte visita a Tchecoslováquia em 1967 com a incumbência de escrever um artigo sobre a paixão do imperador Rodolfo II por colecionar objetos exóticos. O trabalho resulta num fracasso. E este se distingue, por sua vez, como o que se narra no romance. Mas, o leitor sossegue que não estará outra vez diante do escritor em crise, tampouco da narrativa que se deixa mostrar em sua intimidade.

O outro caminho encontrado por esse pesquisador é ainda mais interessante porque parece servir ao seu interesse original: a personagem encontrada permite-lhe o relato sobre um colecionador compulsivo e por ele uma rica viagem pelo imaginário da Europa Central, sobretudo por entre a tradição da porcelana sem, contudo, deixar de evidenciar os imperativos das sucessivas tentativas de poder que cercearam essa parte do velho continente. Quer dizer, o romance de Bruce Chatwin se apropria de diversas alternativas da arte de narrar: a história, a imaginação fabular e a observação sobre a cultura.

São três tempos que constituem a narrativa de Utz, materiais que não obedecem uma ordem cronológica embora esse princípio possa ser perfeitamente recuperado: o encontro do narrador com sua figura reportada depois de não conseguir realizar sua investigação e substituir a estadia de trabalho em Praga por um período de descanso; a reconstrução da biografia de Kaspar Utz a partir do seu convívio de exatamente nove horas com ele e parte desse tempo com a empregada Marta; e uma tentativa, três décadas depois, na ruptura territorial que resulta no nascimento da República Tcheca, de descobrir sobre o destino dessa personagem não-notável mas não irrisória. A maneira como tudo isso é articulado pelo escritor que, por vezes nos induz à leitura de uma longa e interessante reportagem de curiosidades é ardilosa e, possivelmente, a grande marca desse romance do escritor inglês.

Recuperando a ideia segundo a qual este é um romance de personagem, vale chamar atenção, dentre as relações ricamente modeladas para a construção da narrativa, para o seu valor fabular. Assim, o que logo chama atenção é a ruptura com o motivo de nomear as obras que designam a vida de uma personagem; Chatwin elege o sobrenome e não o primeiro nome ou o nome completo do retratado. Utz, entretanto, está longe de designar uma estirpe da alta sociedade: “Os Utz de Krondorf tinham sido uma família de pequenos proprietários de terra saxões com fazendas nos Sudetos, bastante prósperos para manter uma casa na cidade de Dresden, pouco importantes para figurar no Almanach de Gotha”. Não bastasse a pequena relevância do ajuntamento familiar, o sobrenome encerra uma variedade de conotações negativas, como demonstra o narrador: “bêbado”, “imbecil”, “trapaceiro”, “negociante de pangarés”, “no dialeto da Baixa Suábia, equivale a ‘qualquer um’.” A escolha está assim justificada: esta não é uma história sobre uma alta figura, aquela que o seu narrador buscava no início de sua visita à Praga de 1967 e muitas vezes de melhor interesse para um historiador. Kaspar Utz integra a extensa lista do que tenho chamado na literatura romanesca contemporânea de homem trivial. A natureza fabular que constitui o espírito dessa persona leva a constituir o estamento de uma metáfora, um símbolo ou uma alegoria.

E, o que figura Kaspar Utz? Quando o narrador o conhece, ele é o proprietário de uma coleção de mais de mil peças de porcelanas de Meissen. O cultivo desse raro hobby transformado numa obsessão e, por que não, num modo de vida, se apresenta ainda na infância; é em Ceské Krizové, cidade onde se situa parte importante das raízes familiares de Kaspar, que essa coleção começa a se formar; desde quando se admira com a estatueta de um Arlequim que mais tarde será presenteada pela avó numa tentativa de preencher o vazio do neto com a morte do pai. O detalhe é importante porque, numa leitura psicanalítica sobre a atitude acumulativa da personagem logo se determina que a tarefa de colecionar é um suplemento que visa substituir uma carência do sujeito: Kaspar é um homem de pouco afeto, incapaz de dá-lo e mais ainda de recebê-lo.

