Um ensaio compila os gênios da erudição
Por Álex Vicente
O que é um polímata? O dicionário
define o termo, derivado do grego, como uma pessoa “com grandes conhecimentos
em diversas matérias científicas ou humanísticas”. O grande historiador
cultural Peter Burke oferece em seu novo ensaio, O polímata (Editora Unesp,
2020), uma descrição muito mais detalhada para entender quais foram os “monstros
da erudição” que conseguiram oferecer contribuições simultâneas em diversos
campos, de Leonardo da Vinci a Susan Sontag. “Para ser um polímata, é preciso
ter um sentido de curiosidade maior que o restante das pessoas e um bom sentido
da analogia, a amplitude suficiente de olhar para acreditar que as soluções que
alguém encontra numa área do saber servirão para outra”, registra em entrevista
o professor emérito de história cultural depois de ter sido professor no
prestigiado Emmanuel College por quatro décadas.
A lista feita por Burke em seu
livro alcança cinco centenas de nomes, de Comenius a Oliver Sacks, passando por
Alberto Magno, John Dee, Newton, Jefferson, Humboldt, Pascal, Montesquieu,
Voltaire, Marx ou George Eliot. O autor considera que a história nem sempre os
trataram merecidamente. Na era da especialização acadêmica, tem dominado certa
reticência em admitir que existiram personalidades que romperam as regras do
conhecimento fragmentado que reina no presente e conseguiram expandir as
fronteiras do saber. “Personalidades com múltiplos interesses, de Leibniz a Borges,
são recordadas por apenas uma de suas diferentes facetas. É mais fácil lembrar
o passado de uma maneira que se acomode ao presente”, sustenta Burke, que não considera
que ele próprio se ajuste à definição de polímata, apesar dos seus
conhecimentos diversos em história, filosofia, sociologia, antropologia, economia
e política. “Mas não sei nada sobre ciência, sou terrivelmente ignorante nesse
campo”, se desculpa. “Se sou um polímata, é num sentido muito light”.
Ainda assim, seu ensaio pode ser
lido em chave autobiográfica, como uma apologia da interdisciplinaridade, que
terá sido, durante uma longa e brilhante trajetória acadêmica de seis décadas,
sua maneira de apreender a vida intelectual. Sendo um historiador do século
vinte, Burke deixou Oxford, onde havia se formado no lendário St. John’s
College, para trabalhar como professor em Sussex, onde abriu uma das new
universities estabelecidas depois da Segunda Guerra Mundial, com liberdade
para oferecer um novo tipo de aprendizagem multidisciplinar. Em 2003, essa
universidade decidiu adotar um currículo mais tradicional, separado em profissões.
“Fizeram isso porque diziam que os bons estudantes não queriam estudar aí. Com o
tempo, apareceu uma geração pragmática que se preocupava com encontrar um
trabalho”, explica o historiador. “Entendo os tempos de crise e, talvez,
acredito que se equivocam: as empresas continuam buscando indivíduos com grande
flexibilidade intelectual”.
O próprio Burke acabou deixando
Sussex no final dos anos 1970 para se fixar em Cambridge, com um plano de
estudos muito mais conservador, mas ministrou seus seminários em nove faculdades
diferentes, até se aposentar em 2004, quando a internet já havia alterado
definitivamente nosso acesso á informação. Esse processo se acelerou desde
então, o que o preocupa. “Talvez estejamos perdendo a capacidade de ler à moda
antiga, de maneira linear, do começo ao fim”, aponta. “Sei que pessoas que
afirmam que, apesar de adorar a tecnologia, estão preocupadas com os seus efeitos
no cérebro humano. Se isso se generaliza, teremos um problema.” Quando deixa o
seu gabinete, forrado com tapeçaria em tom celeste e extremamente british,
sempre perde alguns minutos conversando com estudantes que jogam crocket
num claustro saído de um oscarizável drama histórico. Perguntamos se detecta
neles uma menor capacidade intelectual que a sua. “Sigo tendo conversas muito interessantes
com eles e não acredito que padeçam algum mal. Mas sim penso que exista perdas
ligadas às ganâncias da tecnologia atualmente…”
A internet pode ser a invenção
perfeita para que o mundo se converta num polímata. Na verdade, seu livro
sugere que pode provocar uma overdose de informação que, paradoxalmente, nos
torne mais ignorantes, como já aconteceu depois da invenção da imprensa. “Existe
uma tentação de o intelectual ser cada vez mais preguiçoso, de recorrer ao
Google ou à Siri a todo tempo. É muito prático conhecer a distância entre
Londres e Edimburgo num par de segundos. Agora, se todo mundo se firma nessa posição,
quem começará a medir os quilômetros? Quem sentirá o incentivo de se converter
em acadêmico ou em polímata?” Burke espera que seu livro não seja “uma elegia
ao polímata”, mesmo preocupado que acabe se tornando esse o caso.
Peter Burke não comete o mesmo
erro que tantos outros antes dele, que nos séculos passados disseram, como
relata em seu livro, que o tempo da grande erudição terminaria com suas mortes?
“Na verdade, estou aberto à ideia de que exista algum entre nós, mas não me
ocorre nenhum nascido depois de 1960”. Em seu livro, o mais jovem dos
quinhentos polímatas citados, todos mortos, é o paleontólogo, biólogo, geólogo e
historiador Stephen J. Gould, nascido em 1941. Embora, no último minuto, Burke
decidiu acrescentar um apêndice com alguns vivos. “Fui advertido por minha
companheira que, se não fizesse isso, ia ganhar muitos inimigos”, sorri.
Entre eles, surpreende a presença
de muitas mulheres que se firmaram a partir dos estudos de gênero, como Judith
Butler, Gayatri Spivak ou Julia Mitchell, que vive na esquina próxima; todas
elas são exemplos de interdisciplinaridade contemporânea. Não são as primeiras
eruditas que aparecem no livro, mesmo que não sejam muitas, visto que foram excluídas
durante muito tempo do mundo acadêmico (ou marginalizadas, no melhor dos
casos): o autor cita Hildegard von Bingen, Margaret Cavendish, Margarida da
Suécia, Sor Inés Juana de la Cruz ou Madame de Staël.
O ensaio aponta ainda as falhas
trágicas destes heróis intelectuais. Em primeiro lugar, a chamada síndrome de
Leonardo, ou a incapacidade de concluir uma investigação, ao ter a mente
dispersa em diferentes campos do saber. E, em segundo, certa arrogância, que
Burke detecta em George Steiner ou em Foucault, quem seu amigo Carlo Ginzburg
apelidou certa vez de “charlatão”, tal como Isaiah Berlin fez com Derrida. “Contudo,
prefiro a arrogância do conhecimento a ignorância”, joga. A esse tema dedicará
seu próprio ensaio, uma história cultural da indigência intelectual, previsto
para 2023. “É um assunto que sempre fez parte do que somos e que continua tendo
um grande futuro pela frente”, conclui.
* Este texto é a tradução livre de
“Qué une a Leonardo da Vinci y a Susan Sontag: un ensayo recopila a los genios de
la erudición”, publicado aqui, no jornal El País.
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