Sobrevivendo ao Livro do desassossego de Fernando Pessoa

Por Pablo Sol Mora

Fernando Pessoa numa rua do centro de Lisboa. Arquivo Casa Fernando Pessoa.

Em 2007, depois de alguns anos nos Estados Unidos e após terminar minha tese de doutorado, decidi dar-me um ano sabático para ler e escrever a meu contento. Eu vinha de um longo período de muito trabalho, durante o qual havia lido, sobretudo, com fins acadêmicos; na realidade, mais do que verdadeiramente ler, “trabalhava com”, típica deformação do filólogo. Desejava recuperar minha antiga liberdade de leitor, quando lia voraz e desordenadamente o que queria, sem nenhuma obrigação e sem nenhuma pressão — porque sim.
 
Com esse propósito retirei-me, frayluisianamente,1 a Coatepec, um povoado perto de Xalapa. Ali haviam vivido meus avós, em um velho casarão onde ninguém mais vivia (o mesmo em que agora, dez anos depois, escrevo estas linhas). Fiz alguns reparos, modernizei-o um pouco e tranquei-me a ler. Naturalmente, minha intenção era aproveitar o tempo para levar a cabo “grandes leituras”, ou seja, leituras de grandes obras que vinha postergando. Li, por exemplo, Proust e santo Agostinho, mas o ano foi marcado por duas leituras diametralmente opostas, ainda que com alguns pontos em comum: o Livro do desassossego de Fernando Pessoa e os Ensaios de Michel de Montaigne. Aqueles que os leram a fundo saberão que colocá-los lado a lado é algo quase esquizofrênico, mas assim se passou e ver-se-á que tem sua lógica.
 
O Livro do desassossego foi uma leitura largamente adiada, dessas — às quais já aludi — que intuímos que terão um grande impacto. Eu havia comprado, anos atrás, em uma viagem a Lisboa, na famosa livraria Bertrand, a edição em português de Richard Zenith (Livro do desassossego, Assírio & Alvim, Lisboa, 5ª ed., 2005). Não sabia português, nunca havia lido um livro nessa língua, mas estava decidido que esse iria ser o primeiro; na verdade, como disse Cervantes sobre Ariosto e o toscano, com dois oitavos de português pode-se ler Pessoa diretamente. É a edição com capa de papel, costurada (havia uma encadernada, muito mais cara), com página de rosto dourada, plastificada (no meu exemplar o plástico já se despregou das bordas), e a clássica foto de Pessoa, jornal e gabardina na mão, caminhando entre a multidão no centro de Lisboa.
 
Nossas leituras decisivas são aquelas que realizamos primeiro, na adolescência ou juventude. Creio que é fundamentalmente assim, mas também há exceções: autores e obras que lemos quando já somos adultos e leitores há um bom tempo e que nos obrigam a reorganizar tudo. Pessoa, para mim, teve esse efeito, pois nenhum escritor havia me impressionado tanto provavelmente desde Borges. O Livro do desassossego, em particular, cumpre plenamente o que Kafka exigia dos livros: ser como um golpe na cabeça, o machado que rompe o mar gelado dentro de nós. O caso de Pessoa, além disso, é único porque, diferentemente dos outros grandes escritores do século XX (Kafka, Joyce, Proust, Mann, Borges etc.), a maior parte de sua obra foi publicada tardiamente — a primeira edição do Livro do desassossego, em português, é somente de 1982 — e ainda não está estabelecida por completo. Seguimos descobrindo Pessoa, e o lugar que sua obra ocupará na literatura mundial moderna está ainda por definir-se.
 
O que é o Livro do desassossego? É uma obra inclassificável, que não pertence a gênero algum e cuja principal marca identitária talvez seja a forma do fragmento (já em carta a um amigo seu, o próprio Pessoa queixava-se do livro e, hamletianamente, dizia: “fragmentos, fragmentos, fragmentos”). Tal forma encontra-se no coração da poética de Pessoa, que escreveu bocados de muitas obras sem lograr terminá-las, o que, mais do que uma escolha, parece ser uma necessidade ou fatalidade inexorável. Pessoa, fragmentado nas múltiplas personalidades de seus heterônimos, não podia deixar de escrever fragmentariamente.
As partes que integram o Livro do desassossego são as desoladas reflexões filosóficas de Bernardo Soares, um burocrata — assistente de contabilidade — em um escritório em Lisboa. Pessoa, que ganhou a vida traduzindo cartas comerciais em escritórios muito parecidos com o de Soares, dizia que este era um “semi-heterônimo” porque “não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afetividade.” Mas essas duas coisas são muito importantes, pelo que se deve ter cuidado ao atribuir, sem delongas, o que foi escrito por Soares a Pessoa.
 
Ler o Livro do desassossego, adentrar seus “intervalos dolorosos” e “paisagens de chuva” (subtítulos que se repetem amiúde) acaba sendo, como queria seu autor, mais do que uma leitura, “um pesadelo voluptuoso”. Pouco a pouco, o desassossego do título — adequado como poucos — vai se apoderando do leitor, envolvendo-o e arrastando-o com ele, mas, como Pessoa gostava de recordar, só lemos o que já está escrito em nossa alma; se o desconforto de Soares encontrou tamanho eco no leitor moderno é porque nele se aninham, seja de forma diluída ou nebulosa, razões semelhantes de angústia.
 
