Nadine Gordimer: romances contra o apartheid

Por Salustiano Martín

Nadine Gordimer. Foto: Ulf Andersen


 
Uma reflexão narrativa contra a opressão
 
As obras de Gordimer não podem ser separadas das condições sociopolíticas em que o seu país se debate. E mais: dependem minuciosamente dessas condições. A mulher Gordimer e a escritora Gordimer são a mesma pessoa. Ambas defenderam firmemente os escritores negros do seu país, comprometidos com a luta contra o apartheid e que sofrem frequentes censuras, prisões e exílios. Ambas apoiaram, com a sua atividade, a Frente Democrática Unida (que teve muitos dos seus líderes presos por “traição ao Estado”), na qual, após os massacres de Soweto de 1976 e o ​​subsequente crescimento da luta armada, vieram reunir todos os grupos na luta contra a segregação na África do Sul.
 
Embora Gordimer afirmasse que começou a escrever estimulada pelo sentido do maravilhoso, pelo sentimento do mistério da vida, e também pelo caos dessa mesma vida, a verdade é que, no fundo, é sobretudo este último (o caos da África do Sul) o motivo que irremediavelmente se sobressaiu dos seus argumentos. Ela continuou, é claro, a perceber com uma alegria inalienável o sopro quente da natureza ou a maravilha vital dos seres humanos solidários, mas vivendo na África do Sul apenas isso é insuficiente para suas obras, pois, como ela mesma disse, “a arte está do lado dos oprimidos”.
 
Assim, com exceção do seu primeiro romance, The Lying Days, ainda marcado por uma emoção adolescente, típica da personagem feminina protagonista da sua trama, ainda não plenamente consciente da limitação moral do cidadão branco da África do Sul, toda a sua obra é inteiramente dedicada à elucidação da perigosa armadilha sul-africana. E, portanto, de forma consistente com esse compromisso elucidativo, pelo menos três dos seus livros foram proibidos na África do Sul: Occasion for Loving, O falecido mundo burguês (que ficou proibido durante dez anos) e A Guest of Honor. Em suma, como afirma a própria Gordimer, “a política é a personalidade na África do Sul”, “um conglomerado de circunstâncias e atitudes herdadas”.
 
Neste sentido, é de salientar a posição firme que ela e os seus companheiros escritores brancos mantiveram: é preciso lutar contra a segregação, com a escrita e com a ação política, e isso deve ser feito a partir de dentro do país, recusando-se decididamente a armadilha do exílio. Deveriam lutar internamente e os seus textos deviam servir para compreender melhor essa luta. É desse modo que a produção literária dos brancos que lutam contra o apartheid se fez extraordinária; é claro que muitas vezes se paga caro pelo desafio: o poeta Jeremy Cronin permaneceu na prisão por sete anos (1976-1983), compondo oralmente e memorizando seus poemas; o mesmo que o romancista Breyten Breytenbach (autor das Confissões verídicas de um terrorista albino), que também escreveu inúmeros contos enquanto estava preso; e ainda o romancista André Brink, que viu frequentemente os seus livros serem banidos.
 
Os oito romances aqui selecionados expressam uma trajetória infalível pelos caminhos da militância contra o apartheid, uma trajetória que, longe de vacilar, torna-se cada vez mais complexa literária, existencial e politicamente comprometida. O que já aparece em Um mundo de estranhos, a inevitável interação entre a experiência pessoal e o enquadramento sociopolítico, cresce em simbolismo e em capacidade analítica, tornando-se mais agudamente transcendente em relação à realidade sul-africana; isto é, intervindo nela, contribuindo sem dúvida para a compreensão dos seus mecanismos de funcionamento, forçando soluções. Nesse caminho, que se projeta de dentro para fora e de fora para dentro da intimidade dos personagens e na realidade civil que lhes é imposta, Gordimer escreveu talvez os melhores romances políticos dos últimos 25 anos.
 
Num “mundo de estranhos”
 
Segundo romance de Gordimer, em Um mundo de estranhos testemunhamos a tomada de consciência de um inglês branco que chegou à África do Sul por motivos editoriais e que vem de um mundo em que a solidariedade parece apenas um jogo, onde a dor dos outros não parece como qualquer coisa que não seja um bordão usado para atrair a atenção. Toby Hood, descendente de uma família de esquerda, está cansado deste jogo: o seu mundo sempre foi o do progressismo sofisticado, onde a mão estendida para os supostos sofrimentos dos outros acaba por parecer uma pose insuportável. Ele apenas viu os restos desbotados daquele mundo que, dizem, devemos ajudar a salvar da infâmia: o cenário aparentemente terrível e colorido dos exilados.
 
