A vida futura, de Sérgio Rodrigues

Por Pedro Fernandes

Sérgio Rodrigues. Foto: Bel Pedrosa.


 
A biografia e a obra de Machado de Assis se transformaram num extenso manancial onde poetas e prosadores visitam com alguma frequência e dele retiram substrato para suas criações. E isso é uma das qualidades que nos leva a colocar o escritor brasileiro numa camada do imaginário por onde circulam os elementos que resultam no mito. Claro, não o mito enquanto entidade superior, impenetrável e por isso mesmo sinonímia de falsidade como a que se empregou corriqueiramente no Brasil para designar certo político, mas aquela substância imaterial que participa livremente das nossas vidas, entidade porosa e portanto matéria em contínua expansão, verdade indissociável de uma cultura.
 
O romance de Sérgio Rodrigues é uma peça extremamente sensível porque captura esse instante de transmutação cujas primeiras evidências só agora começam a se demonstrar melhor. O escritor que se fez reconhecido por O drible (2013) e também pela recriação ficcional de um João Gilberto em A visita de João Gilberto aos Novos Baianos (2019) se integra à biblioteca dos autores que participam nesse trabalho de invenção pela literatura do mito Machado de Assis. Ao se aproximar de uma lacuna da narrativa de Dom Casmurro, um dos contos do último livro antes de A vida futura já trazia a centelha para este romance.
 
A pergunta essencial que pode funcionar como desencadeadora de A vida futura não é, entretanto, um fio da obra de Machado de Assis, embora possamos reconhecer sob várias formas sua presença no desenvolvimento da narrativa — a começar pelo narrador. Como reagiria o Bruxo do Cosme Velho se por uma sorte do tempo conseguisse voltar ao mundo dos vivos? O modelo de resposta para essa pergunta é oferecido no romance de Sérgio Rodrigues que se apropria de outro mérito do escritor: na peça cômica Os deuses de casaca (1866), Machado faz descer ao mundo do século XIX sete personagens da mitologia clássica. Bom, a inquietação é corriqueira, afinal, em algum momento também fizemos essa pergunta se não sobre outrem sobre nós mesmos seja num longínquo passado ou futuro. A resposta pode ser entrevista ainda em vida, afinal, uma vez ultrapassada a linha da maturidade, costumamos, por vezes, nos posicionar sempre mais alheios às transformações sociais. Mas, a resposta não é tão simples e a prova disso é a extensa variedade de obras como a de Sérgio Rodrigues que buscam imaginar uma possibilidade.
 
Saindo da obra e alcançando a narrativa, a motivação do retorno de Machado de Assis não é a curiosidade pelo tempo futuro, mesmo que o conflito entre extratos temporais distintos implique parte essencial, inclusive, para o funcionamento da narração. Instaura-se no panteão dos escritores uma celeuma quando José de Alencar descobre o interesse terreno de uma professora universitária na reescrita de obras da literatura brasileira, sob a justificativa de acessibilidade dos livros considerados de linguagem hermética entre os novos leitores. No Olimpo, armam-se os defensores da letra original contra os que entendem no gesto a prova máxima de eternização da sua obra. Revoltado, o escritor brasileiro decide averiguar de perto a ideia que lhe parece estapafúrdia e está disposto a agir de alguma maneira para desencorajar a mentora do projeto a desistir disso. Sem se posicionar favorável ou contrário ao amigo, Machado decide acompanhá-lo nessa empreitada. E o resultado é um périplo dantesco por um inferno terrenal.
 
Dessa maneira, o princípio estrutural da narrativa de A vida futura é o duplo. Aqui designamos as duas personagens porque elas aparecem entrevistas nos paratextos e nos diversos indícios da narração, mas, segundo o narrador, no plano de morada dos escritores cada um é rebatizado com outro nome. Ou seja, mesmo a designatio oferece-se como uma extensão do duplicado. Machado e Alencar são respectiva e espectralmente Jota e Jota. Essa nomenclatura instaura na narrativa um precioso complexo que se deixa capturar na própria leitura quando a voz de uma não se distingue precisamente da outra. E os duplos se espalham: céu e terra; visível e invisível; material e imaterial; passado e futuro; original e cópia; ordem e desordem; popular e erudito; centro e periferia; tradição e modernidade… Também se deixa notar entre outros elementos da narrativa, além do espaço, como nas personagens Helena e Mariana, as irmãs moradoras da Rocinha com destinos diametralmente opostos. A segunda é estudante na Universidade Federal do Rio de Janeiro, participa do projeto que pretende reescrever obras da literatura brasileira, e por isso é quem conduz os dois viajantes pela intrincada teia que favoreceu à professora Stella desenvolver essa estapafúrdia ideia. Nesse universo, o romance de Sérgio Rodrigues prefere sempre o contraditório.



