Cinco poemas de Wallace Stevens

Por Pedro Belo Clara

Wallace Stevens: Foto: Sylvia Salmi


 
 
O BONECO DE NEVE
(Harmonium, 1923)
 
É preciso que a mente se faça Inverno
Para olhar o frio e os ramos
Dos pinheiros encrostados de neve
 
E ter tido frio durante muito tempo
Para ver os juníperos, hirtos de neve,
Os toscos abetos no distante brilho
 
Do sol de Janeiro; e sob o som
Do vento não pensar em dor alguma,
O som das poucas folhas,
 
Que é o som da terra,
Cheia do mesmo vento
Que sopra no mesmo deserto lugar
 
Para o ouvinte, que ouve na neve
E, nada sendo, nada vê do que
Ali não está e vê o nada que está.
 
 
COMO VIVER. QUE FAZER
(Ideas of Order, 1935)
 
Ontem a lua nasceu por cima deste rochedo.
Impura sobre um mundo inexpurgado.
O homem e a sua companheira pararam
Para repousar face à heróica altura.
 
Frio, o vento caiu sobre eles
Por entre sons de grande majestade:
Eles que tinham deixado o sol de estranha chama
Buscando um sol de fogo mais inteiro.
 
Em vez disso havia este hirsuto rochedo
Maciçamente emergindo enorme e deserto
Para além das árvores, os cumes lançados
Como, entre nuvens, braços gigantescos.
 
Nem voz nem imagem enfeitada havia,
Nenhum cantor, nem sacerdote. Apenas
Havia a grande altura do rochedo
E eles os dois, firmes, ainda repousando.
 
Havia o vento gelado e o som
Que ele fazia, longe do lodo da
Terra abandonada, heróico som
Alegre e firme e jubiloso.
 
 
DA POESIA MODERNA
(Parts of a World, 1942)
 
O poema da mente no acto de encontrar
O que basta. Nem sempre houve o que encontrar:
Havia uma cena pronta; que repetia o que
Estava no guião.
                               Então o teatro transformou-se em
Algo diferente. O que ele era tornou-se recordação.
 
É preciso estar vivo, é preciso aprender a fala do lugar.
É preciso olhar os homens do tempo e encontrar as
Mulheres do tempo. É preciso pensar no que é a guerra
E é preciso descobrir o que basta. É preciso
Construir um novo palco. É preciso estar nesse palco
E, como actor incansável, devagar e
Meditadamente, dizer palavras que ao ouvido,
Ao mais delicado ouvido da mente, repitam
Exactamente o que ela quer ouvir, no som
Em que uma invisível audiência escuta,
Não a peça, mas ela própria, expressa como se
Numa emoção de duas pessoas, como se de duas
Emoções tornadas uma. O actor é um metafísico
No escuro, arranhando
Um instrumento, arranhando uma corda metálica cujos
Sons atravessam súbitas exactidões, um todo
Em que a mente está, abaixo do qual não pode descer,
Para além da qual não tem vontade de ir.
                                                                                              É preciso
Que seja o encontro de uma satisfação, e talvez de
Um homem patinando, de uma mulher dançando, de uma mulher
Penteando-se. O poema do acto da mente.
 
 
A MULHER À LUZ DO SOL
(The Auroras of Autumn, 1950)
 
É apenas que este calor e este movimento são como
O movimento e o calor de uma mulher.
 
Não é que haja no ar alguma imagem,
Nem o fim nem o princípio de uma forma:
 
Há o vazio. Mas uma mulher em oiro puro
Queima-nos com o roçar do seu vestido
 
E uma dispersa abundância de ser,
Mais definida por aquilo que ela é –
 
Porque ela é desencarnada,
Transportando os cheiros dos campos estivais,
 
Mostrando o taciturno e no entanto indiferente,
Invisivelmente nítido, o único amor.
 
 
O POEMA QUE TOMOU O LUGAR DE UMA MONTANHA
(The Rock, 1954)
 
Ali estava ele, palavra por palavra,
O poema que tomou o lugar de uma montanha.
 
Ele respirava o seu oxigénio,
Mesmo quando o livro estava virado no pó da mesa.
 
Aquilo lembrava-lhe o quanto havia desejado
Um lugar em que fosse na sua própria direcção,
 
Quanto havia recomposto os pinheiros,
Movido os rochedos e aberto, por entre as nuvens, o caminho
 
Para o olhar que estaria certo,
Onde estaria inteiro em inexplicável inteireza:
 
O exacto rochedo onde as suas inexactidões
Por fim descobririam a aparição que fora antes aflorada.
 
Onde poderia deitar-se e, olhando para o mar,
Reconhecer a sua única e solitária casa.
 