Ao observar essa característica da personagem não deixaremos de encontrar o instante em que sua existência se confunde com os objetos de sua obsessão. Isso faz dele um homem à parte no mundo, uma criatura quase imperceptível – o que não quer dizer ser alguém profundamente interessado em romper com essa condição, algo só possível de se manifestar pelos meandros da ficção, quando, no retorno ao lugar dessa figura, o narrador constitui uma variedade de extensões a partir daquilo que o Sr. Orlík, o único amigo íntimo de Kaspar, comenta sobre a possível agitada vida sexual da personagem. Mas, se  for possível determinar uma verdade sobre a figura principal desse romance de Chatwin, é que Kaspar é um “homenzinho comum” – como bem designa o narrador de Utz – e, centrado em si mesmo, todo o universo que o determina expande-se no seu interior e nesse pequeno mundo fabricado de criaturas de porcelana.



Não é à toa que Kaspar não tem esse universo como um amontoado de coisas, mas uma grande arena onde se vivificam todos os conflitos possíveis – aqueles determinados pela ficção da qual procedem tais criaturas mais os que ele próprio atribui ou transmuta considerando sua própria existência. Há uma concepção intuitiva desenvolvida por essa personagem que é interessante de recuperar aqui a fim de justificar essa leitura: para ele, os museus são o que há pior para a cultura. Os museus funcionam como cemitérios. Todo o sopro de vida só atribuído pelo homem – único capaz de tornar à vida as coisas ainda que estas sejam as testemunhas fatais sobre sua degenerescência – se perde no olhar desinteressado e en passant do transeunte. Se por um lado essa compreensão funciona como uma justificativa que visa destacar todo o individualismo dessa criatura, por outro, ela se justifica na própria retórica da aura: o que transforma o objeto não propriamente em coisa só se materializa no que poderíamos designar, pela ausência de um termo melhor, como idolatria, esta exercida continuamente por seleto grupo capaz de perceber o objeto para além de sua dimensão enquanto coisa, algo, por exemplo, impossível de ser captado pelo narrador que, apesar de ouvir com interesse todas as histórias de Kaspar e admirar todo o complexo de peças acumuladas, tem por elas apenas uma variedade de elucubrações que designam apenas uma psicopatologia de um homem.

Toda essa leitura de Kaspar Utz sobre os objetos nas coleções particulares encontra eco na longa tradição judaica. Assim, a variedade de conteúdos que constitui parte da conversa entre essa personagem e o narrador repousa no imaginário do golem. No folclore judaico esses são seres construídos pelos homens; sua existência e mesmo natureza reproduzem em mimese o mito da criação divina das criaturas humanas e estão, à sua maneira, em relação de submissão às vontades de seu criador. Feitos de material inanimado e trazido à vida pela força da alquimia, esses seres não apenas reproduzem nossa própria condição ante os deuses, como são tentativas frustradas de hominização das coisas. (A história do golem do rabino Judá Lowe ben Betzael, um homúnculo feito seu criado, Yossel, e depois transformado em figura violenta, leva Utz a visitar várias versões do tema, incluindo um texto medieval descoberto por Gershom Schalem que relata a narrativa de um Jesus Cristo envolvido no passatempo de construir pássaros de argila, os quais, tão logo ele pronuncia a fórmula sagrada, são alçados à vida e cantam, batem asas, voam – um episódio que foi reproduzido tal e qual pelo narrador de O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago).

O golem reafirma ainda que ser à imagem e semelhança do criador não faz do homem a criação perfeita e sim deformada de Deus; ou ainda, se quisermos insistir no radical centralismo da razão, o divino é igualmente criatura constituída dos defeitos que moldou a natureza da sua criação. Mas, é pela carência de ser o criador, ou mesmo a impossibilidade de compreender o acaso de sua existência, visto que esta não é uma escolha, que leva a criação à revolta e a tentativa de usurpar o lugar divino. Em Utz, essa condição divina de estabelecimento de um mundo à parte, é a de estabelecimento do seu próprio mundo; e, embora imóveis, suas criaturas não deixarão de, indiretamente, se rebelarem: é o olho vigilante do Estado sob o patrimônio simbólico que transforma a vida alheia e sossegada de Kaspar num contínuo martírio. Qual o fim disso? Só indo ao romance para saber. Mas, a saída proposta pela narrativa reitera esse embate eterno entre criador e criação.