Para ilustrar com apenas um exemplo: Mariana, uma jovem negra de periferia, qual o próprio Machado, se coloca sempre de uma perspectiva questionadora ante todas as afirmações identitárias ou reducionistas que a academia, tomada pelas diversas frentes dos estudos culturais, começa a instruir e instituir para um grupo de estudantes modorrentos, incapazes de qualquer debate com professores enfiados no corpo de suas amarras teórico-ideológicas. Mariana sequer refaz a estatística recorrente da jovem problemática porque criada na periferia e sua atitude no final da narrativa mesmo que não chegue a ser a resposta de Machado ante a ideia de facilitação da literatura assume um valor simbólico importante, se considerarmos a identificação do fantasma para com as ideias da estudante. É que, se demonstrando integrada às conjunturas críticas da academia, a própria experiência de vida da estudante — para reiterar um conceito tão gasto no interior dos modismos teóricos vigentes — encontra-se na contramão do que se impõe como verdade ou modelo.
 
Mas não é o caso de A vida futura se constituir num romance de negação gratuita das coisas; ou produto de uma postura professoral fundada na tradição que ignora ou ridiculariza os debates do nosso tempo. À vida de Mariana segue-se a da irmã, marcada direitinha pelas determinantes teóricas: a jovem se vê tragada por um destino social perverso porque incapaz de oferecer as devidas aberturas fora do fatalismo imediato. Com o duplo das irmãs, o romance nos alerta, como faz a literatura machadiana, que quaisquer determinismos são incapazes de responder pela complexidade da vida, esta que entre o escuro e o claro se faz mais pelas regiões cinzentas, pelos recantos obtusos, à fronteira das dicotomias. Esse é talvez o princípio inviolável entre o passado e o futuro presenciado por Jota; mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, mas a existência continua a ser fonte inextinguível de desvios dos desígnios materiais, a história fonte inesgotável de contradições. Isso talvez explique como Machado de Assis consegue cumprir ileso sua travessia pelo mundo dos vivos.
 
O mesmo não acontece com o outro Jota. Eivado de pesadas emoções contra a atitude da professora Stella, sua estadia, na maior parte súcuba, agarrada ao corpo do miliciano João Pinto, amante de Stella (um enlace explicado pelo narrador em forma de história encaixada à narrativa principal, reiterando outro trejeito recorrente entre os narradores machadianos), o que Alencar apenas alcança é uma intricada vida estabelecida numa sociedade ainda mais intrincada e sobre as quais não consegue encontrar uma compreensão. A atitude, obviamente, pode ser questionada, uma vez que o ponto de vista do primeiro Jota, sendo o predominante, pode ocultar as circunstâncias do segundo, principalmente, se considerarmos que paira entre os dois o falado episódio de traição (de Machado com a companheira de Alencar) e sobre isso, que é trazido no primeiro instante da narração, abre-se um certo silêncio do segundo Jota.
 
O romance, entretanto, reveste uma série de desafios. Em procedimentos narrativos que se consideram outros universos ficcionais ou traços biográficos dos seus criadores não é suficiente o alinhamento desses elementos para a compor a narração. No caso de A vida futura soma-se ao mundo material (o da literatura e o da vida dos dois escritores) soma-se ainda a criação de um mundo inventado, o da vida fantasma. Se recordamos que o interesse desencadeador dos acontecimentos é a interferência deste naquele mundo, alcançamos outro elemento complicador. Agora, as soluções adotadas por Sérgio Rodrigues nem sempre são convincentes. A primeira delas — embora empregada uma única vez — não se ajusta bem ao romance, que, fixado entre a fantasia e o realismo (entendendo por este termo não a escola literária e sim o procedimento ficcional), se estabelece pela segunda dimensão.
 
Jota e Jota aportam no mundo terreno numa loja abandonada cuja existência remonta ao tempo em que viveram. Até aqui tudo certo, mas, não tarda e encontramos os fantasmas em diálogo com os manequins largados na escuridão e na poeira da Magazine Elegância. É uma solução pueril, se considerarmos o princípio estrutural do romance e a improvável, mas também desnecessária interação entre um mundo das coisas e o fantasmal, afinal, essa segunda dimensão é perfeitamente ajustada ao mundo dos vivos; recordamos como José Saramago engendra com maestria esses dois mundos em O ano da morte de Ricardo Reis sem apelos para uma inventividade simplista. Ainda bem que, desenvolvimento da narrativa, o que é aparentemente uma primeira solução de Sérgio Rodrigues para estabelecer o convívio dessas duas dimensões, essa não vigora.
 
