A carta de Flaubert que inspirou “Memórias de Adriano”

Por Manuel Llorente



 
“Quando os Deuses tinham deixado de existir e o Cristo ainda não viera, houve um momento único na história, entre Cícero a Marco Aurélio, em que o homem ficou sozinho.” Este fragmento da carta que Gustave Flaubert escreveu em 1861 (?) para Edna Roger des Genettes foi o que despertou em Marguerite Yourcenar a ideia que a levou escrever Memórias de Adriano (1951), seu romance mais conhecido. Assim pensou a escritora francesa: “Muito da minha vida passaria na tentativa de definir, depois de retratar, este homem sozinho e, ao mesmo tempo, ligado a tudo”.
 
O autor de Madame Bovary foi um livro aberto. Ao longo das quase 4.500 cartas preservadas, deixou amostras de como progredia, muito lentamente, em seus romances, as decepções, os projetos, as reflexões literárias ou mundanas. Devem ser lidas ao mesmo tempo que seus livros para compreender a complexidade de um escritor solitário, tenaz e desencantado. E durante anos marginalizado, até que em meados do século passado começou a ser celebrado. Mario Vargas Llosa, um fervoroso admirador, escreveu de maneira muito clara: “Madame Bovary inaugura o romance moderno e estabelece as bases para a grande revolução narrativa que anos mais tarde seria protagonizada por um Marcel Proust, um James Joyce, uma Virginia Woolf, um Franz Kafka e um Thomas Mann. Até Flaubert, o romance era considerado um gênero comum.”
 
As cartas de Flaubert, ao contrário das de outros escritores, não são restritas ao papel usual, mas mostram sua cartografia e é o espaço onde o escritor aborda questões relevantes. Verifiquemo-lo na de 16 de janeiro de 1852, dirigido à sua amante Louise Colet, uma das cerca de 350 que se publicam na edição de O fio do colar. Correspondência (trad. livre para a antologia organizada por Antonio Álvarez de la Rosa [Alianza Editorial], El hilo del colar: correspondencia). Diz sobre Madame Bovary: “Em quatro dias escrevi cinco páginas, mas até agora estou me divertindo.” Paixão e trabalho, sempre em busca da palavra certa e insubstituível. Reconhece que A educação sentimental é um fracasso, “sempre será defeituoso, faltam muitas coisas e é um livro sempre fraco por falta (...) O todo teria que ser rearranjado, dois ou três capítulos refeitos e, o mais difícil de tudo, escrever um capítulo que faltava e no qual apareceria (...)”.
 
Nessa mesma carta, pode-se apreciar sua solidão, sua vida provinciana em Rouen: “Aqui, voltei a encontrar a tranquilidade. Faz um tempo horrível, o rio tem curso de oceano e nenhuma alma passa sob minhas janelas”. Um comentário mais leve: “Os afetos que escorrem gota a gota do coração acabam formando estalactites. Isso é melhor do que as grandes torrentes que o carregam. Essa é a verdade e eu me apego a ela.” E outra: “Analise-se bem: você teve algum sentimento que tenha desaparecido? Não, tudo permanece, certo? Tudo. As múmias que temos no coração nunca viram pó e, quando enfiamos a cabeça pela claraboia, vemos eles caídas, imóveis, olhando para nós com os olhos arregalados.” E uma última: “Não dá para ter uma [consagração] mais bela: sentir-se renegado por sua família e por sua terra!”
 
Essa carta continua a dizer de si e também explica o título desta seleção: “Com que paixão esculpi as pérolas do meu colar! Só esqueci uma coisa: o fio”. As descobertas devem ter algo que as alinhave. E para finalizar com essa carta: “O que eu gostaria de fazer é um livro sobre nada (...) quase sem assunto (...) As obras mais bonitas são aquelas que têm menos matéria (...) Acho que o futuro da Arte vai por esses caminhos”. Isso dito em 1852 tem o seu peso.
 
