“Matita Perê” entre o épico e o lírico

Por Felipe de Moraes

Matita Perê1

No jardim das rosas
de sonho e medo
pelos canteiros de espinho e flores
lá quero ver Você
olerê olará, Você me pegar                                                                                                                                                                                                                                         
Madrugada fria de estranho sonho
acordou João, cachorro latia
João abriu a porta
o sonho existia

Que João fugisse
que João partisse
que João sumisse do mundo
de nem Deus achar, lerê

Manhã noiteira de força viagem
leva em dianteira um dia de vantagem                                                                        
folha de palmeira apaga a passagem
o chão, na palma da mão, o chão, o chão

Manhã redonda de pedras altas
cruzou fronteira da servidão
olerê quero ver                                                                                                             
olerê

E por maus caminhos de toda sorte
buscando a vida encontrando a morte
pela meia rosa do quadrante norte
João, João                                                                                                                     

Um tal de Chico chamado Antonio
num cavalo baio que era um burro velho
que na barra fria já cruzado o rio
lá vinha Matias, cujo nome é Pedro
aliás Horácio, vulgo Simão                                                                                         
lá um chamado Tião
chamado João

Recebendo aviso entortou caminho
de nor-nordeste pra norte-norte
na meia vida de adiadas mortes                                                                                   
um estranho chamado João

No clarão das águas
no deserto negro
a perder mais nada
corajoso medo                                                                                                             
lá quero ver Você

Por sete caminhos de setenta sortes
setecentas vidas e sete mil mortes
esse um, João, João

E deu dia claro                                                                                                            
e deu noite escura
e deu meia-noite no coração
olerê, quero ver
olerê

Passa sete serras                                                                                                           
passa cana brava
no brejo das almas
tudo terminava
no caminho velho onde a lama trava
lá no todo-fim-é-bom
se acabou João                                                                                                              

No jardim das rosas
de sonho e medo
no clarão das águas
no deserto negro                                                                                                          
lá, quero ver Você
lerê, lará,
Você me pegar.

Tom Jobim, Jardim Botânico, Rio de Janeiro, s/d. Foto: Ana Lontra Jobim. Arquivo Instituto Tom Jobim


1. No rastro da anta

Quero minha casa feita
Com régua prumo e esmero
Quero tudo bem traçado
Quero tudo como eu quero

Tom Jobim, “Poema do Chapadão”


A comunhão entre poesia e música (se quisermos, entre letra e melodia) é algo que está presente nas culturas populares desde a Grécia arcaica do século sétimo antes de Cristo (na poesia mélica, por exemplo)2, passando pelo Romantismo e encontrando em Wagner o celebrador ideal dessas bodas (em Tristão e Isolda, seu “drama musical”)3, e desaguando em compositores do século passado, como Vinícius de Moraes e Tom Jobim (no Orfeu da Conceição [1956]), que souberam, no âmbito nacional, através da maestria linguística e poética, realizar um diálogo com essa tradição tão remota. Tal união só pode resultar de um equilíbrio muito profundo que se busca entre texto e música, na medida em que a poesia reflita aspectos da melodia e vice-e-versa, num espelhamento harmonioso.

A composição “Matita Perê”, de Tom Jobim, é uma das manifestações mais bem executadas da união entre o literário, o poético e o melódico, na medida em que seu compositor conseguiu trazer para o interior de seu élan criativo todo um conjunto de influências de prosadores e poetas, encorpando o caráter literário de suas canções – feita em parceria com o poeta e compositor, Paulo César Pinheiro, “Matita Perê” é a terceira faixa do disco homônimo, lançado por Tom em 1973. O nosso intuito neste curto ensaio, portanto, será o de realizar uma interpretação da letra, aliada a pequenos apontamentos sobre a melodia: isso porque uma composição como a de “Matita Perê”, no seu hermetismo ao gosto roseano, apresenta um jogo formal complexo que tentaremos expor através de uma leitura cerrada dos aspectos épicos, já apontados pela crítica, e também dos aspectos introspectivos, subjetivos e oníricos que, ao que parece, o texto carrega como reflexo dos desdobramentos das vozes em primeira e terceiras pessoas.

