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Sangue sábio e os distúrbios do sagrado

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Por Juliano Pedro Siqueira Flannery O'Connor. Foto: Andalusia Collection. No ano em que se comemora seu centenário de nascimento, não haveria momento mais oportuno para mergulhar nas histórias tragicômicas de Flannery O’Connor (1925-1964). A proposta deste texto é analisar seu intrigante romance de estreita, Sangue sábio (1952). A obra em questão carrega a problemática religiosa, contudo, possibilita o leitor — dentro desse complexo universo espiritual — adentrar em camadas mais profundas, ocultas no submundo de cada personagem; dado o nível de sofrimento e angústia que as afligem — não se restringe apenas a visão míope que detém sobre o sagrado, mas da própria visão de mundo que as cercam. O sentimento religioso exacerbado e o fanatismo presente na trama, são sintomas e fugas oriundas de conflitos internamente subjacentes, marcas de traumas e vivências passadas. A rejeição, a repressão e a indiferença são elementos visivelmente latentes e inquietantes em indivíduos que tentam,...

O dorminhoco: Woody Allen como Cervantes

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Por Jenn Díaz   Sim, é verdade que O dorminhoco é um filme de ficção científica, a menos que consideremos o woodyallismo um gênero. Não é ficção científica, então, mas sim woodyallismo, e como em todo bom woodyallismo, há comédia, uma reviravolta na realidade, referências culturais, patetismo, amor e sexualidade, pequenas doses de religião e um tributo às virtudes do absurdo.   Neste filme, que tem alguns anos e parece inocente depois de assistido cinquenta anos depois, Woody Allen se torna quixotesco. Assim como Cervantes fez uma crítica aos romances de cavalaria escrevendo um com humor, o diretor novaiorquino faz uma comédia de romances futuristas filmando uma. Portanto, quando Miles Monroe acorda duzentos anos depois, ele se encontra não em uma sociedade futurista, como se poderia esperar de um filme sério, mas em uma sociedade ridícula — e não apenas ridícula nela, mas também na nossa, por contraste.   Nesse futuro, as pessoas não comerão de forma saudável porque des...

Última noite e outros contos, de James Salter

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Por Rodrigo Fresán James Salter. Foto: Pascal Perich   Em uma conversa com o escritor Dan Pope publicada pela primeira vez na revista The Believer e posteriormente incluída no imprescindível Believer Book of Writers Talking to Writers (2005), James Salter (1925-2015) discute o que considera os melhores e os piores aspectos do ofício de escritor.   O pior é “ter que fazê-lo. Qualquer um lhe dirá a mesma coisa. Ou ter feito e fracassado”. O melhor é “a grandiosidade desse mundo e sentir-se parte dele. Há uma realidade no mundo da escrita que é muito maior do que outras realidades, mesmo que não possa substituí-las. Quando você lê algo que parece maravilhoso, não há a sensação desconfortável de ter esgotado algo. Aquilo estará sempre lá, esperando que você regresse. A emoção jamais desaparece.”   Dito isso, vale a pena comemorar que Salter tenha feito isso algumas vezes (o mais difícil e exaustivo) para que nós (a coisa mais simples e gratificante) possamos experimentar r...

Os erros de Borges. A estrangeira e o nome de Deus

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Por Eduardo Galeno Rafael. Averróis, detalhe de  A Escola de Atenas.   Não sei onde li, mas a linguagem é erro. A literatura, no ínterim, transfere esse erro para a ponta de um determinado discurso. Ela consiste em dizer, não falar, montar, deslocar, não transmitir. É o que se apresenta como discurso total. No ângulo pretendido ou sugerido por ela (a estrangeira nas palavras de Foucault), há a passagem da letra ao literário. Mas onde exatamente? Como é possível a determinação ou, melhor, a exclusão? O que faz as palavras tragédia e comédia serem o que são e representarem do jeito que são representadas? Certamente, na interpretação de Borges da vida — vida mais que obra, mas vida também como obra — de Averróis, ele se condicionou a investigar a barreira entre a res e a res ficta . Barreira que significa, é evidente, o percurso instrumental da natureza e da cultura (se há uma separação), que preconiza os sentidos, as intuições e as inferências. Averróis mesmo teve várias tra...

Cinco poemas de Wallace Stevens

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Por Pedro Belo Clara Wallace Stevens: Foto: Sylvia Salmi     O BONECO DE NEVE ( Harmonium , 1923)   É preciso que a mente se faça Inverno Para olhar o frio e os ramos Dos pinheiros encrostados de neve   E ter tido frio durante muito tempo Para ver os juníperos, hirtos de neve, Os toscos abetos no distante brilho   Do sol de Janeiro; e sob o som Do vento não pensar em dor alguma, O som das poucas folhas,   Que é o som da terra, Cheia do mesmo vento Que sopra no mesmo deserto lugar   Para o ouvinte, que ouve na neve E, nada sendo, nada vê do que Ali não está e vê o nada que está.     COMO VIVER. QUE FAZER ( Ideas of Order , 1935)   Ontem a lua nasceu por cima deste rochedo. Impura sobre um mundo inexpurgado. O homem e a sua companheira pararam Para repousar face à heróica altura.   Frio, o vento caiu sobre eles Por entre sons de grande majestade: Eles que tinham deixado o sol de estranha chama Buscando um sol de fogo mais inteiro. ...

Boletim Letras 360º #645

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DO EDITOR   Na aquisição de qualquer um dos livros pelos links ofertados neste boletim, você tem desconto e ainda ajuda a manter o Letras . Alexandre Dumas (pai). Foto: Prudent Rene-Patrice Dagron   LANÇAMENTOS   Edição inédita no Brasil do único romance abolicionista de Alexandre Dumas, que declara seu compromisso com seus “irmãos de raça e amigos de cor” .   Alexandre Dumas ajudou a construir o imaginário da literatura ocidental com Os três mosqueteiros e O conde de Monte Cristo . Porém, antes da fama literária, Dumas publicou, em 1843, Georges , um romance com temática abolicionista e protagonizado por um “orgulhoso mulato” que se alia aos escravizados nas Ilhas Maurício, então uma colônia francesa, para sonhar um “futuro de vingança e liberdade”, entrando numa guerra mortal contra o preconceito e a escravidão. Dumas, orgulhosamente neto de uma africana cujo sobrenome adotou como parte do seu nome artístico, não se ocupou apenas das intrigas e disputas na Corte f...