Em torno das “Não-coisas”, de Byung-Chul Han

Por Maria Vaz

Ilustração: Peter Oumanski


 
O prólogo inicia-se com menção a Yoko Ogawa e ao seu romance A polícia da memória. Esta alusão não provém do acaso, mas de uma analogia que o autor sul coreano faz com o nosso presente, que descreve como uma época em que as coisas desaparecem incessantemente.
 
Não recorremos a ficções literárias, como aquela que em Harry Potter se encontra num manto de invisibilidade. Falamos da realidade científica e das inovações tecnológicas que nos dão vida digital. Falamos do imediatismo, da nanotecnologia, dos estímulos constantes do incorpóreo e do imaterial.
 
Vivemos a era da informação rápida, não monótona, alimentada pelo estímulo da surpresa e “tornamo-nos cegos perante coisas silenciosas, digamos coisas habituais, sem importância ou costumeiras, desprovidas de estímulos, mas que nos fixam ao ser.”
 
Byung-Chul Han recorre a Hannah Arendt para definir as “coisas do mundo” capazes de “estabilizar a vida humana”, coisas essas que conferem continuidade e imutabilidade.
 
Cada vez mais vivemos o espectral, o digital, o mundo impalpável e sem firmeza e para explicar este facto o autor recorre a Luhmann para afirmar que a cosmologia da informação “não é a cosmologia do ser, mas da contingência”.
 
Assim, é como se a digitalização fosse o que se segue às revoluções industriais: se naquelas havia um verdadeiro fetiche com as coisas, assistimos agora um fetiche pelas não-coisas e pelo fluxo de dados. Os homens passam da sua humanização a meros atores que processam informação.
 
Assim, talvez os automóveis do futuro falem connosco da mesma forma que a Siri ou as colunas da Google e talvez, recorrendo indiretamente a Baudrillard, partilhem conselhos com os seus donos nas suas tomadas de decisões.
 
Se em Heidegger a mão servia para explorar o mundo, que era uma esfera de coisas, hoje isso não se verifica porque vivemos numa “infoesfera” e o “dasein” hedeggeriano torna-se comunicação e troca de informação.
 
Vivemos essa transmutação das coisas para não-coisas com base num telos que tem por missão diminuir a preocupação do homem. Falamos, por exemplo, da inteligência artificial a reduzir os riscos de preocupação com o futuro, as decisões humanas ou o melhoramento da capacidade de previsão de riscos futuros com base em padrões.
 
Passamos dos telemóveis aos smartphones, das habitações às smarthomes, do dasein heideggeriano ao inforg. E se a infoesfera nos aparenta liberdade, a verdade é que também nos expõe como nunca a maiores níveis de vigilância e controlo.
 
Até que ponto somos verdadeiramente livres e autónomos diante de todos esses emaranhados de inteligência artificial que também nos influenciam a nós e às nossas decisões? Não contribuem também para a formação ou alteração de comportamentos ou da transformação de estilos pessoais e personalidades?
 
Ao gostarmos ou adquirirmos alguma coisa na web, o algoritmo acaba por nos encaminhar para um mundo fechado de situações, coisas ou não-coisas semelhantes que nos impedem de ver o diferente ou pensar o diferente, ainda que não se goste ou não se pense daquela forma.
 
O algoritmo direciona, mas também limita e encaminha-nos numa espécie de linha reta a que, se não nos tornarmos conscientes e não ampliarmos a visão da perspetiva, nos tornamos cegos do panorama mais amplo que há além da linha das informações que nos chegam.
 
Este caos e entropia, segundo o autor sul coreano, originou a sociedade pós-fáctica em que a informação já não é verdadeiramente informativa, mas denominativa e em que a verdade e a mentira se misturam sob a égide de uma pretensa eficácia a curto prazo.  A verdade, que Byung diz ter a “firmeza do ser” pode tardar em manifestar-se devido à era de aparências do mundo das fake news.
 
Vive-se a era do imediatismo e esquece-se de que “a confiança, as promessas e a responsabilidade são práticas que exigem tempo”. Byung defende a necessidade de tempo e demonstra-nos que tudo aquilo que estabiliza a vida humana requer esse precioso quid — tempo.
 