Passemos, pois, aos comentários acerca da forma do poema4 (assim chamaremos a letra a partir de agora), percorrendo-o nos pormenores, atentando para como a métrica e as divisões estróficas contribuem para a construção de uma atmosfera de morte, medo e perseguição de “um estranho chamado João”.

*
A história que “Matita Perê” conta é obscura, cheia de meandros, mas pode ser entendida como a fuga de um homem, “um João”, que percorrendo paisagens inóspitas, sempre propicias às emboscadas, e com mais de “sete mil mortes” nas costas, é perseguido por um “Você”, nunca nomeado, mas que sempre reinicia o giro dos caminhos, numa disputa entre caçador e presa. O poema tem sua força ancorada no sopro épico que produz através dos compassos lentos e acelerados, das entradas bruscas dos instrumentos e nos silêncios dos intervalos entre suas partes, nas metáforas que mesclam realidade e sonho, calmaria e perseguição. Ou seja, na tentativa de mimetizar um espírito atormentado e culpado, Tom Jobim adensou sonoramente os momentos de clímax da jornada do perseguido, numa artificiosa construção sonora que mescla a subjetividade íntima de João com o mundo infinito do sertão que o cerca.

Tendo em vista essa intenção épica, a construção da divisão melódica de “Matita Perê” se deu em quatro partes: a parte A, que vai da primeira à quinta estrofes e que podemos chamar de o “despertar para a morte”, em que um “estremecimento das cordas”5 marca o início das peripécias da personagem de João e de sua carreira desenfreada pela paisagem agressiva. Esse despertar é expresso pela textura dos 12 violinos, 5 violoncelos e 2 contrabaixos6, que nas explosões criam um contraponto ao ritmo lânguido, triste e monótono do violão, produzindo desse jorrar sinfônico círculos infinitos de tempo, lançando a personagem no seu tortuoso caminho solitário de condenado à morte certa.

Por sua vez, a parte B tem início na sexta e término na sétima estrofe, logo após um interlúdio instrumental longo, onde pela primeira vez podemos ouvir o pio do matitaperê7, pássaro que a cada bloco melódico emitirá seu canto singular marcando o destino de João, tragado pela fatalidade – a esse segundo momento podemos nomear de “a fuga”. A parte C é uma extensão dessa parte anterior, no sentido em que a fuga de João é levada aos momentos de maior tensão narrativa, em que a vertigem do momento de perseguição chega ao máximo, através dos recursos percussivos (que mimetizam o galope acelerado de um cavalo) e das flautas – a essa terceira parte chamemos de “embate”.

Por fim, tem início a parte D, após um segundo interlúdio instrumental menor, que se liga de modo cíclico, através dos acordes do violão, ao começo da melodia, encerrando a jornada mortal de João do mesmo modo que começou – “No jardim das rosas/ de sonho e medo/ no clarão das águas/ no deserto negro/ lá, quero ver Você/ lerê, lará/ Você me pegar” –, com os mesmos acordes do violão que desencadeia um arroubo final das cordas – parte a qual podemos intitular de “sono da morte”.

Ao retratarem uma vida sertaneja, Paulo César Pinheiro e Tom Jobim tiveram em mente a densidade humana que uma letra precisava abarcar, sem que as quatro partes melódicas se sobrepusessem à história do fugitivo, mas antes a reforçassem, expondo de modo muito seco e direto como a vida do homem sertanejo vai de encontro com tudo aquilo que o cosmopolitismo matou, na sua ânsia de progresso e de formação do indivíduo moderno. No sertão “as coisas são e não são”, as relações seguem uma lei antiga e brutal, cercada por uma natureza ao mesmo tempo benfazeja e hostil – “Manhã redonda de pedras altas/ cruzou fronteira da servidão [...]”. Essa via percorrida por João – “despertar para a morte”, “a fuga”, “embate” e “sono da morte” – vai do nascimento à dissolução completa, cruzando as serras, os matos, buscando a sobrevivência – “Manhã noiteira de força viagem/ leva em dianteira um dia de vantagem/ folha de palmeira apaga a passagem/ o chão, na palma da mão, o chão, o chão” –, num torvelinho incessante de medo e angústia.

