Sinfonia Ilitch I

Por Michele Soares

 
Na avenida, dura até o fim
— Elza Soares


Nikolai Dmitrievich Kuznetsov. Piotr Ilitch Tchaikovsky. Óleo sobre tela, 1893.


 
“Esta noite um gato chorou tanto que tive uma das mais profundas compaixões pelo que é vivo. Parecia dor, e, em nossos termos humanos e animais, era. Mas seria dor, ou era ‘ir’, ‘ir para’? Pois o que é vivo vai para”. O texto que o leitor acaba de ler é uma crônica de Clarice Lispector, cujo título é “Ir para”. Publicada em 16 de setembro de 1967, na coluna que a autora mantinha no Jornal do Brasil, li a crônica de Clarice pela primeira vez no alto dos meus dezesseis anos. Como é natural de um olhar menos disciplinado, ainda fresco para a literatura — e, quem sabe, por isso mesmo tão mais sincero —, eu senti a força do impacto das suas palavras, antes de buscar entender o que elas significavam.
 
Hoje, anos depois, é sem hesitar que afirmo como ainda não alcancei conclusão alguma, não tenho sequer uma hipótese. Mesmo assim, quando já estava mergulhada até os cabelos nas entranhas deste texto, imaginei que a crônica de Clarice seria um bom modo de iniciar um ensaio comparativo entre a Sinfonia Patética, de Piotr Tchaikovsky1, e a novela A Morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói2. Ao final, o leitor poderá julgar se pensei corretamente ou não.
 
O recorte e o movimento comparativo que proponho não são exatamente novos. Edward Garden escreveu um artigo em 1974, laconicamente intitulado “Tchaikovsky and Tolstoy”, em que mencionou os poucos encontros entre ambos, suas afinidades e diferenças, para encerrar sugerindo e desdobrando minimamente um possível vínculo entre A Morte de Ivan Ilitch e a Sinfonia Patética. O que pretendo fazer aqui é retomar e ampliar algo desse vínculo entre a novela e a sinfonia, de modo a extrair, se tiver bastante sorte, algumas conclusões provisórias sobre ambas as obras.
 
Para começo de conversa, pode ser interessante voltarmos o nosso olhar para a legitimidade, hoje já bastante afirmada, dos estudos comparados entre a música erudita — com todos os debates/ revisões em torno do nome — e a literatura do século XIX. Igualmente frutífero pode ser pensar sobre os meios através dos quais é possível investigar como ambas as formas artísticas, longe de se isolarem, sem possibilidade de diálogo, na verdade, fertilizam uma a outra.
 
É possível tomar como fio condutor, por exemplo, a presença da música na obra literária, tanto no âmbito da sua forma, quanto do seu conteúdo. Sem mencionar o já sabido vínculo primário indissolúvel entre poesia e canção — no imaginário ocidental, pelo menos desde Homero e os helenos —, mais recentemente, podemos encontrar análises como a de Rosamund Bartlett e seu artigo “Tchaikovsky, Chekhov and the Russian Elegy”, em que a autora ressalta nos contos de Anton Tchékhov um aspecto musical da sua composição, uma possível estrutura de forma-sonata, que estaria na base de várias das suas obras.
 
Já um gênero de contato mais dúbio — e por isso mesmo não menos instigante — como o da ópera, que une texto e atuação à música instrumental, também acaba por saltar dos palcos dos teatros e dos libretos para encontrar espaço legítimo de representação em uma das grandes formas literárias em voga no século XIX, a saber, o romance, que não se furtou às cenas transcorridas nos camarotes. Basta que retornemos em espírito ao Capítulo XV da segunda parte de Madame Bovary ou ao Capítulo XIX da segunda parte de O Vermelho e o Negro. A lista é longa e, certamente, o leitor deve carregar na lembrança mais e mais exemplos.
 