Agora, Toby Hood está longe daquele círculo estreito em que cresceu. E decide ser ele mesmo, livre de amarras e limitações ideológicas. Ele decide que ninguém (ou seja, nem sua família) irá impor-lhe um certo modo de vida (ou seja, o protesto compulsivo contra os abusos de poder). No entanto, esta não limitação ideológica ou emocional acaba por jogá-lo num beco sem saída: os seus desenvoltos movimentos através da realidade sul-africana levam-no a uma espécie de esquizofrenia insustentável entre o mundo dos brancos (ao qual pertence e do qual gostaria de desfrutar sem grandes implicações morais) e o mundo dos negros (alguns dos seus melhores amigos o são). Mundos irreconciliáveis; mundos física e moralmente incompatíveis; mundos legal e compulsoriamente separados. Finalmente, a realidade se impõe: é impossível viver na África do Sul e não tomar partido. Toby Hood decide ficar e lutar pelos direitos de seus amigos negros.
 
O importante desta jornada rumo à consciência, que Toby Hood narra na primeira pessoa (com a consequente visão psicológica das suas próprias razões existenciais), é que não se deve aos seus contatos especiais com as pessoas que se opuseram ao apartheid (que praticamente não existem), ou a que se dê conta do mal específico ou da estupidez moral dos segregacionistas brancos, mas apenas a compreensão da futilidade da vida neste mundo desfavorecido. Quando seu amigo Steven Sitole (um negro que permanece fora da luta política contra a segregação) morre, Toby Hood finalmente entende o tipo de mundo miserável pelo qual ele estava passando na ignorância: “O que eu sabia sobre Steven, que viveu e morreu uma vida da qual eu, no máximo, era um mero observador? Mas ele era meu irmão. Uma vida sem sentido, sem esperança, sem dignidade, uma vida de um eunuco espiritual, marcada pelo homem branco, uma vida da qual ele fez, com um movimento do pulso, a única coisa possível; um gesto. Um gesto.”¹
 
A (im)possível “oportunidade de amar”
 
O romance seguinte, Occasion for Loving, continua a reflexão a partir do ponto deixado em Um mundo de estranhos. Assim, a impossível realização pessoal na África do Sul do apartheid é mais uma vez levantada, se não for levado em consideração o tipo de universo dividido em que esta realização deve ocorrer. Como se conclui do discurso narrativo, a solução pode estar em integrar, na construção do íntimo, a luta política contra a divisão social e a luta psicológica e moral contra a própria consciência anestesiada.
 
No romance, somos mais uma vez confrontados com a óbvia conclusão que define o sistema: onde quer que se vá, independentemente da atividade em questão, será impossível livrar-se da miserável realidade da segregação e sempre se permanecerá um solitário ao se deparar com ilegalidade. Uma legislação que destrói as consciências livres mina irremediavelmente os fundamentos da personalidade e impede a circulação irrestrita de emoções e sentimentos. Aqui, uma realidade tão íntima como a relação amorosa é destruída (e com ela os atores que a realizam) pela realidade sociopolítica do país: um homem negro e uma mulher branca não podem se amar. Pois a renúncia temporária à autodefesa contra o desenvolvimento emocional desimpedido só pode causar decepções, sufocamentos sem saída.
 
Mas como partir, desde o início, de uma base tão inóspita, negando qualquer possibilidade de desenvolver, não ainda um discurso político livre, mas mesmo apenas um sentimento amoroso não deformado pela legalidade vigente? Essa é a pergunta desoladora que o romance nos faz. Quatro em cada cinco pessoas na África do Sul são negras; pois bem, de nós para eles (lamenta o discurso branco), além da dialética senhor-escravo, não há possibilidade de uma relação adulta tranquila. Talvez, então, no final do romance, o melhor fosse dedicar-se a explodir usinas, como aponta um personagem. Tal é, sem dúvida, o caminho já escolhido por outros. A compreensão da impossibilidade de uma vida verdadeira nas circunstâncias da África do Sul, que já se concluía a partir da experiência de Toby Hood, leva à emergência de um discurso revolucionário e a assunção paralela de um decidido compromisso militante.
 