A intertextualidade, portanto, só reforça o caráter mítico desse “poema mateiro”, já que os ecos do conto de Guimarães Rosa, “O Duelo”, o poema-necrológio de Carlos Drummond de Andrade, “Um estranho chamado João”, e o romance de Mário Palmério, Chapadão do Bugre, ganharam um novo relevo na letra de “Matita Perê”.

O causo de Guimarães Rosa serviu como coluna de sustentação para a criação da canção e de seu tom dramático: narrando as vicissitudes de Cassiano Gomes e Turíbio Todo, Rosa eleva a contenda entre dois valentões a uma busca pela honra e pela dignidade, colocando à prova o valor da valentia, e também os desvios morais da covardia e da mentira. Turíbio cometeu um engano ao matar a pessoa errada – mata Levindo Gomes por engano, quando na verdade o alvo era o outro irmão, Cassiano, o verdadeiro amante de sua esposa. A partir dessa falha quase cômico e burlesco, as duas personagens são levadas ao extremo de suas capacidades físicas e psicológicas, num acaso que acaba por se transformar em destino. A virada na narrativa acontece bem no meio da ação, onde a figura da morte, o balseiro, aparece, “gigante, sem desmanchar a atitude de pré-assalto, [...], e parou de brandir a foice” (ROSA, 2009, p.118.), para realizar a travessia das duas personagens e guiá-las ao seu desfecho final, a morte.

“Matita Perê”, desse modo, se apropria dos espíritos das duas personagens de “O Duelo”, e os condensa na figura de um eterno condenado. A letra, na sua extrema condensação e nas suas elipses desconcertantes, aprofunda e universaliza as personagens roseanas num único João, de “corajoso medo”, síntese perfeita de Cassiano Gomes e Turíbio Todo. A moldura que as quatro partes melódicas criam, carrega a dramaticidade da vida da personagem.

Feito esse primeiro, e breve, percurso sobre alguns aspectos melódicos e sobre o relevo épico que apresenta a vida de João, na canção, passemos a observar o que cremos ser uma camada mais funda de significado imagético contido na letra: os aspectos ligados aos sonhos e aos pesadelos que rondam o destino final da personagem e que rompem com a causalidade do gênero épico e instauram um espaço (o sertão) difuso, em que se misturam real e irreal, vida e morte, tempo e eternidade.  

Tom Jobim, Jardim Botânico, Rio de Janeiro, 1992. Foto: Evandro Teixeira. Arquivo Instituto Tom Jobim



2. “O sonho que ninguém acaba de sonhar”

Se a épica está ligada à narração, à transmissão de um acontecimento no tempo e no espaço e à clareza entre seus nexos causais, a lírica está atrelada ao sonho, ao mundo subjetivo dos conceitos em estado puro e às imagens que, na sua natureza poética, traduzem sensações e sentimentos. “Matita Perê” apresenta ambos os gêneros numa mescla engenhosa. De tal modo, se os espíritos épico e mítico impregnam a letra da canção no que ela tem de narrativa, o sonho e os procedimentos oníricos também ocupam profundamente a construção das imagens de seus versos.

A primeira estrofe começa com uma fala em primeira pessoa, a de João, e constrói um espaço que é realista e ao mesmo tempo se impregna com o pathos da personagem, formando uma imagem que opera por deslocamento8:

No jardim das rosas
de sonho e medo
pelos canteiros de espinho e flores
lá quero ver Você
olerê olará, Você me pegar

Tal imagem – a das rosas com as cores do sonho e os odores do medo – traduzem, no mundo da natureza, a angústia e o desamparo do homem perseguido, furando a descrição naturalista da “monotonia vária do sertão”, onde “cada lugar é o mesmo e um diferente lugar” (JOBIM apud CHAVES, 2007, p.144.) A transferência de sensações humanas para os atributos da fauna cria uma certa fissura na narrativa, pondo tudo sob uma lente da introspecção.9 Nesse sentido, essa primeira fala de João tem algo de antecipatório e agourento, evocado pela rosa onírica, potencializado, ainda, como comentamos acima sobre os aspectos melódicos da parte A, pelo ritmo monótono do violão.