O golem, entretanto, não é uma tergiversação da narrativa. No hebraico moderno esse termo designa “imbecil”, “estúpido”, “tolo”, quer dizer, as mesmas características derivadas do sobrenome Utz. Logo, essa relação nos leva a compreender a personagem como golem. Propositalmente, o narrador de Utz, utiliza uma variedade de maneiras na designação de sua personagem, como se à maneira de alquimista, moldasse sua criação: é o homem meticuloso, capaz de pensar numa alternativa que o coloca à esquiva dos complexos rumos da história, sempre no intuito de preservar seu mundo de seres inanimados, e capaz de executar com precisão sua própria existência; é o homem profundamente dotado de uma condição intelectual substantivamente particular sobre esse universo da porcelana de Meissen; é o homem carente, metido consigo mesmo, mas interessado na descoberta de um amor puro e carnal sempre inviabilizado pela sua parca condição física e, como dissemos, sua fatal ignorância para os afetos; é, contraditoriamente, o homem que descobriu outras maneiras de satisfazer as mulheres e, tornado um espécime de Don Juan; ou é o homem individualista, mesquinho, antissocial, só capaz de se relacionar com gente da mesma posição qual Marta, sua empregada, ou Orlík, seu amigo, colecionador de moscas domésticas e paleontólogo por conta própria. Tudo isso, se sintetiza pela indefinição da imagem de Kaspar aos olhos do narrador; este guarda profundas dúvidas se era este um homem de bigodes ou sem bigodes.

Utz constitui, portanto, num complexo de relações formais cuja diretriz que o determina é a figura do símile: as figuras de porcelana simulam criaturas de ficção que por sua vez se articulam entre uma existência factual e imaginativa. Animadas por Kaspar, as porcelanas são seus golens. No teatro ficcional, quem melhor designa esse estatuto do golem é, obviamente, Marta. A empregada está à serviço do seu senhor incondicionalmente, anima-se à sua presença e aceita todas as imposições para se manter exclusivamente a figura para quem Kaspar delega o resto da idolatria exercida para com seus objetos. Esse mundo encerra uma unidade tão bem estruturada que o fim de seu elemento principal, o próprio Kaspar, é desaparecimento de tudo. Por fim, não deixamos de reparar na personagem principal do romance como o golem do narrador de Bruce Chatwin; figura de tinta e papel, ela se modela à maneira de seu criador e este, propositalmente, não institui uma única face capaz de designá-lo – logo, constitui-se enquanto substância incompleta, informe, continuamente refeita pelo encontro da obra com o leitor. Kaspar – porcelanas de Meissen – Marta narrador – personagem → personagem – autor / leitor.

Temos aqui uma perfeita compreensão da execução entre forma e conteúdo, a síntese sempre funcional para a unidade do objeto artístico. Todo esse universo engendrado por Bruce Chatwin perfaz o princípio original das narrativas míticas que designam nossa origem, algo performado, pelo romance. Kaspar Utz designa o homem mundano com suas obsessões particulares, com suas carências de afetos muitas vezes nunca integralmente reveladas para si. Sendo significação do homem comum e não a figura elevada pelos suspensórios da história como poderia ser o Rodolfo II da narrativa original do narrador de Chatwin, personagens como as de Utz designam este simples, mas não simplório, exercício de existir – tarefa maior de toda a literatura. Ao se lançar no infindável trabalho de colecionar (uma peça leva a outra indefinidamente), Kaspar se coloca ante o maior dos mistérios: a eternidade. Essa busca sempre encontra como resposta uma direção: o mundo se faz pelo sentido que atribuímos às coisas que o habitam, por sua vez, esse testamento revela nossa condição de existir não-perene uma vez que as coisas embora pereçam sempre guardam uma existência para além dos seus criadores – é sua maneira silenciosa de se vingar contra os criadores. Como os golens, nunca manifestações harmônicas com quem os criam. Como nós, sempre em divergência com os deuses. E isso tudo performa a mobilidade do mistério de existir.

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