Se no tempo de Hegel “a ferramenta ainda não tinha atividade por si própria”, na era da inteligência artificial a situação é diferente e leva à colocação de muitas questões em torno dos efeitos possíveis da sua autonomia.
 
Neste discorrer do fluxo de ideias do autor da obra, com a chegada da inteligência artificial o trabalhador passa a ser desprovido de mãos para jogar com os dedos. Como se a atuação digital através dos dedos lhe atribuísse uma espécie de liberdade ilusória, naquele que tende a ser apenas um encontro com o consumismo.
 
As alterações são muitas: o livro passa a ebook, a desinformação gera o novo “pão e circo da sociedade romana”, a cultura mercantiliza-se e afasta-se da sua origem e os smartphones são os meios por onde fluem os dados que fornecemos sem verdadeira consciência das suas consequências hipotéticas.
 
Curiosamente o autor vê o smartphone como o novo peluche a que nunca nos apegamos e queremos sempre um novo e mais inovador: enche-nos de estímulos, altera os níveis de atenção. Mas também nos torna hipercomunicadores o que, na sua essência, tende a não preencher as pessoas. No campo das fotografias também passamos do analógico para o digital e das fotografias cuidadas para as selfies instantâneas. Acabou-se um bocado com a ideia da fotografia como ressurreição para se voltar a viver o que passou. Nas palavras do autor da obra, “a selfie é o rosto exibido sem aura”.
 
Ao longo da obra, Byung-Chul também distingue o pensamento da inteligência artificial, que é desprovida de paixão e é apática, traduzindo-se em mero calculismo. A inteligência artificial não tem coração: é tudo calculável, previsível e controlável.
 
Apesar dos afunilamentos dos algoritmos, no big data encontra-se tudo e tudo passa a ser previsível e calculável através da analogia de padrões e correlações — a data mining: traduz-se numa correlação que, se voltarmos à lógica de Hegel, se pode dizer que acontece, ainda que não saibamos tudo aquilo que leva a que aconteça. O cálculo distingue-se do pensamento por não formar conceitos e, subsequentemente, não fomenta a sua tomada de consciência.
 
Por outro lado, a inteligência artificial situa-se entre dados e possibilidades prévias — não vai além desse mundo delimitado. O pensamento é muito mais rico e é capaz de ir além do estabelecido para o ampliar e, talvez nesse sentido, a filosofia seja sua maxime. Segundo Heidegger, o pensamento transforma o mundo e aprofunda-o para atingir maiores níveis de claridade.
 
A inteligência artificial não se pensa, não é auto-reflexiva, não inova ou vai além do conhecido e não expande as premissas de que parte a questão para atingir essa clareza compreensiva da raiz das coisas. A inteligência artificial relaciona, escolhe, conclui e aponta estados de previsão com base em padrões verificáveis.
 
Se acompanharmos o raciocínio de Byung-Chul Han na análise que faz da importância do elemento eros na filosofia desde Platão, rapidamente concluímos que na inteligência artificial os dados não seduzem. Mas mais caricato (e não menos esclarecedor sobre este ponto) é a compreensão de que faz a partir do pensamento de Deleuze: quem inova em filosofia é uma espécie de idiota que se “arma em idiota”. Mas é precisamente isso que permite ao pensamento dar o salto do estabelecido para “o nunca percorrido”.
 
A inteligência artificial, como já vimos, é incapaz de ser idiota. É demasiado inteligente para isso.
 
Se nos voltarmos novamente para a análise das coisas “com o olhar” que Sartre lhe incute (cuja capacidade nos pode dotar de alteridade para compreender e nos colocarmos no lugar do outro) ou do calor que elas têm e significam em Rilke, podemos dizer que esta desmaterialização a médio ou longo parazo poderá originar a frieza e a perda da capacidade de alteridade dos seres humanos.
 
Byung-Chul Han refere que as coisas perderam, inclusive, a sua capacidade de resistência ou rebeldia perante a passagem do tempo, como se perdessem a sua estranheza, peculiaridade ou vivacidade. Encaminha-nos para a ideia de que a digitalização torna a presença e a distância equivalentes e que o alargamento das infoesferas e de não-coisas que cada vez mais existem para suprir as necessidades de quem as usa acaba por promover o egocentrismo e também a diminuição de preocupações. Numa smarthouse, a Alexa responde a tudo e não só às questões mais elementares, como o Odradek da história de Kafka.
 
