Mánasteinn, o menino que nunca existiu, de Sjón

Por Pedro Fernandes

Sjón. Foto: Dagur Gunnarsson


 
Tornou-se comum dizer da ausência de personagens na literatura capazes de permanecer conosco como figuras que rompem o limite da ficção e passam ao nosso convívio como as nossas criaturas de carne e osso. Sjón contraria o que parece se afirmar como uma recorrência e nos oferece uma dessas criaturas: Máni Steinn.
 
É caso ardilosamente pensado, como é sempre na arte. O jogo ficcional disposto pelo romance com essa figura começa desde um título que a princípio registra o que parece uma versão oralizada do nome próprio do protagonista: Mánasteinn. Entre uma forma e outra, o romancista desvincula sua personagem de uma condição material transformando-a em matéria simbólica. Não é, portanto, apenas uma criatura que se distingue no plano narrativo pela ação. Sua natureza a insere no plano das significações.
 
Sendo o islandês em relação ao português uma língua perfeitamente integrada à lista daquelas complexidades que só uns muito iluminados conseguem acessá-la bem, a tradução publicada pela Pontoedita se preocupou em deixar ao alcance do leitor as pedras para as nuances simbólicas entre Máni Steinn e Mánasteinn (foneticamente, Máuni Steit e máunasteit): Máni significa lua e Steinn, pedra; enquanto mánasteinn designa o mineral perolado e opalescente conhecido como pedra da lua. Esses designativos encontram correspondência não apenas na grafia, na fonética ou no significado. Também esclarecem a persona do protagonista do romance: sua resistência à passagem por um sem-fim de contrariedades à vida; e os matizes irisados assumidos no curso de uma existência desde sempre natural e socialmente diferentes do esperado e, por isso, condenada.
 
É uma pequena parte da vida do jovem Máni Steinn o que o romance acompanha. Os pequenos instantes antecessores do ponto de viragem na sua vida; as luminescências que carregamos conosco ora como pontos de nostalgia, que nos tocam toda vez quando cintilam, ora como marcas que preferimos esconder da vida e de nós. O narrador de Sjón atua sempre por via de mão dupla: ora incide sobre as circunstâncias do mundo exterior (a Primeira Guerra Mundial, a explosão do vulcão Katla, a Gripe Espanhola, a Independência da Islândia) ora sobre como isso torce as cordas da interioridade da sua personagem.
 
Mánasteinn se faz com o que seria um romance de feições tradicionais — neste caso, os restos do Bildungsroman —, com um plot convencional para uma narrativa que acompanha um ponto a outro da vida, nesse caso, de um jovem marginalizado que tem pela existência um sentido quase hedonista, em que a liberdade ou prazer estético, por exemplo, assumem-se como contradições quanto a um tempo e a uma coletividade subjugados e em fechamento. Nessa mesma linha, expande-se outra, sem necessariamente se fazer dicotômica, marcada pela atitude poética e que torce o romance para um modelo da prosa de invenção, explicitamente marcada pelos flertes com a dicção surrealista, seja pela natureza onírica que envolve os acontecimentos, seja pelas justaposições de significação. Esses dois possíveis do romance se articulam para uma possibilidade de dizer o coletivo e o particular, o histórico e o fabular, o real e o inventado, o social e o íntimo, o objetivo e o subjetivo, sem que tais dimensões se mostrem tencionadas.



Os dois primeiros episódios do romance sinalizam essa prática que se aprofunda na convalescença de Máni enquanto a cidade de Reykjavík perece sob a força irreprimível da gripe espanhola. Num só instante o narrador mostra seu protagonista numa felação enquanto se aproxima dos amantes uma motocicleta. A interpenetração dos dois episódios conjuga o exterior e o particular, uma correspondência ao mesmo tempo material e significativa: as tensões entre o barulho de aceleração da moto, o medo da descoberta da imoralidade e um corpo prestes a estourar em gozo.
 
Muitas vezes, essa duplicidade de circunstâncias atua como uma maneira de mostrar como por sob o plano dominante esconde-se outro desordenado mas autêntico e vivaz. Para o romance, é ainda uma maneira de rebaixar a ordem, como é caso o enlace sexual entre Máni e um marinheiro dinamarquês enquanto todos, passada a epidemia, permanecem encafuados com o maçante rito de celebração nacionalista. Sendo, nesse caso, um desejo próprio da personagem, sempre em fuga, quando reimagina a atuação dos Vampires no desmantelamento da circunstancial pompa de Estado.
 