Se nos permitirmos avançar para a primeira metade do século XX, veremos como, de forma recíproca, é possível (re)encontrar a literatura na música, por exemplo, nos romances — gênero de canções para voz e música instrumental — do compositor Dmitri Shostakovich sobre os versos de Alexander Blok, poeta da Idade de Prata russa (op. 127). Voltando ao século XIX, o mesmo vale para a sempre devastadora e nunca suficientemente regravada “None but my lonely heart” (op. 6), de Tchaikovsky, inspirada em um excerto d’Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe.
 
Também é o caso de citar os poemas sinfônicos, peças musicais que procurariam dar forma aos eventos específicos, pontos-chave, sensações/ sentimentos inspirados por obras literárias e artísticas de natureza variada. É no seio desta forma musical que é composta, por exemplo, a releitura de Felix Mendelssohn de Sonho de uma noite de verão (op. 21; op. 61), de onde até hoje pegamos emprestado — com mais ou menos reverência, com mais ou menos consciência — a sua marcha nupcial, exigindo-a em nossas próprias bodas. Do mesmo modo, também a narrativa trágica de Romeu e Julieta (TH 42) é representada em um poema sinfônico homônimo, de Tchaikovsky.
 
Com tais relações em mente, é possível concluir que os vínculos entre literatura e música estão mais sólidos que nunca, de modo que uma manifestação artística pode influir livremente na construção da forma e do significado da outra. Para que continuemos falando de música, embora estreitando o foco do nosso olhar, não é exatamente uma novidade que a Sinfonia no. 6, op. 74, de Tchaikovsky, também conhecida como Sinfonia PatéticaПатетическая симфония, no original ou, no recorrente nome francês, Pathétique —, esteja cercada de mistérios. Por sua vez, grande parte destes mistérios em torno da obra tem como origem ninguém menos que o próprio compositor.
 
Em cartas para Vladmir Davidov, seu sobrinho e maior confidente nos últimos anos de vida, Tchaikovsky define sua Sexta Sinfonia como programática, ou seja, como obra que contém um programa, uma intenção narrativa e/ou simbólica específica, um conjunto de dados e emoções para os quais procura dar forma e expressão musical. No entanto, ao mesmo tempo que afirma e confirma aquilo que alguns de seus contemporâneos já suspeitavam, o artista, com um prazer quase perverso, condena todos a se verem às voltas com o mistério de um programa jamais revelado:
 
“Durante minha viagem, me veio a ideia de uma outra sinfonia, dessa vez programática, mas com um programa que continuará sendo um enigma para todos
— deixe que eles adivinhem [...].”3
 
Ademais, como que para endossar o caráter de ultimato de sua decisão, no melhor estilo “I Let the Music Speak”, em 1893, não muito tempo após reger pessoalmente a sinfonia que concebeu — para estranhamento geral do público e admiração desconfortável, embora sincera, de uns poucos —, o autor foi capturado (ou se deixou capturar voluntariamente, jamais saberemos) pelas garras da cólera. Foi desta maneira terrível que veio a falecer poucos dias depois.
 
Diante de um arsenal de controvérsias, nos resta falar sobre o que ficou: a obra. A estrutura da sinfonia enquanto gênero é comumente dividida em quatro movimentos e Tchaikovsky não se furtou à essa forma usual com a sua Sexta, que você pode escutar aqui, embora, igualmente, tenha jogado de maneira criativa com as expectativas inerentes ao modelo. Encontramos na Patética os seguintes movimentos:
 
i) Adagio — Allegro non troppo
ii) Allegro con grazia
iii) Allegro molto vivace
iv) Finale — Adagio Lamentoso
 
Desde 1893, muita saliva e o dobro de tinta já foi gasto para apontar o que tornaria a forma da Patética singular, tendo em vista, não só o corpus prévio de seu compositor, mas o que se produzia e se esperava das sinfonias do período, em geral. Enquanto uma sinfonia tradicional do período romântico e tardo-romântico se preocuparia em reivindicar, por meio do último movimento, as flores, os aplausos e os estados de ânimos mais fervorosos do público — aqui conto com a memória do leitor para que recorde os encerramentos das suas sinfonias prediletas —, Tchaikovsky dá forma à toda essa ordem de sentimentos/ preocupações, mas as desloca do esperado quarto movimento, para o terceiro movimento. A antecipação, que já é bem sugerida pelos títulos de cada parte, se torna ainda mais evidente quando ouvimos os quatro movimentos da sinfonia em sequência.
 