Em Occasion for Loving, vemos também a dupla marginalização da mulher negra: como negra ela sofre o desprezo do mundo branco, como mulher ela é privada até mesmo da liberdade de movimento que seus semelhantes possuem. A mulher branca, liberta de alguns dos preconceitos ultrapassados ​​da moralidade sexual ocidental (sexista), tem outra forma de realização pessoal, embora ainda mais ou menos subordinada aos homens. A mulher negra não tem nada para fazer: sua existência é um acúmulo de infortúnios e seu futuro é marcado antecipadamente pelos dois discursos repressivos que constroem seu mundo. Assim, o intelectual negro tende a encontrar na mulher branca o mundo sofisticado que sua mulher (negra) não pode lhe oferecer: “Como a maioria das esposas africanas, ela ficava em casa quando ele saía à noite”; “não conseguia falar com ela”; “toda vez que se dignava a olhar para ela, via que a esposa estava um pouco mais atrás”; “aceitava o que qualquer empregada doméstica ou cozinheira aceitaria: que uma mulher negra não pode esperar viver permanentemente com seu homem e filhos, que devia se mudar e viver onde e como a pobreza e o desamparo permitiam”.
 
A vida e a morte
 
Assim, como vemos, chegamos à própria fronteira da luta armada e do mundo da clandestinidade. Em O falecido mundo burguês,2 uma mulher narra (em primeira pessoa, portanto) a vida (já extinta) de Max, seu marido, incapaz de ser honesto com o mundo de brancos privilegiados ao qual pertence e empurrado para a margem por aqueles a quem gostaria de servir para se fazer perdoar a culpa de ser branco. O desespero pela falta de sentido da sua própria vida e da vida dos outros, num mundo aparentemente sem outra solução senão ser devastado por bombas de purificação, levou Max à autoimolação.
 
Ou seja, agora numa perspectiva de classe, somada à onipresente infâmia da segregação, a impossibilidade de permanecer intangível por muito tempo se mostra novamente através do colapso moral e ideológico das famílias conservadoras: há sempre algum descendente do poder branco em que a esquizofrenia moral cria uma crise; o resultado é atividade armada, as bombas. A sociedade em que se vive impõe, apesar de tudo, as suas regras. Entre a imoralidade e o terrorismo, soluções como o suicídio ou o medo (sempre medo) de não saber defender-se das armadilhas da realidade brilham com luz própria. Diante da escolha, os personagens tentam fugir de sua responsabilidade. Quando a loucura da desordem institucionalizada os lança nas profundezas da traição, a única coisa que resta a fazer é sair do caminho: “Nas suas tentativas de amar até perdeu o respeito por si mesmo, com a sua traição. Arriscou tudo por eles e perdeu tudo. Deu sua vida de todas as maneiras possíveis.”
 
Compromisso político
 
Até agora, os romances de Gordimer tinham desenhado a sua parábola reflexiva sobre a impossibilidade de realização espiritual, num mundo consumido pela podridão desenfreada de leis e costumes miseráveis. Tratava-se, sem dúvida, não apenas reflexões sobre a existência humana nas condições infelizes da África do Sul, mas também, e sobretudo, fábulas sobre a necessidade de se empenhar na luta contra o apartheid. A neutralidade esquizofrênica de Tobias Hood é impossível, a vida vacilante dos brancos liberais não leva a lugar nenhum: finalmente, o desespero que a impotência produz lança homens e mulheres na luta terrorista. Portanto, são romances cuja lição final pode ser considerada política, escritos para proporcionar aos leitores sul-africanos brancos uma reflexão moral e política consistente. Não só o discurso narrativo oferecido, mas o papel que com eles se pretende, tem um aspecto civil militante.
 
É, no entanto, no seu quinto romance, A Guest of Honor, que Gordimer, aprofundando o seu compromisso africano, nos apresenta uma questão estritamente política. E faz, precisamente, através de um argumento com o qual abandona a dinâmica sul-africana para pairar sobre todo o compromisso pan-africano, anticolonial, socialista e multirracial. O que acontece depois da independência de um país africano, ou seja, quando os brancos, e não apenas os da metrópole, entregam as rédeas do poder?
 
