A trindade de Raymond Radiguet, uma radiografia da sua obra

Por José Homero

Raymond Radiguet, 1921. Foto: Man Ray


 
“Raymond Radiguet compartilha com Arthur Rimbaud o terrível privilégio de ser um fenômeno da literatura francesa.” Esta afirmação de Jean Cocteau no prefácio à edição dos textos inéditos do seu antigo protegido e amante sela uma associação que Radiguet suscitou da sua inoportuna e tempestuosa irrupção.
 
Nascido em 18 de junho de 1903 às margens do Marne, no Parc-Saint-Maur, abandonou a escola aos catorze anos para se dedicar à vagabundagem e à leitura dos clássicos franceses. Filho de um cartunista, aos quinze anos viajava a Paris para entregar os cartuns e esboços de seu pai Maurice ao L'Intransigeant, para o qual ele também logo colaboraria. Nas dependências do jornal conheceu André Salmon, cuja influência seria decisiva para o futuro escritor, ao introduzi-lo no círculo da boêmia e da vanguarda parisiense.
 
Apesar de sua fama de talento precoce — então decantado numa poesia que sugeria tanto o modelo cubista quanto o dadaísta —, a lenda de Radiguet só começaria com Jean Cocteau, que conheceu em 8 de junho de 1919, durante uma matinê poética em homenagem a Apollinaire na galeria L'Effort Moderne. Seduzido pelo adolescente de feições sensuais, marcado pelo negrume do seu olhar, sobrancelhas e cabelos, Cocteau decidiu fazer-se seu mecenas e colocar as primeiras brasas do fogo votivo do culto: convenceu um colecionador de autógrafos a adquirir a assinatura deste autor inédito, garantindo-lhe que ele seria o novo Rimbaud.
 
Tudo em Radiguet é jovem porque, ao contrário de Rimbaud, que acabou como traficante de armas e escravos sob o sol quente da África, morreu jovem e envolvido em um clima trágico: devido a um tifo mal curada. Seu próprio funeral foi simbólico, com o caixão, a carruagem e os cavalos brancos, como se fosse enterrada uma criança e não um adulto.
 
Se Cocteau colocou as brasas na caldeira, Bernard Grasset instituiu o culto. Pelos direitos de O diabo no corpo, ele ofereceu a Radiguet um estipêndio mensal de 1.500 francos e planejou uma campanha publicitária incomum. Recriou, como curta publicitário, a assinatura do contrato destacando o generoso adiantamento, a ser veiculado nos principais cinematógrafos; cartazes anunciando a publicação foram afixados; e antecipando as técnicas de marketing contemporâneas rotineiras, exibiram-se os volumes em enormes pilhas acompanhados por fotografias do autor feitas pelo célebre Man Ray; cenário semelhante ao que a Barnes & Nobles montou em suas livrarias no lançamento de Spare, do príncipe Harry. O corolário era a sentença: “O romancista mais jovem da França”. E também, “a obra-prima de um romancista de dezessete anos” — embora, estritamente falando, ele o tenha escrito quando estava quase na casa dos vinte. Graças a isso, o romancista mais jovem também se tornaria o mais lido, com mais de 100.000 exemplares vendidos algumas semanas após o lançamento do romance em 23 de março de 1923.
 
Apesar de como sua juventude e precocidade criativa foram exploradas para configurá-lo — e em grande medida instituí-lo — na trindade Rimbaud-Monsieur Bébé-jovem romancista, Radiguet paradoxalmente abjuraria o credo juvenil. De todas as encarnações simbólicas que a posteridade lhe atribui, talvez a mais importante seja aquela que se refere à sua primeira visita a Cocteau poucos dias depois de conhecê-lo.
 
A tradição conta que um monstro guardava a entrada de Tebas. Os viajantes que desejassem entrar tinham que resolver um enigma proposto por aquela criatura com corpo de leão e peito, braços e cabeça de mulher. O infeliz Édipo enfrentou a Esfinge e a derrotou com astúcia. O enigma, cuja solução até então era uma dor de cabeça — literalmente — para os de fora, era: “Qual é o ser dotado de uma só voz que se apoia sucessivamente sobre quatro, duas e três patas?”. A resposta, como o leitor educado bem sabe, é o homem, que quando bebê engatinha apoiado nos quatro membros, quando adulto anda ereto sobre os dois pés, e o velho se ajuda com uma bengala, a terceira perna. Não é simbólico que a primeira impressão que teria a pessoa que seria a presença mais importante na vida daquele indivíduo míope, tímido e imprevisível fosse a de uma criança com uma bengala? É verdade que ele não estava se passando por um velho, mas se vangloriando de dandismo, agora o anúncio do mordomo ressoa enigmaticamente: “Um menino com uma bengala vem vê-lo”. Quase um anúncio oracular. Mais alegórico é que esse jovem de bengala logo tenha sido visto como um Sr. Bebê, Monsieur Bébé, como os íntimos do polímata o chamavam. Assim, Radiguet tornou-se uma criatura multiforme que era um bebê, era jovem e também uma criatura com uma bengala. Não há talvez em todas essas configurações-encarnações uma espécie de emblema para compreender sua escrita?