O autor refere ainda que as não-coisas têm o seu quê de misterioso que alude à fantasia e que seduz, o que não acontece com a crueza das coisas. As não-coisas são o ponto cego da realidade que toca a possibilidade da fantasia. Por outro lado, vê o poema como coisa, como materialização e alude à ideia de que a arte está a caminho da sua desmaterialização.
 
Neste ponto muito particular da transformação da arte vai a Merleau-Ponty para refletir sobre a sua significância, mas conclui por si mesmo que o problema da arte na atualidade se encontra no paradoxo entre o excesso de significados subjetivos para a subjetividade de qualquer intérprete ou da sua falta de significado para os mesmos.
Assim, o que começa a acontecer neste domínio é criação de uma significância prévia de uma dada atividade cultural, o que faz com que ela tenha uma intenção, seja a materialização de uma opinião, de uma moral ou de uma política. A arte tornou-se, assim, uma fonte de informação e “deixa-se monopolizar pela comunicação”, que visa “instruir, em vez de seduzir” e isso, de certa forma, torna-a mais expositiva do que fantasiosa e enfraquece-a.
 
Toca, desta forma, o transhumanismo alicerçado na troca de informação e vai, depois, ao principezinho de Saint Exupéry para aprofundar a questão da criação de laços e das trocas que tornam seres humanos únicos uns para os outros. Refere a importância dessa criação de laços e do tempo e dedicação que isso requer, porque afirma que hoje em dia os laços fortes são escassos — os laços fracos aumentam o consumo e a comunicação e variam e cedem mais facilmente à heterogeneidade dos estímulos constantes a que temos acesso nas redes sociais ou ao simples dispor de um smartphone. Hoje em dia poucas pessoas oferecem tempo, ouvidos e responsabilidade como na história da raposa do Principezinho.
 
O autor sul coreano menciona que nas coisas amadas há estabilidade e não estímulo e, por esse motivo, a era do coração está a ficar para trás, em contraponto com a poesia, paráfrases de Heidegger ou da própria história do Principezinho em que se diz que “o essencial é invisível aos olhos”.
 
Nesta era de velocidade e movimento, em que a informação e o estímulo constante é que contam, além de ser desvalorizada a estabilidade do coração e dos afetos também não se sabe lidar com o silêncio — o silêncio não produz informação, embora comunique.
 
O digital tem muito ruído, precisa de atenção, de sharing e é precisamente perante estas constatações que o autor vai à obra de Nietzsche para falar do tempo e da necessidade daquele para reagir de forma culta, ou melhor, para que esse modus operandi faça parte de uma cultura distinta.
 
Todavia, na sociedade da informação, não reagir rápido é sinal de esgotamento, permissividade, declínio. Não obstante, Byung-Chul defende que a não reação pode ser uma potência e uma força, para que não se caia numa hiperatividade destrutiva (a tal que trata numa outra obra, que é a “sociedade do cansaço”).
 
Se Byung-Chul termina a obra com uma espécie de fetiche vintage pelas jukebox coloridas, capazes de criar presença e uma “utilização prolongada que confere alma às coisas”, talvez façamos como ele e regressemos ao valor das coisas descoisificadas numa imaterialidade subjetiva que preserva. Regressamos às cartas de Kafka a Milena, aos poemas de Shakespeare, à arte de um quadro de Klimt e à cultura em geral de uma daquelas velhas enciclopédias de cultura geral, que não se limitavam a um tema (desses que os algoritmos afunilam sem querer vislumbrar ou sequer compreender a amplitude do todo em que se insere). Regressamos também à história do Principezinho, em que uma raposa dá tempo à sua rosa, num mundo real e respiramos fundo ante a beleza simples que os sentidos expandem ao ver um pôr-do-sol na natureza. Podemos fazer isso sem nos fecharmos à infoesfera, tendo um smartphone e lendo jornais, ouvindo a Siri e tendo ebooks numa biblioteca virtual, ainda que, no meu caso particular e sem pretensões de universalidade, vos confesse — prefiro a materialidade dos livros, ainda que com cheiro do século passado.
 

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