Contudo, o leitor do poema (ou o ouvinte da canção) se assusta ao chegar na segunda estrofe, onde há uma mudança brusca de foco: uma voz narrativa entra em cena e nos mostra João em um espaço que só podemos imaginar, num enquadramento cinematográfico, impregnado por uma atmosfera lúgubre e tensa:

Madrugada fria de estranho sonho
acordou João, cachorro latia
João abriu a porta
o sonho existia

A quantidade de vogais posteriores fechadas e semifechadas, /u/ e /ô/, somadas à gravidade das cordas que sublinham a primeira frase da estrofe, sufocam e escurecem as ações do “estranho João”: vemos uma tapera, envolta numa escuridão sem estrelas, cercada de mata densa, com cachorros latindo ao som do vento frio. A porta é aberta, e João sai, ainda embebido de sonolência, entre o sonho e a vigília.

O narrador prossegue seu relato por mais duas estrofes, contando-nos, e mostrando-nos, pela plasticidade das imagens, a fuga de João sob a escuridão da madrugada – “Manhã noiteira de força viagem” –, sempre cuidando para ocultar seus rastros do perseguidor (“Você”).

Contudo, na quinta estrofe o discurso direto de João assalta novamente a narrativa da voz em terceira pessoa, construindo uma nova imagem deslocada:

Manhã redonda de pedras altas
cruzou fronteira da servidão
olerê quero ver
olerê

Nessa nova permuta de adjetivos, a paisagem, antes dotada de uma objetividade pelos olhos do narrador, sofre nova distorção pela subjetividade de João. As imagens de céu (“Manhã”) e terra (“pedras”) se misturam pela inversão de seus atributos tradicionais (“redonda” e “altas”): manhãalta (dia claro, auge do sol); pedrasredondas (formato das pedras de rios e lagoas pelo efeito do lento esculpir das correntes de água). Ou seja, a metáfora dá-nos a ver um mundo invertido, circular, que flui e reflui sob as patas de um cavalo em fuga. A todo esse trabalho de deslocamento imagético vem se somar a vocalização de Tom Jobim que, nessa estrofe, sofre uma forte passionalização10, ou seja, se agudiza, reforçando ainda mais a interioridade da personagem e a afloração de seus sentimentos.

De tal modo, a distorção do mundo dos sonhos parece entranhar cada vez mais a cadeia narrativa, criando imagens externas como reflexo da subjetividade de um pobre diabo sertanejo que foge ao próprio destino. O seu pesadelo e o seu medo passam a compor o modo como a realidade o cerca, formulando uma perseguição sem perseguidor (um você indefinido), um moto contínuo que impele João à fuga eterna de um sonho mau, um sonho de finitude.

Na sexta e sétima estrofes o narrador retorna, recuperando sua autoridade narrativa e descrevendo as agruras de João – “E por maus caminhos de toda sorte/ buscando a vida encontrando a morte”.

Os versos da sétima estrofes mimetizam fortemente a velocidade dos acontecimentos, característico da épica: com metros de fôlego, o decassílabo e o hendecassílabo, e os metros curtos como o hexassílabo e a redondilha menor, toda a estrofe parece emitir o ofego, o imenso cansaço de João:

Um/ tal/ de/ Chi/co/ cha/ma/do/ An/to/nio  (10)
num/ ca/va/lo/ bai/o/ que e/ra um/ bu/rro/ ve/lho  (11)
que/ na/ ba/rra/ fri/a/ já/ cru/za/do o/ ri/o  (11)
lá/ vi/nha/ Ma/ti/as/, cu/jo/ no/me é/ Pe/dro  (11)
a/li/ás/ Ho/rá/ci/o/, vul/go/ Si/mão (10)                                                                                           
lá um/ cha/ma/do/ Ti/ão/  (6)
cha/ma/do/ Jo/ão/  (5)

Além de misturar metros tão aclamados na poesia de língua portuguesa11, Tom Jobim e Paulo Cézar Pinheiro acentuam os hendecassílabos, na estrofe acima, na 5 e 11 sílabas (e, às vezes, na segunda ou terceira sílabas); tal acentuação, na tradição poética, recebe o nome de Galope, em virtude do seu ritmo evocar o do trote dos cavalos. Ora, a cadência do acento é que mimetiza a velocidade do galope e a troca das montarias de João ao longo da sua fuga.