Antonio Álvarez de la Rosa desconstrói o tema, tão difundido, da frase: “Madame Bovary sou eu”. “Flaubert nunca escreveu essa frase, não apenas em sua correspondência, mas nem mesmo em uma das milhares de notas em seus cadernos. Trinta anos após sua morte, René Descharmes, nada menos que um dos primeiros especialistas de sua obra, disse que um amigo de Flaubert lhe contou..., ou seja, um boato transformado em verdade acadêmica”, escreve no livro. “Ele mesmo o explica: ‘Madame Bovary não tem nada de verdadeiro. É uma história totalmente inventada; nela não coloquei nada sobre meus sentimentos ou minha existência.” Mas ele defende sua concepção do romance na mesma linha: “O artista deve estar em sua obra como Deus na criação, invisível e todo-poderoso; ele pode ser sentido em toda parte, mas não visto”. Álvarez de la Rosa reflete assim: “Onisciente, sim, mas sem que nenhum leitor perceba, sem que a personalidade do autor apareça em cena. A impessoalidade é o grande princípio de sua estética”.
 
Vargas Llosa, em seu ensaio A orgia perpétua: Flaubert e Madame Bovary, considera que a correspondência do autor da Normandia “constitui o melhor amigo para uma vocação literária que se inicia (...) as cartas mostram melhor do que qualquer coisa a humanidade de seu gênio, como seu talento foi uma lenta conquista.” E acrescenta que o firme propósito de Flaubert era “trabalhar o estilo, a escolha das palavras, resolver os problemas de nomeação, adjetivação, eufonia, ritmo”.
 
E recorda como a crítica foi “injusta e míope” com ele. Embora a próxima geração o tenha recuperado, ele caiu em desgraça novamente. O eremita de Croisset conseguiu desaparecer com os romancistas do nouveau roman, especialmente Nathalie Sarraute (Flaubert o precursor). Sartre, acrescenta Vargas Llosa, dedicou-lhe “vinte anos de sua vida e três mil páginas” em O idiota da família e considerou ter fundado, junto com Baudelaire, “a sensibilidade moderna”. Em todo caso, o escritor Prêmio Nobel considera que o livro de Sartre é “desigual”, em parte “pura especulação”, mas “um produto frustrado e genial”.
 
O volume O fio do colar está dividido em nove períodos que marcaram a vida do escritor e cada um deles é introduzido por Álvarez de la Rosa, além das notas com comentários (sucintas ou mais extensas) em cada carta que esclarecem o contexto ou os personagens citados. As cartas tratam tanto sobre a sua provação judicial por Madame Bovary (“Tive de comparecer perante o tribunal correcional, acusado de ultraje aos bons costumes e ao culto católico. A Bovary que você ama foi arrastada para o banco dos réus dos vigaristas como a última das mulheres perdidas. É verdade que a absolveram, porque os considerandos da minha sentença são honrosos, mas isso não os impede de me considerarem um autor suspeito, o que representa uma glória medíocre”) como o ímpeto que manteve até ao fim. Em 4 de maio de 1880, quatro dias antes de morrer, se queixa, e de que forma, ao seu apadrinhado Guy de Maupassant: “Se a casa Charpentier não me pagar imediatamente o que me deve, e não me liberar uma boa quantia para o conto de fadas, B. e P. [Bouvard e Pécuchet] irão para outro lugar. Estou exasperado com a importância atribuída às necessidades e o pedantismo da futilidade!
 
Aborda questões que ainda hoje são atuais, como a imigração: “Oito dias atrás fiquei pasmo com alguns ciganos acampados em Rouen. É a terceira vez que vejo um desses acampamentos e sempre com renovado prazer. O admirável é que excitaram o Ódio dos Burgueses, embora sejam inofensivos como cordeiros (...) É o ódio que provoca o Beduíno, o Herege, o Filósofo, o Solitário, o Poeta. Há medo nesse ódio. Isso me provoca, embora eu esteja sempre a favor das minorias.” (Carta a George Sand, 12 de junho de 1867). E alguma opinião polêmica: “A educação gratuita e obrigatória vai acabar com a gente comum. Quando todos puderem ler Le Petit Journal e Le Figaro, não lerão mais nada. E o fato é que o burguês, o rico, não lê nada mais. A Imprensa é uma escola da burrice, porque nos isenta de pensar” (para George Sand, 8 de setembro de 1871).
 
