A arte agonizante do ensino na sala de aula digital

Por Tim Parks




É possível perder uma pedra fundamental de uma cultura sem identificá-la como tal? Este ano será meu último lecionando na universidade; decidi jogar a toalha três anos antes da idade de aposentadoria. Há um certo número de razões por trás dessa decisão, mas a alteração das circunstâncias na sala de aula é certamente uma delas. Mesmo em nível de pós-graduação, está se tornando cada vez mais difícil sentir que se tem a atenção dos alunos ou que algo de realmente útil acontece durante as aulas.
 
É claro, professores tem reportado perda de controle na sala de aula por décadas. No início da década de 1970, lembro-me de uma professora de colegial, trabalhando em uma área pobre de Boston, me dizer que ela poderia simplesmente ligar o rádio o mais alto possível e passar suas aulas ouvindo música. Amigos em Milão, hoje, lecionando nas chamadas scuole professionali, relatam experiências similares: a impossibilidade quase completa de se fazer ouvir, a necessidade de lançar mão de táticas cada vez mais agressivas para atrair a mente dos pupilos, muitos dos quais simplesmente não querem estar lá e não veem razão para tanto. O elevado índice de desemprego entre jovens na Itália por tanto tempo dificilmente ajuda.
 
No entanto, tais problemas sempre foram entendidos como específicos de certas situações sociais ou de condições de privação econômica, e que sempre haveria “boas escolas”, onde “crianças brilhantes” motivadas por “pais atenciosos” se comportavam respeitosa e diligentemente e, assim, progrediam com eficiência. Parecia que se você tivesse jovens “bem-criados” e “professores sérios”, a fórmula do ensino tradicional funcionaria eternamente. Então veio o computador, a internet, e, crucialmente, o celular.
 
Eu seu inovador estudo Naven (1936),¹ o antropólogo Gregory Bateson sugeriu que o importante não é o que aprendemos, mas a forma como aprendemos, e que isso era algo a ser determinado pela cultura na qual crescemos. Ele estava vivendo com a tribo Iatmul em Nova Guiné, observando como os homens da tribo buscavam conhecer, ou possuir, números extraordinários de nomes ancestrais (tantos quanto vinte mil) e os mitos a eles conectados. Clãs diferentes na tribo se desafiavam sobre tal conhecimento em luta aberta, fazendo perguntas sobre detalhes específicos, mas sem jamais revelar toda a história, uma vez que fazê-lo colocaria em risco sua posse dos nomes ancestrais. Essas circunstâncias curiosas, observou Bateson, obrigaram os homens Iatmul a desenvolver um tipo de aprendizado que era “diretamente oposto ao método de memorização decorada” do tipo utilizado no Ocidente. Era um sistema extremamente sofisticado que influía sobre suas habilidades cognitivas em geral e o modo como se apropriavam de novos conhecimentos em outras esferas da vida. O fato de que culturas diferentes desenvolveram modos de aprendizado diferentes, pensava Bateson, poderia explicar por que um grupo étnico suporia que outro era menos inteligente; cada um possuía habilidades cognitivas desenvolvidas de forma distinta.
 
A combinação do uso do computador, internet e celular, eu diria, transformou as habilidades cognitivas exigidas dos indivíduos. Aprender é cada vez mais uma questão de dominar vários procedimentos arbitrários de programas de computador que então permitem o acesso a informações e que operações complexas sejam realizadas sem a necessidade de entendermos o que nelas está implicado. Esta atividade é então continuada em um ambiente no qual é bastante normal realizar duas, três ou mesmo quatro operações simultâneas, em meio a uma confusão geral e constante do social, do acadêmico e do profissional.
 
A ideia de uma relação entre professor e sala de aula, professor e alunos, é consequentemente erodida. O aluno pode rapidamente checar em seu celular se o professor está correto, ou mesmo se não há alguma outra autoridade oferecendo uma abordagem completamente diferente. Com o esfacelamento dessa relação vai junto o ambiente que a nutriu: o espaço segregado da sala de aula onde, por uma hora ou mais, toda a atenção estava focada em uma única pessoa que punha toda a sua experiência a serviço do grupo.
 