Uma helenista renomada, Mary Lefkowitz, escreveu, certa vez, sobre como é usual na poesia e no imaginário grego antigo o estabelecimento de contrastes entre os momentos de beleza, desde sempre efêmeros, e dados negativos, como a tristeza, o sofrimento e a morte, sempre inevitáveis. Pessimismo fatal ou realismo franco, nesse sentido, Tchaikovsky parece ter aprendido com os melhores entre os helenos.
 
O final do terceiro movimento é absolutamente vivaz, báquico, rico em metais e estrondos sonoros. Logo vemos como ele é perfeitamente “findável”, enquanto final digno para toda e qualquer sinfonia que espera uma recepção calorosa dos seus espectadores. Trata-se de um entusiasmo que, inclusive, flertaria perigosamente com o apalhaçado ou com o grotesco, pois, no todo atmosférico da obra, ora sombrio, ora luminoso, tal estouro repentino de emoções positivas poderia, sem esforço, parecer fora de lugar. Seduzindo e tentando a sua plateia até hoje, contra todas as regras modernas do decoro, este movimento ainda consegue arrancar algumas palmas, vindas de um ou outro desavisado espectador assistindo uma performance da Patética pela primeira vez.4  A partir disso, é possível pressupor os efeitos da alegria delirante do Allegro molto vivace em contraste com a desolação posta em jogo no Finale — Adagio Lamentoso.
 
Uma vez retomando em espírito os cerca de doze minutos do quarto movimento, é praticamente impossível não associar o Finale da sinfonia com o Finale da vida ou, em outras palavras, a morte. Quando Tchaikovsky é instigado por um correspondente ilustre, o Grão-Duque Constantine Romanov, a compor um Requiem — uma missa fúnebre — em homenagem a um poeta e amigo de juventude do compositor, sua resposta é incisiva, embora educada, ao apontar como a Sexta Sinfonia
 
“está imbuída de uma atmosfera bastante parecida com a de um Requiem. Me parece que fui bem sucedido com esta sinfonia e temo me repetir, caso embarque imediatamente em um novo trabalho, próximo do seu predecessor em espírito e em aspecto… Eu coloquei toda a minha alma nesta sinfonia, sem exageros…”.
 
Contudo, longe de ser renúncia desesperançosa e entrega resignada à morte, como bem já captou Shostakovich, em ensaio sobre o compositor para quem ainda haveria de pagar tributo no século XX, o espectador antes presencia no Finale aquilo que é a agonia e a luta, dramatizada como sobre um palco. Esta luta pode ser contra um Destino, com D maiúsculo, como quer Garden em seu artigo ou contra a mera não-existência, simples e pura.
 
O que é fato mais ou menos unânime entre os críticos da sinfonia é como, para todo efeito, o que ouvimos é a história de uma perda. Quem perdeu e o que perdeu são questões abertas para discussão — as próprias respostas variam das mais plausíveis, até as mais absurdas, com sabor de teoria da conspiração, a exemplo daquela que procura encontrar no teor fúnebre do movimento a confirmação do suicídio do compositor. O que é certo é a perda, expressa por um movimento decrescente, por um tom cada vez mais grave, conforme a sinfonia afunda, se divide, se aglutina, se devora, se decompõe e se desmonta — caindo, em um movimento violento, contínuo e esmagador, cada vez mais grave, cada vez mais grave, até que não resta nada. Durma-se com esse barulho, então, esse barulho terrível e incômodo, o silêncio gritante de um vazio absoluto. “E agora?”, toda plateia deve se perguntar diante de uma performance da Sinfonia Patética, “Como bater palmas? O que fazer com isso? O que fazer agora?”.
 