A narração prossegue, cada vez mais intensa, pelas rotas das chapadas, e a voz de João se cruzará só mais três vezes com a do narrador, antes da morte anunciada desde o começo. Mas antes de comentarmos a última estrofe, vamos transcrever a nona e a décima primeira, e tecer alguns comentários sobre suas imagens, que voltarão a aparecer na fala final de João:

No clarão das águas
no deserto negro
a perder mais nada
corajoso medo
quero ver Você

            [...]

E deu dia claro
e deu noite escura
e deu meia-noite no coração
olerê, quero ver
olerê


O primeiro quinteto apresenta duas imagens que se contrapõem: ‘‘clarão das águas e “deserto negro” de modo a formar um quiasmo (estrutura em “x”):
Do mesmo modo, o segundo quinteto repete o mesmo padrão de imagem cromática (luz/sombra):
João, na sua extrema agonia de fugitivo e condenado, se vê no caminho em que “a lama trava”, num sorvedouro que o arrasta para uma região de absolutos contrastes, fruto de seu delírio de mortal – “e deu meia-noite no coração” – e da paisagem inebriante que o consome, que o testa até os últimos limites.

Esse intenso jogo de luz e sombra nos conduz, finalmente, para a última estrofe, que condensa os oximoros das duas partes anteriores numa síntese de contrários:

No jardim das rosas
de sonho e medo
no clarão das águas
no deserto negro
lá, quero ver Você
lerê, lará,
Você me pegar.

Nesse momento, as falas multiplicadas de João, ao longo do poema, se juntam num único ponto, saturado de melancolia, condenado a ser perseguido e a morrer na esterilidade e no escuro, em um delírio interminável. Como representação desse tempo suspenso e cíclico, o violão, que não cessou durante toda a canção, refaz os acordes iniciais que dão ensejo para a explosão das cordas, com a qual o poema tem início:

No jardim das rosas
de sonho e medo
pelos canteiros de espinho e flores
lá quero ver Você
olerê olará, Você me pegar

*
Uma composição como a de “Matita Perê”, na sua densidade literária e musical, suscita interpretações e leituras das mais variadas. O seu intertexto com grandes nomes da literatura é indício da autonomia estética visada pelos compositores: a letra existe enquanto objeto poético que singulariza a vida de um sertanejo criminoso construindo a densidade épica de sua jornada, ao mesmo tempo que reveste o seu mundo com o sonho e com as imagens poéticas. Nesse sentido, Guimarães Rosa e Mário Palmério foram o estofo para a parte narrativa da canção, fornecendo um substrato profundo do mundo do sertão, nas suas contradições entre ordem e desordem, entre vida e morte, esperança e descrença. A canção se sustenta, portanto, pela história que tem a contar e pelo fio de vida que o rosário dos acontecimentos enfia; contudo, vê-la só sob esse ângulo apaga a carga de mistério e de sonho que compõem a interioridade de João – frutos do terceiro intertexto, o poema de Carlos Drummond de Andrade, “Um chamado João”, em que a fabulação rompe o mundo real: “João era fabulista?/ fabuloso/ fábula?/ Sertão místico disparando/ no exílio da linguagem comum?”12.

Celso Loureiro Chaves já havia atentado para o caráter híbrido desta canção quando disse que: “Tantas reverberações literárias só são justificáveis numa música que ultrapasse o formato da canção popular e suas repetições de letra, música e compassos. No álbum Stone Flower esse formato já é rompido, mais do que tudo no tratamento deambulatório de ‘Aquarela do Brasil’ e na estrutura anti-sinfônica de ‘Stone Flower’. Em ‘Matita Perê’, a superposição do tratamento musical da partitura ao tratamento intertextual da letra resulta numa estrutura caracterizada pela fusão indissolúvel de música, letra, arranjo e voz.” (CHAVES, 2007, p.146).  

