As visitas que hoje estamos, de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira

Por Pedro Fernandes





O romance é um repositório de vozes. Essa qualidade permite que essa forma narrativa possa assumir infinitas feições, algumas delas, assimiladas a partir de linguagens ou de práticas linguageiras distintas da literatura, outras, a partir do exímio tratamento estético burilado na forja do romancista. No primeiro caso, encontramos os romances que se alimentam do tecido social e, no segundo, os que se alimentam da imaginação criativa e por vezes antecipam determinada experiência do mundo exterior. Nos dois casos, entretanto, a forma ao mesmo tempo que se renova constitui lentamente uma história que é parte indissociável na cultura, na formação do pensamento, no curso das ideologias e na milenar arte de narrar.
 
Costumamos distinguir Ulysses, de James Joyce, como o ponto mais radical ou a virada na história da forma romanesca. É verdade que os modelos mais tradicionais do romance nunca deixaram de existir e existirão enquanto encontrar um leitor neles interessado. Mas, também é verdade que, as tentativas de superar o feito do escritor irlandês se tornaram em ponto de inflexão para inscrever determinada obra no âmbito da própria literatura. E quando dizemos superar não pensamos na simples ideia de uma competição — olímpica, nesse caso —, mas de encontrar no universo de possibilidades outra mais significativa e expressiva de narrar.
 
O primeiro livro em prosa de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira se inscreve — propositalmente ou não e isso não nos interessa — no interior desse grupo que no Brasil constitui uma das melhores linhas de força da nossa literatura. No nosso caso, trata-se de uma linha que se inaugura com a obra de Machado de Assis e ganha contornos com escritores como Lúcio Cardoso, Cornélio Penna, Clarice Lispector, Autran Dourado, João Guimarães Rosa — para citar alguns dos mais proeminentes. Uma linha que designaríamos como interessada a um só tempo pela sondagem da interioridade humana e pela renovação dos protocolos de composição e estruturação da narrativa, que, também no plano universal, é anterior a James Joyce e se confunde com a própria história do romance, que o digam Lawrence Sterne, Xavier de Maistre, Ramón María Del Valle-Inclán…
 
Essa qualidade é notável em as visitas que hoje estamos, sabendo que o escritor tanto recorre à noção basilar da forma romanesca quanto esgarça e questiona seus limites propondo uma obra infinita. Poderíamos designar o livro como um arquivo de tudo. Afinal, nele encontramos, formas narrativas diversas, como o conto, o microconto, outros gêneros literários, como a poesia e o teatro, outros gêneros textuais, como o anúncio, a pregação, a anedota, a propaganda, além das variações discursivas notáveis no interior desses gêneros ou das próprias formas, como no caso das narrativas o tratamento diverso do ponto de vista. Soma-se aos procedimentos verbais, os procedimentos visuais, seja a inserção da fotografia, seja a ordenação e a disposição gráfica do texto.
 
Mas, existe unidade na diversidade. Na primeira narrativa, “a gaveta direita”, cuja linguagem emula a da narrativa de João Guimarães Rosa — explicitamente, como se mostra na epígrafe do texto — é o grande novelo a partir do qual se desfia a sequência do livro. Aqui, uma narradora repisa a partir de um monólogo interior constantemente perturbado pelo diálogo os pontos cardinais da sua vida e da sua família. Será essa história possível que encontraremos nos fragmentos posteriores, em nada e ao mesmo tempo sua continuidade. Em nada porque não existe enredo em as visitas… e ao mesmo tempo porque os dramas diversos circulam sempre em torno das mesmas circunstâncias: os destinos falhados e alheados, a vida espoliada, tudo quase sempre entrevisto por uma memória prolapsada. Também o sentido de arquivo, patente no termo principal do título, abre-se como o elemento organizador do livro, considerando-se, ainda a natureza do que se guarda, o interior e a intimidade. Há um mundo exterior que se registra nessa gaveta, mas este é sempre mediado por um suporte, um dispositivo de memória, nunca coletivo, ainda que muitas das circunstâncias resultem universais: o bem, o mal, o sagrado, o profano, a traição, o ódio, o amor, o desejo, o engano, a morte, a loucura, a usura, a inveja, a ganância, o medo, a esperança, a inocência, a esperteza, a fé, a descrença, a negação, o niilismo…
 
O trânsito do leitor por esse arquivo pode se fazer também diversamente. Seguindo livremente sem querer identificar um princípio organizativo, movimento que nos parece mais interessante e que descreveríamos, à maneira de uma referência do livro — o fragmento “mãe, o que é o amor” — como um borboletear, ou seja, cada fragmento é ora um episódio onde cabe um momento ou uma vida inteira, sempre fugaz, ora um descanso, a pausa necessária na agonia de zanzar. Outra alternativa é o leitor coordenar uma ordem na variedade de fragmentos do livro; uma tarefa que talvez resulte em fracasso, mas não sem antes identificar certos núcleos de interesse: os amores mal ou não correspondidos, as misérias, as violências, as vidas entre o luxo e o lixo, o impasse entre tradição e modernidade e, subterraneamente, os volteios com o ofício de contar.
 