Narrado na terceira pessoa com foco mais ou menos fixo, assistimos à revelação dos perigos que ameaçam os novos países africanos. Conseguiram libertar-se do domínio da metrópole branca, pondo fim ao colonialismo opressivo e explorador, e fizeram-no com um discurso revolucionário que fala do poder do povo e da justiça distributiva. Mas, o caminho, predeterminado pela teoria, é torcido; o neocolonialismo crava as suas garras no novo país, a corrupção dos novos hierarcas faz ouvidos moucos ao sofrimento popular, as empresas econômicas brancas continuam o seu trabalho de pilhagem e o Ocidente vigia para que a presa não escape. As contradições explodem na forma de uma sangrenta guerra civil, que ameaça fazer perder o poder o presidente e, com ele, as multinacionais da metrópole. Resultado final sarcástico: o antigo estado colonizador envia tropas ao antigo país colonizado para manter no poder o presidente negro que outrora lutara contra a colonização. Parábola política que apresenta sem qualquer contemplação, sem falsas esperanças, o futuro problemático dos Estados negros livres e dos seus companheiros de viagem.
 
Assim, a visão de Gordimer ganha amplitude geopolítica e os problemas abrem um novo horizonte de complexidades: reformismo (capitalista) ou revolução (socialista), neutralismo ou dependência de capitais ocidentais, democracia ou ditadura de partido único... Os problemas sociais, políticos e econômicos, enfim, as questões levantadas são muitas e muito graves e, no meio, a vida das pessoas envolvidas flui sem negar a sua própria individualidade. Além disso, a existência íntima dos atores do drama africano é parte essencial do desenvolvimento das dificuldades enfrentadas e das soluções delineadas na vida civil. Também aqui, como nos romances anteriores, as armadilhas que devem ser superadas são finalmente impostas e as relações pessoais são irremediavelmente agredidas pela força dos acontecimentos que ocorrem ao seu redor. O resultado é mais uma vez a destruição do personagem protagonista.
 
Infortúnio sem apoio
 
O sexto romance, The Conservationist, retorna ao drama sul-africano e é, na verdade, o primeiro e quase único romance de Gordimer cujo personagem principal é um conservador. Por esse motivo, o romance não se desenvolve para fora, através de uma floresta emaranhada de acontecimentos, como os anteriores ou os subsequentes, mas sim para o interior, fazendo-se mais intenso do que extenso. Trata-se, assim, de um romance algo poético, construído segundo um ritmo lírico de recorrências temáticas e repetições de fragmentos sintomáticos. A narrativa do romance se passa, em grande parte, dentro da própria consciência reflexiva de seu protagonista (em inúmeras ocasiões uma espécie de monólogo interno, ora em primeira ora em terceira voz, se mistura com a narração de fatos puros, que desliza de um tema para outro de acordo com as idas e vindas de seu pensamento), dividida entre a memória problemática de uma ex-amante da esquerda que sempre zombava de suas presunções (conservadoras de sua estabilidade sem se sujar) e um filho cada vez mais distanciado do mundo de seu pai, e de algumas realidades, pessoais e social, que entende estarem indissociavelmente ligados apesar de tudo, e que gostaria de preservar. O romance, é claro, dada esta situação, cresce em direção à neurose da angústia e à dissolução interior.
 
Embora um leitor regular de Gordimer e da problemática sul-africana encontre neste romance um contributo meditativo consistente, capaz de provocar reflexões políticas de longo alcance, a verdade é que os problemas existenciais do protagonista são tratados por Gordimer como interessantes em si mesmos: enquanto os entendemos, se projetam em nós simplesmente como pensamentos e sentimentos de um homem que vivencia um processo íntimo de desapego e solidão. Mehring optou, face à insana realidade da África do Sul, refugiar-se na sua vida privada e solitária, em última análise, alheia não apenas aos problemas dos negros, mas também, de certa forma, em relação aos seus próprios colegas de classe. É precisamente este deambular desapegado entre os dois mundos, talvez sem se envolver muito em nenhum deles, que constrói o núcleo central do romance.
 