Se eu puder dar uma sugestão, talvez ir para casa e retirar a sua cópia de A Morte de Ivan Ilitch da estante seja uma boa ideia, porque a leitura da novela à luz da sinfonia e vice-versa, se não autoriza o estabelecimento de verdades interpretativas absolutas ou de vínculos sólidos de influência entre uma e outra obra, só pode ser proveitosa nos termos de uma experiência intelectual e emocional fértil, rica em conteúdo humano. Na novela de Tolstói, nos vemos às voltas com a morte ou as várias facetas da morte de Ivan Ilitch, um funcionário público medíocre, casado e com filhos, que, como mais um homem de aspirações liberais no século XIX, não existiu para outra coisa, senão para ter uma vida "leve, agradável e decente". Na primeira seção do livro, entretanto, Ivan já está morto e acompanhamos suas exéquias a partir da perspectiva de Piotr Ivânovitch, um colega de funcionalismo.
 
Desde então, o retrato, como logo se adivinha, é pintado por Tolstói com tudo o que há de mascaramento e de convenção nas relações interpessoais, esses mesmos dados, que, se vistos com certa naturalidade nos âmbitos da vida e da carreira, ficam um tanto mais amargos, quando levados para o contexto das exéquias de Ivan, onde ameaçam gerar algum desconforto em Piotr e em nós. No primeiro momento da novela, comparecer ao velório de um colega é, não um gesto de compaixão e dor sincera diante de uma perda significativa, mas mais uma performance a ser executada, mais um dado parte da burocracia. O morto é o morto, o caixão é o caixão, as exéquias são as exéquias — quem deve chorar, chora, quem deve lamentar, lamenta, cada gesto deixando entrever o oco do seu interior.
 
Por sua vez, em contraste com o contexto explicitamente fúnebre da primeira seção, as partes subsequentes da novela reapresentam o morto em vida, começando por delinear a biografia absolutamente banal de Ivan rumo à sua singularização. Este movimento, como logo se adivinha, deságua no instante preciso em que o funcionário expira. A partir de um episódio da seção três — ponto de virada decisivo da novela —, o tempo começa a urgir, se acelerar e se encurtar, na exata medida em que, espacialmente e no sentido oposto, onde antes existia uma corrida pelas cidades russas e pelos cargos públicos galgados como parte de uma promessa de ascensão infinita, tudo vai desacelerando e se restringindo. Da corrida para a caminhada, da caminhada até a reclusão em casa, nos deslocamentos entre um cômodo e outro, até a prostração total no leito de moribundo que aprisiona Ivan, não sem dor. Assim termina a vida e A Morte de Ivan Ilitch.
 
Notas:
 
1 Ao leitor que quiser escutar uma gravação da Sinfonia Patética, além da performance da Leningrad Philharmonic Orchestra, conduzida por Evgeny Mravinsky — tida por muitos como a performance definitiva da Patética e que agora estou usando para meus comentários —, também recomendo uma mais recente, a performance da Mariinsky Orchestra, sob a regência de Valery Gergiev. Da Rússia para o Brasil, recomendo também a performance da Osesp, sob a regência de Arvo Volmer. Todas as performances estão disponíveis no Youtube, bem como na plataforma de áudio de sua predileção.
 
2 Todas as citações diretas e comentários sobre a obra foram feitos tendo por base a edição de A morte de Ivan Ilitch, lançada pela Editora 34, com tradução de Boris Schneiderman.
 
3 Todas as citações diretas das cartas de Tchaikovsky são traduções próprias feitas a partir da versão em inglês apresentada por Ritzarev em Tchaikovsky’s Pathétique and the Russian Culture (2014).
 
4 Caso tenha interesse, o leitor pode escutar ou apenas retomar em espírito o intervalo breve entre o Allegro molto vivace e o Finale — Adagio lamentoso da performance da Frankfurt Radio Symphony Orchestra, conduzida por Lionel Bringuier. Você pode escutar a performance aqui. Longe de ser motivo de chacota ou de reprovação, os aplausos fora de hora são sintomáticos de um efeito almejado — e alcançado — pelo compositor, que coloca em cena todos os elementos finalizadores de uma sinfonia, para então prossegui-la. Aí mora o jogo e a beleza do efeito construído.

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