 
***
 
Wallace Stevens, uma das principais figuras do modernismo norte-americano, nasceu em outubro de 1879, no estado da Pensilvânia.
 
Aos dezoitos anos entra na Universidade de Harvard, e publica em revistas locais os seus primeiros poemas. Terminada esta fase dos estudos, começa a trabalhar como jornalista para uma célebre publicação de Nova Iorque. Três anos depois, em 1903, termina o curso de Direito na mesma cidade.
 
Inicia a actividade profissional como advogado, ingressando pouco depois numa companhia de seguros. Embora entusiasta da literatura e da filosofia, vai mantendo uma vida discreta, sem investir em publicações próprias.
 
Com o avanço da primeira década do século XX, Stevens entra em contacto com o movimento cubista, deixando-se influenciar profundamente. Nos começos na primeira Grande Guerra, começa por frequentar os principais círculos artísticos de Nova Iorque. Pouco depois, por motivos profissionais, muda-se para o estado do Connecticut.
 
Somente na década de 20 veremos publicado o primeiro livro de Stevens: Harmonium, lançado em 1923, e apresentando já alguns dos seus principais poemas. Contava o poeta quarenta e quatro anos de idade. Doze anos depois, dar-se-ia a edição do seu segundo livro, Ideas of Order.
 
Neste período, investe de modo mais regular no seu trabalho poético. Este divulga-se, prolifera e o autor torna-se conhecido e respeitado; ainda que continue a preferir uma existência longe dos holofotes, dando-se por feliz na sua rotina habitual. Nunca foi um autêntico “homem de letras”, principalmente por nunca o ter desejado, recusando cargos académicos e nunca se desviando duma linha burguesa de existir, digamos de assim. Ainda que tal não o tenha salvado de polémicas e desconfortos: se, por um lado, certas facções acusavam dissonância a alguma vaidade ou arrogância sua, por outro, um racismo subtil, em várias ocasiões confirmado, era gerador de constantes inconveniências — mesmo que à época tal questão fosse facilmente relativizada.  
 
Em 1951 publica um importante livro de ensaios, que lhe vale o prestigiante National Book Award (a primeira de duas conquistas), e em 1955 é-lhe outorgado o Prémio Pulitzer pela obra The Complete Poems of Wallace Stevens, editada no ano anterior. Falece no dia dois de agosto desse mesmo ano, vítima de cancro gástrico.
               
Criador duma poesia de difícil abordagem, desafiante e com fortes laivos abstratos e surrealistas, Wallace Stevens é amplamente conhecido como um poeta mental, isto é, um poeta cuja expressão irrompe mais do intelecto do que do efeito das emoções.
 
De facto, dir-se-ia que o dualismo Imaginação e Realidade é um dos pilares centrais de toda a sua obra, em que o primeiro obtém primazia sobre o segundo. Assim, à Imaginação deve ser concedido o papel de dar sentido à Realidade experimentada pelo Homem, vazia de significado por si só, sendo o poeta um “criador de sentidos” — e o poema, claro, a “ficção suprema”.
 
Reconhecem-se as influências filosóficas, em especial de Nietzsche, e estéticas no seu trabalho, pautado por uma linguagem cuidada e musical, ainda que o verso seja livre. Este trabalho da sonoridade encontra ecos no Simbolismo francês, por exemplo.
 
A Natureza, como elemento, é recebida a bem no seu trabalho, mas não se limita à mera paisagem para decorar versos ou suportar ideias e sentimentos. Sendo parte integrante da Realidade, também ela acompanha as flutuações da mente/ consciência, mediadora da experiência sensorial.
 
No seu trabalho, eleva-se a preocupação em como o Homem habita o mundo, como o recebe e o que dele decifra. Rejeitando transcendências, sentimentalismos e ideais absolutos, sempre muito próximo dos sentidos e do pensamento, a poesia de Stevens, também cheia de ausências, propõe o acto criativo como o motor da existência, oferendo espaço para todas as vozes, todos os caminhos de exploração. Seguindo esse trilho, conclui que, moldando a mente a realidade, e se dela cada observador retira o que deseja, toda a expressão é bem-vinda e acrescenta algo ao imenso manancial da experiência humana. O que é, diga-se, uma visão amplamente democrática e integradora.
 
É deveras interessante, se nos é permitida a apreciação, como Stevens quase propõe a poesia como uma espécie de filosofia prática, sem nunca abdicar do seu lado artístico. E não se limita a sugerir: o seu próprio trabalho é um exemplo vivo disso mesmo. Quase se poderá concluir, portanto, que a poesia é também uma forma de pensamento.
 
 
* Seleção a partir das traduções de Maria Andresen de Sousa em Antologia: Wallace Stevens (Relógio D’Água, dezembro de 2005)

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