Havia nisso um elemento de sedução; exigia-se uma certa performance, a habilidade de estabelecer o que nas melhores circunstâncias se poderia chamar de encantamento coletivo. Pode se pensar na lição que D. H. Lawrence, ele mesmo um professor de escola, descreve em Women in Love:² Lawrence faz com que sua professora, Ursula, esteja “absorta na paixão do ensino”, enquanto seus alunos estão tão hipnotizados por sua aula que a chegada de um visitante inesperado é experimentada como uma chocante intrusão.
 
Se o professor não estava à altura disso, é claro, era perda de tempo. Não consigo pensar em outros momentos da minha vida mais completamente desperdiçados que meu último ano de matemática no ensino médio com um homem agradável o bastante cujo único intuito parecia ser o de sair incólume da sala de aula. No ensino tradicional, onde não há autoridade não há aprendizado. Assim, não é difícil perceber por que a sociedade começou a buscar caminhos para reduzir sua dependência do professor carismático, impondo materiais externos (livros, auxílios audiovisuais, e assim por diante) e enfim procurando um controle mais universal na forma de uma autoridade suprema que todos podem acessar a qualquer momento.
 
Introduzir apoios de todos os tipos para reduzir a dependência do professor carismático também apresentava a vantagem extra, é o que nos dizem, de tornar a sala de aula mais interativa. Os alunos não mais apenas ouviam e tomavam notas (como se isso não fosse uma forma de atividade); eles participavam. Na medida em que a interação significava apenas fazer exercícios em livros, isso era algo que poderia ser integrado de forma satisfatória ao ensino tradicional. Quando se tornou uma questão de trabalhar com um computador, a intrusão que quebrara o feitiço da sala de aula de Lawrence tornou-se a norma.
 
No fim dos anos 1990, tive minha primeira experiência com alunos trazendo notebooks para a sala de aula. Naquele tempo, conexões sem fio não eram uma preocupação. Uma vez que se tratava de aulas de tradução, os alunos argumentavam que seus computadores eram úteis para os quinze ou vinte minutos em que eu os convidava a traduzir um breve parágrafo. Traduziam melhor em seus computadores, diziam; podiam fazer correções mais facilmente.




No entanto, observei de imediato a tendência de se esconder atrás da tela. Quem poderia saber se o aluno estava de fato tomando notas ou fazendo outra coisa? O tec-tec dos teclados enquanto alguém falava era dispersivo. Insisti que os notebooks deveriam ser mantidos fechados exceto durante o breve período de nosso exercício tradutório.
 
Foi uma longa e malograda batalha. Minha universidade, em sua determinação em parecer moderna, introduziu salas de aula com notebooks em cada carteira. Insisti em ser designado para salas à moda antiga. Os alunos abriam seus notebooks de qualquer forma. Eles ignoravam, ou talvez genuinamente se esqueciam da minha regra. Tinham excelentes dicionários em seus notebooks, protestavam. O wi-fi apareceu. Agora eles podiam checar coisas instantaneamente. Agora podiam colocar uma passagem no Google tradutor ou DeepL e simplesmente editar a tradução da máquina ao invés de traduzir.
 
Observei que desse modo eles renunciavam à possiblidade de efetivamente entender um texto original e rearranjar uma frase completa no tipo de dicção e estrutura sintática que sua sensibilidade lhes dizia ser mais apropriada em sua língua. Eles entendiam isso, mas o recurso à máquina estava sempre ali, como uma isca. Era um procedimento similar a outros procedimentos que aprenderam a desempenhar. Pois, agora, trata-se de alunos que cresceram com computadores. “Nativos digitais”, como são por vezes chamados, possuem uma mentalidade diversa.
 