Numa ou noutra possibilidade de leitura, restará a percepção da vida como um fluxo de repetições que mesmo assim não fazem dos acontecimentos uma mesma coisa, sobretudo porque o mundo se organiza por uma maneira distinta de se compreender. Em certa passagem lemos: “é muito difícil, na vida, alguém enxergar os fatos vividos por inteiro, e antes deles mesmos”. Uma frase que parece justificar a escolha de Antonio Geraldo por uma poética do fragmento. Ou seja, a variedade do livro é tanto a sortimento de compreensão das coisas, limitada à nossa profusão das percepções individuais, quanto uma maneira de significar como o vivido nunca pode se revelar em sua totalidade.
 
A vida é, entretanto, danação, dor e morte, salpicada de pequenas alegrias e alguma beleza. E o livro em leitura entrega-se à correnteza da própria vida sem querer pontuar motivos, explicar fundamentos, como se suas fronteiras fossem as de uma imensa bateia a partir da qual o escritor deixa filtrar entre uma preciosidade e outra também o defeituoso, o imperfeito, o vulgar. Mas, ainda que na extensa galeria de personagens ou vozes que circulam pelo mundo de as visitas que hoje estamos prevaleçam os espoliados, os marginais, a soma total da existência resulta numa grande comunidade de pobres diabos, visto que todos somos vítimas dos nossos próprios interesses, independentemente se miúdos ou graúdos.
 
Pela repetição alcançamos outra síntese possível para o livro: dois blocos de textos, um derivado do outro — “os olhos de jussara” e os restos do que seria uma longa peça de teatro que condensa parte dos motivos até agora evidenciados e acrescenta outros. A repetição em as visitas… é manifesta sempre por deriva e acréscimo, seja de outra perspectiva, seja de outra circunstância, seja ainda de outro aspecto, questão ou interesse. O que resta do manuscrito do texto teatral é uma história circular de traição, ódio e reconciliação, circunscrita entre sofrimento e morte. Revezam-se quatro personagens: uma mãe há muito separada da filha que se envolveu amorosa e sexualmente com o pai com quem teve duas filhas, sendo estas as outras figuras em cena, retorna em estado terminal para pedir perdão e abrigo para morrer. No desenvolvimento do drama, entramos em contato com uma ordem social em crise e desagregação (como o mundo em ruínas no restante dos fragmentos), a situação de cada um, seus segredos e o refazimento do motivo essencial, o incesto, ainda que essa conduta sexual, sem quaisquer apelos morais, assuma dupla leitura, uma vez se demonstrar que o enlace pai e filha é de comum interesse dos dois envolvidos.
 
Os restos do que seria uma peça irrompidos sequencialmente em três momentos do arquivo, entretanto, não funciona como uma linha capaz de cerzir os fragmentos. Mas, dentre as diversas retomadas das questões propostas em parte dos outros textos, encontramos a ideia da possibilidade. Esta, sim, pode funcionar como alinhavo para os materiais aqui apresentados. Cada um, revela a narrativa possível, a história que se quer contar mas é continuamente perturbada, seja por um desvio de tópico, seja pela intromissão de outro acontecimento, seja ainda por uma crise de memória, como evidenciamos, capaz mesmo de toldar se o fiapo que restou aconteceu ou também parte de um inventário de invenções.
 
Essa instabilidade que impede a progressão de um narrado e inviabiliza o funcionamento de uma narrativa encontra respaldo não apenas na estrutura fragmentar, nos vários episódios em suspenso, ou no que chamamos de ideia do possível. O que diremos, entretanto, está longe de ser a resposta definitiva para o livro de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira e é apenas uma leitura possível que encontra um respaldo na própria materialidade dos textos, afinal, o tipo de literatura aqui praticado considera o mundo verbal um todo coerente dentro de sua estrutura caótica. E, claro, as respostas que, como leitores, procuramos na literatura estão nela própria.
 