Em um dos rascunhos de O diabo no corpo, ele anotou: “O amor transforma um homem de cinquenta anos de volta em um jovem de dezoito; uma decepção, por outro lado, quadruplica a idade do jovem. É o relato autobiográfico do amor adúltero entre o estudante do secundário François e Marthe, cujo noivo definha nas trincheiras” (Œuvres complètes, 2012). Qualificada por vários críticos como “sem alma”, “cínica” e “imoral”, parte da crítica e do público apenas deu conta do anedotário, sem se importar com o estilo, a penetração psicológica ou a tradição, tão francesa, de onde provinha. Ao reduzir esse romance enganosamente simples a uma confissão autobiográfica — uma acusação que seu autor previu, delimitando “Este pequeno romance de amor não é uma confissão” —, essa crítica convencional recorreu ao golpe baixo da fofoca para evitar o julgamento intelectual de apreciar uma obra em seus próprios termos.
 
Em seus próprios termos, é uma obra imoral. Não por adultério ou porque o sedutor é um jovem e sua vítima engana um bravo e patriota soldado que arrisca a vida nas trincheiras. Se olharmos para os acontecimentos biográficos, a transcrição verídica foi mais imoral: no romance que inspirou a trama ficcional, Alice Saunier era quase dez anos mais velha que Raymond, o que explica a insistência do pai fictício em acusar Marthe de “corrupção de menores”, uma falta que no tempo narrativo parece um exagero — ela tem 19 anos, o narrador anônimo, reconhecido como François, 15. No entanto, a imoralidade também não reside nisso.
 
O diabo no corpo é um romance de iniciação, mas no sentido que lhe é dado pela literatura francesa, clássica e romântica: iniciação à sedução, à decepção, ao cinismo. O crítico preguiçoso aponta A Princesa de Clèves como modelo, talvez pelo que seria o segundo romance do escritor, publicado postumamente, O baile do Conde d’Orgel. Ao contrário, há mais correspondências com duas histórias clássicas, cujos narradores principais são jovens iniciados no grande teatro do mundo: Sem amanhã de Vivant Denon e Adolphe de Benjamin Constant — a semelhança com esta foi bem notada por Cocteau, como se refere seu biógrafo Arnaud. Como nestes, o narrador se preocupa mais com a reflexão do que com os acontecimentos — escassos e, para nossa sensibilidade esgotada pelos excessos, nada lascivos.
 
Através da recapitulação em primeira pessoa e de uma perspectiva tão racional quanto cínica, a história do jovem desempregado e da esposa infiel torna-se um escrutínio das fases do amor e do processo de conquista, o que causa constrangimento, já que o narrador é um adolescente, não um amante experiente, embora, sim, saiba muito sobre Stendhal e Madame de Staël. Enquanto as narrativas de Constant — cuja inspiração foi, aliás, a relação entre ele e Madame de Staël — e Denon moldam o clichê do sedutor maduro que observa seu passado com filosofia e espírito moral, os dois romances de Radiguet são o escrutínio de um jovem que contempla o passado imediato com uma amargura e frieza estranhas à sua idade; qualidade que contribuiria para confirmar a maturidade do seu autor e aumentar os pesares pela sua perda precoce.
 
O protagonista desenvolve desde o início uma estratégia de aproximação, como um general que planejou subjugar seu inimigo contornando seus flancos, em vez de enfrentá-lo diretamente. No primeiro encontro, o ainda colegial zomba dos gostos do marido de Marthe, quem, como um bom burguês, o aconselhou a não ler Baudelaire. No primeiro encontro, quando a acompanha na escolha dos móveis e roupas para o quarto conjugal, rejeita as preferências dos dois e recomenda caprichosamente móveis e cores. “Ao fim desse dia exaustivo, felicitei-me pelo passo que havia dado. Móvel por móvel, conseguira transformar aquele casamento de amor — ou melhor, de amorico — num casamento de razão ou conveniência, em que a razão, porém, não tinha nenhum papel, um não encontrando no outro senão as vantagens de um casamento de amor.”¹ Significativa também é a devoção do adolescente aos poetas malditos — ele lê Baudelaire e traz para sua futura amante um livro de Rimbaud —, e seu desdém pelos estilos decorativos preferidos por Jacques e Marthe, Luís XV e japonês, respectivamente: é a rejeição da nova geração pelo gosto fossilizado do Antigo Regime e da burguesia — não esqueçamos que foram os Goncourt que introduziram na França os caprichos orientalistas.
 