A reflexão crítica negativa sobre este tipo de vida permanece por trás do discurso narrativo e não nos é oferecida como um discurso pronto. São a história que nos é contada e o discurso interior da personagem, a ela entrelaçada através de temas como o amor e a morte, o capitalismo e a conservação, a solidão face aos outros e o apelo da terra, que canalizam, com primorosa capacidade denotativa e conotativa, as deduções políticas do leitor: o não envolvimento acaba levando a uma espécie de desastre interno feito de irresponsabilidade e de menosprezo não assumido.
 
Combate político e realização pessoal
 
A filha de Burger significa, no discurso narrativo-militante de Nadine Gordimer, o marco fundamental. É também um processo de consciência, um romance de aprendizagem, e é, mais uma vez, um romance político no sentido forte, talvez o melhor dessa escritora.
 
Como em Um mundo de estranhos, o personagem rejeita a tradição política familiar de esquerda (seus pais foram membros do partido comunista sul-africano e estiveram diversas vezes na prisão e até morreram nela ou por causa dela) e sai em busca de sua própria personalidade. É uma viagem de ida e volta: sua personalidade está justamente na assunção da lição moral (e política) dos mais velhos. O massacre de Soweto em 1976 marca o tom final desta assunção. Quando o romance termina, Rosa Burger, a filha de Burger, também está presa.
 
Depois de ter levantado as dúvidas sobre o neutralismo impossível e a suave covardia dos liberais brancos, Gordimer confronta neste romance a narração das posições ideológicas do comunismo sul-africano e a sua heroica história de luta contra o apartheid. Através da memória de Rosa Burger sobre a vida do seu pai e da sua mãe, a história dos comunistas na África do Sul está entrelaçada com a reflexão sobre si mesma (a sua vida passada naquele contexto) e a sua própria realização íntima.
 
Após o massacre de Sharpeville, os negros aprofundaram a sua autoconsciência de classe, a sua autoconsciência como nação, e não esperam nada dos brancos. Para eles, cada vez mais, todos os brancos pertencem à mesma classe que os mantém expropriados. Entre Sharpeville e Soweto desenvolve-se o arco vital de Rosa Burger, que, finalmente, consegue integrar em seu discurso o legado de luta dos pais e a própria situação pessoal. Ir para o exterior nada mais é do que uma fuga. O que o discurso narrativo diz, tanto na primeira pessoa de Rosa como numa terceira pessoa centrada nela, é que quem já viveu e compreendeu a África do Sul não pode aceitar a suavidade inerte dos europeus, e que, portanto, no fim de contas, o exílio também não era uma solução.
 
Episódios da revolução
 
O pessoal de July continua a refletir sobre a difícil convivência entre brancos e negros e a sua projeção pessoal, mas agora isso é visto a partir de um horizonte anedótico muito diferente: os negros sul-africanos desencadearam a luta final, uma família de brancos liberais (incapazes de assumir suas responsabilidades naquele momento) foge do incêndio ajudada por seu empregado negro, July, que os esconde em sua aldeia, longe da civilização branca. Essa convivência sofre, então, uma subversão radical, e a dissolução da consciência pessoal, das expectativas da própria existência e das relações familiares dos brancos, nada mais é do que a consequência mais ou menos previsível.
 
No livro seguinte, a novela Something Out There publicada num volume de contos com o mesmo título, Gordimer contrasta, através de uma montagem hábil, o mundo contundente e covarde dos brancos assentados, permanentemente assustados, constantemente em tensão ante o aumento das expectativas revolucionárias e dispostos a inventar fantasmas atrás dos quais esconder o seu medo real do colapso do seu mundo, e o arriscado, corajoso e dedicado à luta armada (este é agora definitivamente o campo em que se instala a disputa sul-africana) dos negros: um, falso e estúpido, incapaz de assumir a realidade que se abate sobre ele; a outro, subterrâneo mas real, vivo, marchando para a assunção do seu destino como nação.
 
Junto com esse romance é possível citar alguns contos como “Crimes of Conscience”, que conta como nem mesmo um espião pago pela Segurança Interna do Estado consegue escapar à necessidade de se confessar, uma vez vivido e encontrado o inimigo que deveria espionar — Ninguém está livre da tomada consciência; “A City of the Dead, a City of the Living” conta como uma mulher negra trai um revolucionário negro, entregando-o à polícia porque o próprio medo é intransponível e então tudo o que resta é o desprezo daqueles que a rodeiam; “A Correspondence Course”, baseado na correspondência da própria escritora com o poeta e revolucionário Jeremy Cronin, enquanto este esteve preso, refere-se à impossibilidade de escapar à invasão do político na esfera da intimidade, com suas consequências de medo e angústia em relação ao futuro.
 