Outra questão problemática é a organização da voz narrativa. Ao se decidir por uma narrativa em primeira pessoa contada por Machado de Assis, o escritor se vê enredado num desafio: estabelecer uma voz própria com traços que remontem o estilo narrativo machadiano ou combinar as diferentes matrizes desse estilo na composição de uma voz bricolada para o seu narrador. A exemplo do primeiro problema aqui apontado, a narração se desdobra e a sua maquinaria consegue fôlego próprio, quer dizer, encontra-se um narrador cujo estilo remonta ao estilo de Machado. Mas custa. Durante muito tempo ouvimos por baixo da voz narrativa os ecos do narrador de Memórias póstumas de Brás Cubas, sobretudo, ou dos narradores oniscientes da safra romântica, ou o narrador de Quincas Borba. Com um agravante: o mais marcante dos narradores, aquele de quem o próprio criador demonstrou dificuldades para se libertar, Brás Cubas, é narrador e autor, senhor do seu livro. As Memórias..., sabemos, mimetizam dentro da ficção o próprio jogo da ficção. De maneira que tomar o estilo do defunto autor como sendo de Machado é se descuidar de uma sutileza essencial para a série de deslocamentos que o escritor introduz na forma romanesca.
 
Com A vida futura, Sérgio Rodrigues precisa lidar ainda com outras sutilezas, como as de corte linguístico. O mundo de Machado e Alencar é totalmente diverso do mundo de 2020 para onde os dois são catapultados. São outros os costumes, os comportamentos, as coisas, é outro o espaço urbano e é outro todo um léxico. Muitas vezes, desde o primeiro instante, o narrador demonstra saberes e vocabulário suficientes para descrever o novo mundo e por isso o encontramos muito à vontade na maneira como narra ou participa dos eventos contados. Essa liberdade até caberia em passagens mais avançadas da narração, uma vez que seria isso fruto de sua atitude de perscrutar as pessoas e as coisas, mas é, justamente nessas ocasiões quando notamos o cuidado com a linguagem, as alternativas encontradas para nomear o que desconhece ou a incompreensão do que ouve dos vivos, ou ainda as incertezas sobre como descreve o que vê.
 
O romance de Sérgio Rodrigues recorda As naus, de António Lobo Antunes. Nesse livro, aportam numa Lisboa moderna Luís de Camões, Pedro Álvares Cabral, Vasco da Gama e outros nomes da história portuguesa; são agora reduzidos a pessoas comuns que enfrentam toda sorte de desventuras que ora colocam em confronto o tempo de onde vieram e o tempo em curso, operando por contraste e por retomada. Para isso, o romance adota um narrador de posição variada e intercalada ora em primeira ora em terceira pessoa. Não se trata de repetir, mas uma alternativa semelhante resolveria as dificuldades do narrador em A vida futura; deixando-se de mostrar como réplica de estilo, conseguiríamos perceber melhor sua autenticidade no interior de uma criação póstuma de Machado.
 
Mas em outros casos, há engenhosidade. Um dos principais é como o acontecimento desencadeador da aventura dos dois fantasmas é destrinchado: um escritor que se coloca como narrador enquanto sonda a vida interior de suas personagens. Desse modo, o entendimento que se estabelece da parte do Jota narrador é mais interessante que o desenvolvido pelo segundo Jota. Preso a João Pinto e logo ao périplo mundano, as eventuais explicações resultam sempre vazias porque, desconhecendo o mundo em curso, não consegue conhecer também as motivações do que para ele significa um crime e o que para o narrador significa outro medo, o da morte definitiva. O sistema de eternidade de um escritor é descrito como feito do gesto do leitor na leitura de uma obra. Agora, diferente de se assumirem enquanto contradições, as perspectivas dos dois Jotas se integram e esclarecem um dilema estritamente literário como parte de um universo variado de implicações dentro e fora do plano intelectual.
 
Bom, a questão é, qual é mesmo o lugar de Machado nesse debate que cinde os escritores no Olimpo? A resposta é sibilina. Sérgio Rodrigues refaz com isso uma matéria essencial na ficção machadiana: a substituição do decisivo pela indecibilidade. Com isso, a resposta de Jota/ Machado é capaz de favorecer a um ou aos dois lados em atrito ou ainda abrir outras vias que não as que se digladiam. Eis a melhor das respostas. Eis o princípio que faz de A vida futura um desses livros que nos devolve a saborosa atitude de não impor satisfações ou ainda de não oferecer a resposta que queremos ler porque filiado aos dogmas em curso. Outra vez, bem ao jeito de Machado de Assis. Um romance que nos devolve o essencial da literatura: bem inalienável, objeto de perscruta e de interrogação.   


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A vida futura, Sérgio Rodrigues
Companhia das Letras (2022)
168 p.

Comentários

Luís Fagner disse…
Você extraiu leite de pedra. Nunca vi um livro tão ruim. A ideia é boa, mas como tem acontecido com muitos dos nossos escritores, pessimamente mal executada.

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