Mais dois aspectos tornam esta “história de amor” uma narrativa cruel. Apesar da sua juventude, para o narrador o amor carece da aura romântica e, em vez de uma emoção subliminar, ele o percebe como egoísmo. “Mas o amor, que é o egoísmo a dois, sacrifica tudo a si, e vive de mentiras.” Intimamente ligado a essa convicção está o desejo de domínio. O amor inicial se transformará em ressentimento porque o adolescente odeia não ser virgem, o que lhe causará ciúmes retrospectivos, e ódio por Jacques, a quem ele deseja morto: “Havia momentos em que eu me assombrava com o mal de que era autor; havia outros em que dizia a mim mesmo que Marthe jamais puniria Jacques o suficiente pelo crime de me havê-la tomado virgem.”
 
Para além desses conflitos psíquicos, o motivo que mais claramente emerge desta pequena obra para triângulo de câmara é o da idade. Eis que numa passagem encontramos o menino com bengala que veio interrogar ou seduzir Cocteau — e nós com ele.
 
Um traço de maturidade é o desdobramento do narrador em relação aos fatos, um evidente distanciamento na história que oscila entre o relato dos fatos e a reflexão, o que implica um balanço entre o presente da narrativa e o presente da enunciação. Ele será o primeiro a perceber o aspecto adolescente de sua sensibilidade, entendendo a adolescência como um período crítico de transição, onde não se é mais criança, mas também não se é adulto. Ele sabe que sua aventura aconteceu com uma criança e que sua reação foi compatível com sua idade, mas nos adverte que em tal situação “mesmo um homem se veria em apuro”. E, no entanto, essa criatura transformada em homem pelas circunstâncias não hesita em se reconhecer criança por suas reações ou desejos, como obrigar Marthe a cometer atos absurdos apenas para se convencer de que ela o ama; algumas provas que não passam pela entrega física, mas pela submissão sentimental. O verdadeiro drama é que o amante trágico quer que sua amada lhe entregue seu imaginário, não apenas seu corpo.
 
História cruel que revela um temperamento cruel — ou apenas cínico, apenas desencantado precocemente? — e indica que Raymond nunca foi propriamente uma criança. Talvez, como indica o início do romance, as causas desse comportamento tenham sido o período extraordinário que viveu: os quatro anos de guerra (1914-1918) que para ele e sua geração foram um verdadeiro período de férias.
 
Desmistificando o culto da idade como mérito literário, Radiguet consolidou sua posição em diversos escritos. Assim, no prólogo de O baile…, publicado postumamente em 1924, chegou a questionar a comparação com Rimbaud, afirmando: “Importa-me a obra de Rimbaud, não a idade em que ele escreveu...”. E para enfatizar sua dissidência, esse jovem que havia surgido como dadaísta em 1918 passou a cultivar uma escrita deliberadamente anacrônica, de inspiração clássica. Como desafio à juvenília dominante, em uma edição da Littérature, a antiga revista dadaísta, declarou: “A senilidade é o que está na moda”. Seu estilo narrativo despreza a singularidade estilística em nome da retórica e cultiva o distanciamento e a transparência irônica, antecipando os estilos — ou a falta deles — de Albert Camus, Marguerite Duras e Michel Houellebecq de Extensão do domínio da luta.
 
Um século depois de O diabo no corpo e prestes a marcar também o centenário da morte de Radiguet (em 12 de dezembro de 2023), a obra desse Monsieur Bébé que foi Rimbaud que era um menino de bengala, mostra que sua Literatura não era uma tentativa, mas o legado maduro de um homem que resumiu brevemente sua existência, como a criatura de uma voz que durante um dia tem quatro patas, duas e três. Radiguet morreu amargamente sábio, sombrio, adulto com sorriso de enfant terrible qual caixão em que foi enterrado, branco mas coberto por um buquê de rosas vermelhas. 

Notas da tradução
1 Todas as citações de O diabo no corpo são da tradução de Paulo César de Souza (Penguin & Companhia das Letras, 2013).


* Este texto é a tradução livre para “La trinidad de Raymond Radiguet; una radiografía a su obra”, publicado inicialmente aqui, em Confabulario.

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