Esse cuidado, como explica Chaves, com a construção literária das letras de Tom Jobim já era algo que vinha se colocando no núcleo criativo do maestro; reverberações, sem dúvida, de sua enorme paixão por autores como Rosa e Drummond e por sua sensibilidade em fazer dialogar música e literatura.

Por fim, cabe ainda um último comentário a respeito do momento histórico do lançamento do disco.

Supor de “Matita Perê” um alheamento quanto às questões políticas por não expor de modo mais aberto o grande arroxo pelo qual passava o Brasil pós AI-5, é cometer um erro de generalização. Ou seja, quando na canção de Tom Jobim o Brasil arcaico, ainda regido pela violência e pela Lei de Talião, se mostra em toda sua força e contradição, o país em ditadura emerge, como um reflexo escurecido, em todos os seus desníveis humanos e sociais, em toda sua barbárie conservadora, revestida por um verniz de progresso. Portanto e letra de “Matita Perê” tem o poder de “expor o Brasil” real naquilo que “os procedimentos de modernização [...] consideraram irrelevante ou descartaram como improdutivo, supérfluo, inútil” (STARLING, 2010, p.118).

Colocadas todas essas contradições – o épico e o lírico, a violência e a harmonia, a pobreza e a “promessa de felicidade” –, a composição de Tom e de Paulo César Pinheiro apresenta a identidade nacional no que ela tem de mais épica, na figura dos homens valentes sertanejos, mas também na sua crua pobreza e no sofrimento. Aqui ecoam as palavras de Riobaldo:

“Valor de lei! Só assim davam tranquilidade boa à gente. Por que o Governo não cuida?

Ah, eu sei que não é possível. Não me assente o senhor por beócio. Uma coisa é pôr ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil e tantas misérias.... Tanta gente [...]” (ROSA, 2001, p.31.)

Notas

1 A letra aqui transcrita foi retirada do fac-símile de um datiloscrito que se encontra aqui no site do Instituto Tom Jobim. (Primeiro acesso feito em 25.05.2019).  

2 No mundo Grego dos séculos VII e VI era impensável conceber as manifestações cívico-religiosas das poleis sem a presença da música e da poesia irmanadas. Mesmo nos simpósios, encontros mais privados entre grupos de cidadãos, a música e o texto configuravam a forma perfeita de poesia. Daí o nome do gênero poético ser mélico (μελικός), ou seja, poesia em forma de canto, expressa através do μελός (da “música”, “melodia”). (Cf. BUDELMAN, 2010, p.2-12).

3 O crítico alemão Leo Spitzer realiza uma belíssima análise de um trecho dessa peça de Wagner, mostrando como a letra, em uma ópera, no caso de Wagner, de uma enorme construção sonora, pode assumir uma autonomia poética forte, ainda que em necessária ligação com a música: “A escolha pode parecer surpreendente à primeira vista, uma vez que o texto de Wagner dá a impressão de exigir a associação com a música – arte que por definição transcende as palavras. E é verdade que, neste caso, o texto da nossa explication de texte deverá ser arrancado ao contexto que deveria emergir. Contudo como o próprio Wagner sempre incluiu o texto de suas óperas em suas obras completas, dando assim a entender que julgava sua poesia capaz de resistir por mérito próprio, temos boa justificativa para analisá-lo criticamente.” (SPITZER, 2003, p.83).

4 Assim classifica Carlos Drummond de Andrade a letra de Tom e Paulo César Pinheiro, em uma crônica (“Tom e o pássaro”) publicada no Jornal do Brasil, em abril de 1972. Tomo de empréstimo a classificação mais do que certeira do poeta. O fac-símile do texto de Drummond se encontra no site do Instituto Tom Jobim (aqui), e também será colocada em anexo ao final deste ensaio.

5 Expressão de Celso Loureiro Chaves, em seu texto sobre o disco de 1973. (Cf. CHAVES, 2007, p.141-2).

6 Cf. LOPES, Patrícia de Almeida Ferreira. A singular sonoridade de Matita Perê construída por meio da parceria de Tom Jobim e Claus Orgeman. Tese de Doutorado apresentada na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2017, p.117.