É assim que lemos o fragmento “sofismas diários”, epigrafado por uma passagem do conto “O espelho”, de Machado de Assis como uma chave para o próprio livro, principalmente quando regressamos ao poema de abertura ou ainda o material que lemos até agora. A história possível nesse texto é a de um suicida que em vida foi autor da referida peça sobre a qual falamos, de outra parafernália de escritos distribuídos por amigos diversos. Isto é, alcançaríamos assim outra vez a noção de arquivo até agora perseguida.
 
Escritor medíocre ou figura marginal, esse ator ganhava a vida cumprindo esquetes urbanos como sombra até um dia ser atormentado, física ou imaginariamente, por outra sombra/ator que o intimida e mais adiante o obriga a que se projete autofagicamente sobre sua própria existência, o que resulta no suicídio. Ora, não apenas a peça essencial nesse envelope de notas, essa circunstância abre para uma série de motivos complexos e caros para a arte da narrativa, sendo alguns deles, o princípio básico da ficção, a mimesis como a mentira que engole a verdade, a dissimulação, o autor como sombra do escritor e outra vez o dilema da morte do autor, se a associação ator-autor estiver correta no impasse encenado em “sofismas diários” do ator-sombra-suicídio.
 
Voltemos ao texto de Machado de Assis. Depois de angariar um posto na milícia imperial, Jacobina é convidado para uma temporada no sítio de sua tia, quem lhe oferece um imponente espelho. Na nova casa, o jovem é continuamente interpelado por sua posição militar, deixando de ser, de alguma forma, o Jacobina para ser o que se vislumbra pela sua farda. Mais tarde sozinho e tomado por um profundo vazio e angústia de si vê-se difuso diante do espelho, condição que se modifica apenas quando se apresenta trajando a roupa da guarda. O acontecimento narrado pelo próprio personagem a fim de provar para um grupo de amigos que discutiam sobre a essência do homem e que para Jacobina se demonstra com pelo menos dupla camada, a que vemos e a que se oculta ou a que nos é atribuída, é ainda motivo para uma variedade de duplicações, entre elas, entre o real e o imaginado, entre quem somos quando nos vemos e quem somos quando os outros nos veem.
 
Pelo menos esse duplo movimento de duplos se opera em a visita que hoje estamos. O mundo que aí se mostra é olhado por uma mobilidade de perspectivas: a de quem vê e a de quem é visto, além, é claro, de se confundir o real e o imaginado. Sustentando a leitura dos fragmentos como produto de um ator/escritor, os impasses entre imaginação e acontecido já são de um todo evidentes porque nada garante que as múltiplas vozes não sejam emulação de uma única voz, a dele mesmo. Mas, existe ainda outro agravante capaz de ampliar a complexidade das coisas: quem alcança os papéis do ator/escritor é o autor/escritor, quem também não é, jamais, figura da mais confiável, afinal, ausente o autor dos escritos, sua autoridade confere o governo das anotações. A essa altura, outra questão se impõe: quem é ou onde está o autor? Uma pergunta que como o eco de câmara ou multiplicação numa sala de espelhos resulta impossível de categorizar, restando apenas nos contentar com a voz artificializada pela estrutura verbal da narrativa. Se não fizemos isso, corremos o mesmo risco do mesmo destino de Eusébio o ator/sombra de “sofismas diários”.
 
É dele, e propriamente porque assinado por ele, um sofisma que poderíamos tomar, sempre de maneira audaciosa, como síntese para este objeto que, graças a natureza plástica da forma, chamamos de romance: “Que grande livro aquele! Ao terminar a leitura, a certeza de que é obra inteiramente inacabada.” O escritor brasileiro não compõe nenhum engenho capaz de se inscrever como marca indelével na história do romance, entretanto, a visita que hoje estamos amplia significativamente os limites da forma em língua portuguesa e a maneira como nos relacionamos com a arte de narrar. O mundo não é uniforme. E se as situações, sempre as mesmas, repetidas em puzzle, dizem o contrário, o olhar, que realmente organiza o mundo, é diverso, parcelar, informe. O olhar se molda pela maneira como nos relacionamos com a cultura, as ideologias, ainda que solto da comunidade, ainda que autocentrado. Ao redizer isso e, principalmente, a maneira como rediz, faz deste livro um dos objetos literários mais interessantes na literatura brasileira recente.


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As visitas que hoje estamos
Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira
Iluminuras, 2020
494 p.

 

Comentários

Muito obrigado pela generosa leitura, Pedro. Abraço, Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira.

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