A referência, aliás, não é gratuita. A realidade de Máni Steinn é profundamente marcada pelo cinema, um gosto formado ainda no curto tempo em que esteve no Varnagianos, um grupo de escoteiros de Reykjavík. Les Vampires é o título também do filme do francês Louis Feuillade, que apesar da qualidade duvidosa em seu tempo, se tornou um marco do cinema e é para Máni um exemplo de boa película; em dez episódios, a trama acompanha a história de um grupo que aterroriza a sociedade francesa. “A figura mais importante dos Vampiros é uma mulher, Irma Vep. Usando um figurino que se ajusta perfeitamente a seu corpo voluptuoso, ela escala edifícios como uma sombra, invade aposentos e gabinetes do governo, escapa pelos telhados” — registra o narrador de Mánasteinn.
 
Máni encontra em Sóla Guðb- a fiel correspondência de Musidora, a intérprete de Irma Vep que se torna por esse papel em estrela do cinema francês graças ao sucesso de Les Vampires durante a Primeira Guerra Mundial. O jovem tem pela iridescente figura islandesa que pilota motocicleta, discute pautas feministas com o grupo de estudantes do curso de costura e mais tarde assume o lugar de motorista no carro de lida com a ronda aos doentes na epidemia de gripe espanhola, uma admiração profunda. O desejo dele é o do admirador pela musa, isto é, não está convertido em desejo erótico, mas num jogo espelhar: ele se vê (o que não é) em Sóla; ele vê em Sóla, o que deseja em Irma Vep.
 
Outra vez, vale consultar a nota da tradução sobre os nomes das personagens neste romance. Sóla Guðb- é acrônimo da palavra islandesa para designar vampiro, em referência, claro está, à personagem do filme francês. Sóla, por sua vez, deriva de Sól, em português, sol. Se lembrarmos que Máni Steinn é pedra da lua, não é difícil entender as correspondências entre as duas personagens ou a maneira como se têm; ela o suga em energia, é o pulso que não tem e ainda o impulso para o que é; ele se projeta iluminado por ela. A natureza caleidoscópica de Máni, aliás, é parte nessa dialética. A certa altura é ele quem observa em Sóla vestida como mulher a condição polifacetada como uma qualidade indubitável. E é no regresso a Reykjavík, quando o romance descobre o nome verdadeiro do protagonista que se abre o valor do que chamaríamos um travestismo de identidades assumido por Máni.
 
Ao revelar a identidade de Máni Steinn, o romance oferece outro giro, o da ficção para o dado documental do próprio Sjón, quem o descarta ou modifica-o propositalmente enquanto imaginação, assumindo definitivamente a noção de que toda memória resulta em invenção e é apenas enquanto tal que se projeta no tecido verbal com o qual engendramos o tempo. Reside aqui o ponto seguinte do título deste livro, que também é a frase final do romance, “Máni Steinn, o menino que nunca existiu”. E esse entendimento de invenção fixa-se ao substituir no título Máni Steinn por Mánasteinn, em que o protagonista que nunca existiu permanece enquanto ideia e não precisamente como figura.
 
Máni Steinn é uma bólide. Atravessa iridescente um ponto ao outro da narrativa e fixa-se fora dela como um elemento de significação. Mesmo quando revelada sua identidade, a função que exerce acompanha sua forma inapreensível: é o eletricista que atua como técnico em iluminação para filmes. Note bem: conserva-se, na prática, a natureza artificial da sua luz, porque como Irma Vep, Máni Steinn é sombra. Uma vez em nós, é a força que nos impele para o desconhecido de nós e da ordem, sempre em projeção, capaz de transpor o escuro pela luminosidade absorvida que nos reconecta com os planos estéticos da vida.
 
No mundo habitado por Máni Steinn, a vida trivial é continuamente iluminada pela liberdade essencial ao ser no mundo; a estereotipia ou as raízes profundas de uma tradição tratadas com a dose de desdém merecida; até o último instante, quando a cidade é carcomida pela peste, nele repousa uma força atitudinal que não se confunde com a indiferença e não quer se reduzir ao sentido de compaixão; é o mesmo sentido que o acompanha quando descobrem sua vida íntima e tentam anulá-lo como o primeiro mal a ser extirpado para que vigore a ordem recém-estabelecida.
 
Este é um romance que reafirma a qualidade literária de Sjón que se fez conhecida entre nós em obras como Pela boca da baleia e A raposa sombria. Mas, se nesses romances as qualidades poéticas por vezes se sobrepunham à prosa, principalmente no primeiro livro, neste as duas dimensões convergem para um tipo de narrativa que nos seduz pelo que conta e como conta. É, certamente, um excelente reencontro para quem conheceu outros caminhos da ficção do escritor islandês, e a melhor porta de entrada para os leitores ainda não iniciados no seu universo criativo. Talvez isso explique o arrebatador interesse e reconhecimento alcançados dentro e fora do seu país. Interesse e reconhecimento que têm agora a nossa parte.
 
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Mánasteinn, o menino que nunca existiu, de Sjón
Pedro Monfort (Trad.)
Pontoedita, 2023
160p.


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