E ainda “At the Rendezvous of Victory” que narra a transição, da luta armada contra o poder branco, para o Estado negro vencedor, centrado no principal general negro. Aqui, a brevidade do texto não impede o leitor de perceber simultaneamente a degradação do general e a degradação do Estado africano pelo qual o general e o seu amigo, o primeiro-ministro, alegadamente lutaram. Habilmente, Gordimer alerta-nos para os perigos da transição do Estado neocolonial branco para o Estado negro: aqueles que sempre governaram (as empresas econômicas brancas) continuarão a governar; os países ocidentais que tentaram impedir a vitória do exército negro conseguirão manobrar em favor de um típico neocolonialismo econômico e cultural. E o contraponto a nível pessoal: a destruição moral do antigo revolucionário, do antigo combatente contra o poder branco. Não é possível dizer mais que isso em tão curto espaço.
 
No meio da história
 
Por fim, Um amante da natureza. Aqui a projeção existencial e a anedotário sociopolítica fazem parte do mesmo ser íntimo da protagonista, o “capricho da natureza”, o ser livre e pouco reflexivo que, fugindo das convenções e formalidades, chega sem quase perceber ao próprio centro da luta política dos negros africanos. A estranha jornada que o romance traça abrange toda a existência do personagem (da adolescência à maturidade): um romance de formação em que o protagonista e o mundo por onde passa se influenciam. No final, o povo negro sul-africano celebra a sua libertação da dominação branca e o caminho percorrido pelo protagonista acaba por nos revelar, se tortuoso, então irremediavelmente libertador.
 
Além disso, mais cedo ou mais tarde, todos os personagens deste romance, ou seja, todos os habitantes deste absurdo país, acabam por se encontrar com a história. Então o fundamental é não ignorar o problema, não se iludir com discursos justificativos. Hillela, rejeitada pela África do Sul branca e bem-pensante, por sua teimosa devassidão existencial, é acolhida peor outra África do Sul branca: ali ela aprende a verdade do mundo em que está, ali a consciência social, no meio de atividades solidárias, se desenvolve naturalmente. No entanto, as contradições de uma moral ainda não assumida adequadamente empurram-na para fora, onde a marginalidade esbarra definitivamente no mundo negro.
 
Assim, através da vida de Hillela e das suas famílias, percorremos o arco de infortúnios e repressão sangrenta que vai desde o protesto negro contra a lei do passe e o massacre de Sharpeville em 1960, até à rebelião de crianças negras em idade escolar contra a educação segregada e o massacre de Soweto em 1976, a avalanche de inúmeras mortes que esse massacre desencadeou e a fundação da Frente Democrática Unida na década de 1980. Um epílogo leva-nos para além do presente, quando a África do Sul branca do apartheid foi demolida e em seu lugar está a ser inaugurado um Estado Africano livre, democrático e multirracial.
 
Pela liberdade
 
Na verdade, os romances de Nadine Gordimer estão constantemente interessados ​​pela história. A reflexão sobre o que acontece; a tentativa de desvendar por que isso acontece e como impedir seus efeitos sangrentos, ao mesmo tempo em que tenta destruir as causas infames; a constante e meticulosa investigação que tenta abranger o intrincado pântano sócio-político, o consequente câncer devastador que aflige as consciências e mancha tudo com sujeira moral, e o desastre psicológico que isso acarreta: essa é a referência com a qual a escritora trabalhou continuamente nos seus romances, para lançar um pouco de luz na escuridão, sobretudo para os seus compatriotas de luta contra o inferno, que tentam encontrar uma saída do obsceno túnel do medo e da indignidade em que todo o país está preso.
 
Em suma, Gordimer reflete em todos os seus romances sobre a impossibilidade de viver sem contradições na África do Sul do apartheid e contribui com eles para traçar o caminho para a libertação dessas contradições.
 

Notas da tradução:
1 A tradução deste e de outros excertos é a partir das oferecidas em língua espanhola.
 
2 Sempre que existir tradução do livro em língua portuguesa, utilizamos o título na nossa língua.

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