7 Encontramos no verbete de Câmara Cascudo a seguinte explicação – “Matintapereira: Mati; mati-taperê; nome de uma pequena coruja que se considera agourenta.” Mais adiante Cascudo fala que o nome, na verdade, designa uma outra espécie de pássaro, “um cuculida, Tapera naevia, Lin., também conhecida como Sem-fim e Saci”. (CASCUDO, Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 10ª edição, 1999, p.567.

8 Os conceitos que empregaremos nessa parte da análise, o de deslocamento e condensação, pertencem à teoria freudiana da A Interpretação dos Sonhos. Freud, muito habilmente, além de verificar que esses procedimentos são realizados no inconsciente, e são responsáveis pela forma e pela estrutura do sonho, também trouxe alguns poemas para suas considerações, mostrando como é característico da criação dos poetas, na elaboração das metáforas e das imagens poéticas, o emprego do deslocamento e da condensação. A parte em que Freud detalha os processos corresponde à seção IV de A Interpretação dos Sonhos, chamada “O trabalho dos sonhos” (FREUD, Sigmund. “O trabalho dos sonhos’’, in. A Interpretação dos Sonhos (1900). Rio de Janeiro: Imago, 2006, p.188-229).

9 Vale notar o engenho da construção de Jobim e Pinheiro: os atributos naturais da rosa, na primeira estrofe, foram deslocados do segundo verso para o terceiro, para caracterizar “canteiros” – “No jardim das rosas de espinho e flores” não provocaria o mesmo estranhamento no leitor como o deslocamento provoca.

10 Cf. diz Luiz Tatit, a “tensividade passional [...] corresponde aos estímulos efetivos e cognitivos desenhados pela melodia e apoiados pela harmonia, acarretando, sobretudo, a valorização de cada um de seus contornos.” (TATIT, 1990, p.43).

11 O verso decassílabo é o metro com o qual Camões compôs todo Os Lusíadas, portanto um verso heroico; já a redondilha menor é muito popular entre os cancioneiros, na composição da poesia de cordel e também está presente em muitos dos nosso poetas do Romantismo, sobretudo Gonçalves Dias. Essa mescla da medida clássica com a medida popular compõe todo o “Matita Perê”.

12 O poema de Drummond foi publicado em novembro de 1967, como poema homenagem e como necrológio pela morte de Guimarães Rosa. O poema insiste na imagem do “estranho João”, mote aproveitado por Tom Jobim em sua canção, reforçando a aura de mistério e de fabulação sonhadora que rondava o autor de Grande Sertão: Veredas.

Bibliografia

ANDRADE, Carlos Drummond. “Tom e o Pássaro”. In. JOBIM, Tom. Instituto Antônio Carlos Jobim, 1972. Disponível aqui. Acessado em: 30.05.2019.
BUDELMAN, Felix. The Cambridge Companion to the Greek Lyric. London: Cambridge University Press, 2010.
CÂMARA, Cascudo. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.
CHAVES, Celso Loureiro. “Matita Perê”. In: NESTROVSKI, Arthur (Org.). Lendo Música – 10 ensaios sobre 10 canções. São Paulo: Publifolha, 2007, p.141-161.
FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. 20 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
JOBIM, Tom. “No jardim das rosas”. In: Instituto Antônio Carlos Jobim, 1973. Disponível aqui. Acessado em: 25.05.2019.
LOPES, Patrícia de Almeida Ferreira. A singular sonoridade de Matita Perê construída por meio da parceria de Tom Jobim e Claus Orgeman. Tese de Doutorado apresentada na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). São Paulo, 2017.
NESTROVSKI, Arthur. “O samba mais bonito do mundo”. In: Teresa – Revista de Literatura Brasileira. São Paulo: 2004, p.130-143.
ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
ROSA, Guimarães. “Sagarana”.  In: Ficção completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009, Tomo 1.
SPITZER, Leo. Três ensaios sobre o êxtase. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
STARLING, Heloisa Maria Murgel. “Tom & Rosa”. In: Revista USP. São Paulo, n.87, set./nov. 2010, p.110-123.
TATIT, Luiz. “Canção, estúdio e tensividade”. In: Revista USP, nº 4. São Paulo, dez./jan.-fev. 1990, p.41-4. Disponível aqui.

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