Apesar disso, continuei a lutar minha luta e a manter os notebooks majoritariamente fechados, e estava me saindo muito bem, creio, até o celular entrar na sala de aula. Em sua palestra de 1923 “O ritual da serpente”, Aby Warburg observou que a invenção do telefone marcou o início do fim da ideia de espaço sagrado; dali em diante, previu o estudioso alemão, a antiga prática de isolar uma área de modo que estivesse livre de qualquer interferência tornar-se-ia uma árdua batalha — toda forma de ritual que exigisse concentração total seria ameaçada por invasões externas. E ele dificilmente poderia ter previsto o telefone móvel, sobretudo o celular. Recentemente, li nos jornais sobre padres atendendo ao telefone durante a missa e juízes de futebol fazendo ligações com a bola em jogo. Como se pode impedir uma turma de alunos adultos de usar seus celulares?
 
Ano passado, a universidade me disse que não mais poderia me dar uma sala tradicional para minhas aulas. Então eu tenho trinta alunos atrás das telas de computadores conectados à internet. Se me sento atrás da mesa em frente à classe, ou mesmo se me levanto, não consigo ver seus rostos. Em seus bolsos, em suas mãos, ou simplesmente à sua frente, estão seus celulares, suas conversas em andamento com namorados, namoradas, mães, pais, ou outros amigos muito provavelmente em outras salas de aula. Há agora uma interpenetração quase total de cada aspecto de suas vidas por meio do mesmo aparelho eletrônico.
 
Para manter algum tipo de propósito e ímpeto, eu andava para a frente e para trás aqui e ali, buscando lembrá-los constantemente de minha presença física. Mas durante todo o tempo os alunos têm diante de si seus instrumentos que lhes tomam a atenção. Enquanto no passado eles frequentemente faziam perguntas quando havia algo que não compreendiam — interatividade real, de fato —, agora eles ficam quase sempre em silêncio, ou perguntam a seus computadores. Qualquer chance de tomar parte na “paixão pelo ensino” se foi. Decidi que era hora de ir com ela.

Naturalmente, isso não significa o fim do aprendizado. Não significa, ou não necessariamente significa, que as pessoas serão mais estúpidas (embora talvez o pareçam aos sobreviventes de um mundo distinto). Minha filha mais nova recentemente se inscreveu para um diploma de curso superior no qual todas as aulas são acessadas pela internet. As palestras são preparadas e gravadas uma única vez como vídeos que podem ser acessados por turmas e turmas de alunos quantas vezes quiserem. Você tem muito mais controle, observa minha filha: se há algo que é difícil de entender, você pode simplesmente rever. Não é preciso ouvir seus amigos tagarelando. Não é preciso se preocupar com o que vestir para as aulas. Você não perde um dia por estar doente. E os professores, ela crê, fazem um esforço maior para aperfeiçoar a aula, já que só precisam dá-la uma única vez.
 
As vantagens são bastante evidentes. Mas é também evidente que isso é o fim da cultura na qual aprender era uma experiência social coletiva, implicando certa hierarquia positiva que convidava tanto professor como aluno a crescerem junto das novas trocas que cada aula ocasionava, a dinâmica especial que se formava com cada novo grupo de alunos. Essa era uma das coisas que eu mais apreciava ao ensinar: a consciência de que cada sala diferente — eu os ensinava semanalmente por dois anos — criava uma atmosfera diferente, embora sempre em desenvolvimento, a que eu respondia ensinando de uma forma diferente, revisitando materiais antigos para a nova situação, vendo novas possibilidades, novas ideias, e localizando fraquezas que até então me escapavam.
 
Era uma situação prenhe de possibilidade, imprevisibilidade, crescimento. Mas vejo que a sala de aula computadorizada e a intrusão do celular estão acabando com ela, até porque há limite de energia que pode ser direcionada a distrair os alunos de suas distrações. Chegou a hora de sair de cena.
 
Notas da tradução

1 Publicado no Brasil pela Edusp em 2008 com o título Naven: Um exame dos problemas sugeridos por um retrato compósito da cultura de uma tribo da Nova Guiné, desenhado a partir de três perspectivas, com tradução de Magda Lopes.
 
2 Publicado no Brasil pela Record em 2004 com o título Mulheres apaixonadas e com tradução de Renato Aguiar.
 
* Tradução livre de Guilherme Mazzafera do artigo publicado no The New York Review of Books em 31 de julho de 2019, disponível aqui.
 

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