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Keith Vaughan. Estudo para O castelo, de Franz Kafka, 1953. |
Escrevo este pequeno ensaio que
mais tem jeito de crônica — e menos de crítica literária — durante uma viagem a
Campo Grande/ MS, para visita aos familiares de minha noiva. Lembrando que o
prazo para entregar o texto estava próximo, coloquei na mochila o livro
O castelo,
um clássico de Franz Kafka, que já estava lendo há algum tempo, mas agora com o
objetivo de concluí-lo e, assim, poder escrever a seu respeito. Mesmo sem saber
o que exatamente escreveria, a vida me mostrou, uma vez mais, que a boa
literatura não se encerra na abstração, ao contrário do que muitos pensam. Ela
faz muito mais do que isso, pois descreve a própria realidade na qual estamos
inseridos, contudo, sem olhos atentos para percebê-la.
Chegando no aeroporto de Curitiba para o
embarque, ainda sem realizar o
check-in de nosso voo, não conseguimos
encontrar sequer um atendente no guichê da companhia aérea. Já era quase
meia-noite e o saguão estava completamente vazio. Tentamos realizar o
procedimento online: indisponível. Uma funcionária do aeroporto liga, então,
para um tal de Marcos, funcionário da companhia. Conversei com ele e apenas o
que falava eram frases como “não posso fazer nada”; “não dá mais para
embarcar”; “não sei dizer”; “vou enviar alguém” etc. Naquele momento,
claramente, fiquei revoltado. Precisamos ir para casa e pegamos o próximo voo,
no dia seguinte.
Durante a espera pelo voo — agora
tínhamos conseguido entrar na área de embarque —, pego o livro que estava na
mochila e começo a ler. Em poucas páginas, sorrio internamente. Era a
literatura descrevendo, ainda que com alguma analogia, um fato da vida que
havia acabado de acontecer.
Na obra de Kafka, o Castelo traduz
uma espécie de Administração Pública, um poder estatal abstrato, soberano e
inacessível de um vilarejo. O protagonista K. é um agrimensor estrangeiro, que
chega à cidade supostamente contratado pelo Castelo para ali realizar alguns trabalhos,
com a ajuda de outros dois rapazes. Entretanto, desde o momento que chega a um
albergue qualquer, K. percebe que tudo está fora do lugar, pois não consegue
conversar com as autoridades e um funcionário do Castelo lhe diz que não existe
nenhuma tarefa a ser cumprida por um agrimensor. E por aí vai.
Na sequência da narrativa, K.
interage com alguns moradores da localidade e até mesmo fica noivo de Frieda,
ex-amante de um funcionário do Castelo. Em meio a tudo o que acontece com o
protagonista, existe o reconhecido pano de fundo “kafkiano”, com informações
desencontradas, omissões, abuso de poder, problemas familiares e tudo o que
conhecemos sobre aquela confusão mesclada com inércia, típicos da obra do
escritor. Neste texto, pretendo focar no aspecto burocrático (ou desleixo
funcional) que nos cerca todos os dias. Num trecho da obra, por exemplo, quando
tentam explicar a K. o motivo de sua convocação mesmo sem a necessidade de um
agrimensor, temos o seguinte diálogo:
— Mas como é possível? — exclamou
K. — Certamente não fiz esta viagem interminável para agora ser mandado de
volta.
— Isso é uma outra questão — disse
o prefeito. — Não tenho de resolvê-la, mas seja como for posso explicar-lhe
como esse equívoco foi possível. Numa administração tão grande como a do conde,
pode acontecer às vezes que uma repartição determine isto, a outra aquilo,
nenhuma sabe da outra.
E aqui temos o exemplo conhecido
daquilo que infelizmente representa tantas instituições com as quais lidamos,
onde funcionários repassam a responsabilidade acerca de determinado problema
uns para os outros, sem que a questão posta diante de si seja efetivamente
resolvida antes de alguma espécie de cobrança interna e superior (pelas chefias)
ou exterior (pelo poder judiciário). Entretanto, embora a crítica de Kafka em
obras como
O castelo e
O processo possam ser aparentemente dirigidas
ao Estado, sabemos muito bem que instituições são feitas de... pessoas.
Por isso, quando aquele
funcionário ríspido da companhia aérea se limitava a bradar “não posso fazer
nada!”, enquanto outra funcionária nos ajudou a resolver a situação em poucos
minutos, vivenciei e compreendi o óbvio: toda e qualquer repartição pública ou
empresa privada apenas será arbitrária e má prestadora de serviços caso seus
funcionários, que somos todos nós, trabalhem com descaso diante do próximo que necessita
de nosso esforço.
A obra de Kafka, além de ser
interpretada como uma crítica aos mais diversos níveis de poder estatal, também
pode e deve ser interpretada como uma crítica a nós, que formamos esses
pequenos poderes, inclusive fora do âmbito público. Nosso trabalho, do mais
simples ao mais complexo, quando bem feito, pode romper com uma série de
desleixos ou desinteresses, que somados formam algumas das péssimas
instituições que conhecemos.
Por isso, dessa vez, lendo no
aeroporto, interpretei a crítica de Kafka de uma forma distinta. Ao ser mal
tratado por um funcionário que desconheço, compreendi que o Castelo não é
inacessível por si só, mas seus agentes é que o fazem assim. Retornei para a
minha cidade e para o meu trabalho decidido a fazer o que precisa ser feito
diante do problema do outro, sempre de forma a não compactuar com os pequenos castelos
do cotidiano.
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