Soares é um ínfimo burocrata, como o funcionário de companhia de seguros Franz Kafka ou o bancário Ettore Schmitz. É mais um desses trabalhadores anônimos que, sem sequer ter contato com o público, silenciosamente se consome atrás de uma mesa levando a cabo, ou não, um trabalho anódino. O mundo da burocracia é o pano de fundo do Livro do desassossego: mundo velho e mesquinho, cheio de horários fixos, relógios de ponto, tarefas minúsculas, ilusões perdidas, mesas cinzentas e ventiladores sujos que espantam moscas indulgentes. No entanto, este burocrata, por trás de sua aparência ordinária, pensa e sonha.
 
Os temas essenciais do Livro do desassossego são o tédio e aquilo que ao longo da obra dá-se o nome de o Mistério, que poderia ser resumido na desesperada pergunta formulada no fragmento 70: “O que está tudo isto a fazer aqui?” Soares sabe que, para as grandes questões da vida, jamais teremos uma resposta minimamente satisfatória. Não possui a tranquilidade nem o consolo da fé e isso o aproxima daquilo que ele chama a Decadência (o burocrata lisboeta vem a ser como um primo pobre e mais lúcido do Des Esseintes de Huysmans), compreendendo-a como “a perda total da inconsciência”. A desgraça de Soares, no fundo, é a mesma do dostoievskiano homem do subsolo: uma consciência demasiado lúcida, uma hiperconsciência que, em seu caso, como no de seu remoto antepassado Hamlet, acaba por conduzi-lo à inação.
 
Não creio ter lido um livro que provoque maior sensação de desamparo e desolação do que este (e é preciso sentir-se muito infeliz para escrever a linha: “Invejo a todas as pessoas o não serem eu”). Soares reúne e maximiza sensações e ideias — ideias sentidas seria mais exato — que são a marca identitária do homem moderno: a orfandade metafísica, a solidão existencial, a alienação pessoal, a lucidez impotente, o tédio vital e a paralisia. Em poucos trechos se constata melhor seu sofrimento do que naqueles que tratam de sua dissolução pessoal, do desvanecimento do eu e a experiência radical da alteridade (a percebida dentro de si mesmo): “Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha imaginação e o que contém, a minha personalidade, tudo se me evapora. Continuamente sinto que fui outro, que senti outro, que pensei outro. Aquilo a que assisto é um espetáculo com outro cenário. E aquilo a que assisto sou eu. [...] Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu?” Talvez a melhor imagem para compreender Pessoa seja concebê-lo como uma obra teatral na qual ele mesmo é, simultaneamente, a obra, os atores, o público e o cenário.
 
Ao mesmo tempo em que lia o Livro do desassossego, lia a antologia Poesia do eu, também organizada por Richard Zenith. Com ela, lendo uma tarde os “Dois excertos de odes” de Álvaro de Campos, tive uma das mais intensas experiências de leitura. Estive completamente imerso em Pessoa por várias semanas, deslumbrado, mal saindo de casa e, de repente, ao chegar aos versos finais da segunda ode (“Olha-me em silêncio e em segredo e pergunta a ti própria / — Tu que me conheces — quem eu sou...”) irrompi em choro. Não sou nada inclinado ao pranto, mas naquela ocasião foi como se todo o sofrimento lido em Pessoa durante aquelas semanas houvesse se acumulado dentro de mim e rebentado. Senti, creio, uma compaixão genuína, mas não só por Pessoa, como também pelo sofrimento humano nele personificado. Há autores que parecem alargar, para todos os homens, os limites da solidão e da angústia, e Pessoa é um deles. Há livros que não lemos, mas sobrevivemos a eles, e o Livro do desassossego é um. Muitas vezes, mais tarde, eu o li e reli. Apesar de ser bastante estranho ao meu temperamento (e as afinidades que temos com os escritores que muito lemos acabam sendo questão de temperamento), nunca consigo lê-lo sem estremecer.  
 
Um autêntico estremecimento, de outra natureza, eu senti em uma tórrida manhã de agosto na Biblioteca Nacional de Portugal acompanhado de meu amigo colombiano Jerónimo Pizarro, que trabalhava na edição das obras completas de Pessoa. Sem nada me dizer, conhecendo minha incipiente devoção pessoana, Jerónimo me levou ao Fundo Reservado, vigiado apenas por uma senhora sonolenta. Foi até umas caixas, colocou-as sobre a mesa e, de súbito, começou a tirar e me passar uma série de cadernos, folhas soltas e, literalmente, guardanapos de café rabiscados com poemas, “para ver se eu entendia alguma coisa”. Naturalmente, eram os conteúdos da famosa arca (quando morreu, os familiares de Pessoa encontraram um baú com mais de trinta mil papéis, seu legado praticamente inédito), os originais do poeta, de seu próprio punho e letra, do Livro do desassossego e outros textos. Foi como se a um crente jogassem um pedaço de pano e dissessem: “Vê, o santo sudário!” Aquela manhã saí da Biblioteca para o ardente verão lisboeta em estado de êxtase.

Notas
1 Referência ao escritor espanhol Fray Luis de León (1527-1591).


Tradução livre de Guilherme Mazzafera para “Sobreviviendo al Libro del desasosiego de Fernando pessoa, publicado aqui, em Letras Libres, a 29 jun. 2022.
 

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