Álvarez de la Rosa comenta sobre o livro: “As cartas mais conhecidas de Flaubert na Espanha são as dirigidas a Louise Colet. Na primeira fase de seu relacionamento são cartas de amor muito bonitas e, na segunda, sua amante se torna na diária caixa de correio para as reflexões e dores do nascimento de Madame Bovary. É talvez a fase mais espontânea de uma correspondência escrita, geralmente por volta de uma ou duas da manhã, depois de ter passado 10 ou 12 horas escrevendo seu primeiro romance. Depois do escândalo e do sucesso de Madame Bovary, Flaubert passou a controlar a espontaneidade das cartas”.
 
Menos conhecidas são as cartas do escritor para George Sand, “que acabaria por ser sua amiga e confessora ideológica”. Foram trocadas cerca de 400 cartas "que revelam o profundo debate entre dois seres que pensam o mundo de forma muito diferente. Como em toda a sua correspondência, nas cartas a Sand ele comenta e critica tudo o que em sua época parecia censurável, esbraveja contra a estupidez humana, mostra seu desacordo com o sistema educacional, com a literatura ou a arte que lhe pareciam medíocres, contra o jornalismo como fonte de banalidades, contra as religiões que paralisam o senso crítico das pessoas, contra a democracia e a igualdade de voto, a farsa da ação política etc.”, acrescenta o professor de literatura francesa da Universidade de La Laguna. “Em suas cartas o vemos a todo momento: impetuoso, aflito, ardente e frio, panfletário e contido.”
 
Colofão. “Tenho quase oito pés e oito polegadas [mais de 1,80], ombros de carregador e a irritabilidade nervosa de uma senhoritinha. Sou solteiro e solitário.”

A carta referida no título e abertura do texto

[...] Um bom assunto para um romance é aquele que vem inteiro, de uma vez só. É uma ideia-mãe da qual todas as outras derivam. Não somos de forma alguma livres para escrever tal ou tal coisa. Você não escolhe o seu assunto. Isso é o que o público e a crítica não entendem. O segredo das obras-primas está aí: na concordância do tema e no temperamento do autor. —
 
Você tem razão: devemos falar com respeito sobre Lucrécio. Eu o vejo como comparável apenas a Byron, e Byron não tem sua gravidade, nem a sinceridade de sua tristeza. A melancolia antiga parece-me mais profunda do que a dos Modernos, que mais ou menos implicam a imortalidade além do buraco negro. Mas para os Antigos, este buraco negro era infinito; seus sonhos tomam forma e passam por um fundo de ébano imutável. — Sem gritos, sem convulsões, apenas a fixidez de um rosto pensativo. Quando os Deuses tinham deixado de existir e o Cristo ainda não viera, houve um momento único na história, entre Cícero a Marco Aurélio, em que o homem ficou sozinho. Não encontro essa grandeza em lugar nenhum; mas o que torna Lucrécio intolerável é seu físico, que ele considera positivo. É porque ele não duvidou o suficiente que é questionável; ele queria explicar, concluir! ... Se tivesse apenas o espírito de Epicuro sem ter o sistema, todas as partes de sua obra teriam sido imortais e radicais. De qualquer forma, nossos poetas modernos são pensadores frágeis ao lado de um homem assim.
[...]


* Este texto é a tradução livre de “La carta inédita de Flaubert que inspiró Memorias de Adriano”, publicado aqui, no jornal El Mundo. A carta de Flaubert a Edna Roger des Genettes pode ser lida no original com outras, incluindo o fac-similar dos textos neste site.

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