Os erros de Borges. A estrangeira e o nome de Deus

Por Eduardo Galeno

Rafael. Averróis, detalhe de A Escola de Atenas.


 
Não sei onde li, mas a linguagem é erro. A literatura, no ínterim, transfere esse erro para a ponta de um determinado discurso. Ela consiste em dizer, não falar, montar, deslocar, não transmitir. É o que se apresenta como discurso total. No ângulo pretendido ou sugerido por ela (a estrangeira nas palavras de Foucault), há a passagem da letra ao literário. Mas onde exatamente? Como é possível a determinação ou, melhor, a exclusão? O que faz as palavras tragédia e comédia serem o que são e representarem do jeito que são representadas? Certamente, na interpretação de Borges da vida — vida mais que obra, mas vida também como obra — de Averróis, ele se condicionou a investigar a barreira entre a res e a res ficta. Barreira que significa, é evidente, o percurso instrumental da natureza e da cultura (se há uma separação), que preconiza os sentidos, as intuições e as inferências. Averróis mesmo teve várias traduções: Benraist, Avenryz, Aben-Rassad, Filius Rosadis… todos alinhados? É provável que não se pensarmos nas arbitrariedades. Mas também é provável que sim se alongarmos um pouco e tentássemos traduzir a homogeneidade do programa da língua. A língua — não a moldada pela técnica e ciência — é o núcleo do conto que integra o Aleph. A língua pura, aquela que, retirada sua roupagem cotidiana, sobraria, na nossa frente, apenas na pureza. E ela é residual, palpável na maioria das vezes, obstinada a nomear. É pré-significante, é metafísica. Ela sente vontade de nome.
 
Ao redor do conto, a maioria dos leitores indicaria a supressão das outras vozes. O texto aponta, já no título, a centralidade do filósofo andaluz no corpo. Mas é realmente sobre ele? Com certeza. Não impede, no entanto, que Averróis se desligue e se mova a outros. Eu diria até que a sua figura se molda pela expansão de outros lugares, como no caso do diálogo que sustenta o enredo do tradutor não saber traduzir. Mais abaixo explico.
 
Ponte: eis o termo correto para retratar a atitude de Borges. A ponte consegue, por certas razões, vincular opostos. A língua é vinculante no espaço, mas o espaço não pode existir positivamente. Arrisco a citar que ele necessita sempre de um feedback externo. É o enigma a ser descoberto (ou não). Derrida dizia que somente a ausência revela o fato, o valor literário. Esse momento é aparentemente hegeliano, mas esconde outra arqueologia. O produto final declara a horizontalização de pontos, não a verticalidade dialética da Aufhebung. Os pontos, traçados numa metafísica do ausente, suspendem a literatura, de modo que seja obliterado o seu senso de totalidade.
 
O universal é neutralizado. Qual o resultado? A complicação debanda. Todo e qualquer motivo para preencher o signo é inútil. Lembremos: a linguagem e a literatura, língua feita arte, são hiantes. Por serem assim, precisam da constância do nada, isto é, elogiam o vazio entre a intenção e o gesto. As formalidades são úteis no que concerne ao aparecimento (exempli gratia: as figuras retóricas), garantindo o desempenho quantitativo. Sim, a figura possibilita o ato contínuo e o manejo da produção sistêmica de um caos. Mas cita Derrida em Força e significação:
 
“Não opomos aqui, num simples movimento de balanço, de equilíbrio ou de destruição, a duração e o espaço, a qualidade e a quantidade, a força e a forma, a profundidade do sentido ou do valor e a superfície das figuras. [...] Esta economia não seria uma energética da força pura e informe.”
 
A citação nos proporciona manter moderado posicionamento. Em relação ao conto A busca de Averróis, é já no começo do conto que há acúmulos demonstrativos. Borges fala do distanciamento temporal de mais de dez séculos no que traduz e no que é traduzido. A investigação corresponderia, assim, a delimitar a festa da tradução. Traduzir Aristóteles, mesmo não tendo contato com as aptidões poético-filosóficas atenienses, ainda salvaguarda a abertura pela duração.
 
Custa responsabilizarmos a geometria e o pré-formismo? Como dizíamos, a culpa da querela está em centralizar o contexto da estrutura em dispositivos geradores de díades, o que indica a não simultaneidade que existe nas virtualidades. Quando Borges, por exemplo, lá no meio do conto, identifica a ironia de Abulcásim que visualiza a representação teatral no Cantão, estranha à cultura árabe, dá o mote para a significação e a capacidade de interpretar fica ampliada. De modo que a letra se esparsa, ela vira valor. A duração é a vacina para qual a mudança se projeta. E aí todas as nuances, de autoria à leitura, são codificadas pela errância. Para falarmos dentro da restrição do jargão filosófico, a errância é o modo pelo qual o ser-aí [heideggeriano] ganha corpo. Nas letras, o seu cozimento é espontâneo na mobilidade. O fim que se presta, então, é obter a sua verdade enquanto ad infinitum. 
 
“Singular benefício da poesia; palavras escritas por um rei que desejava o Oriente serviram a mim, desterrado na África, para minha nostalgia da Espanha”, diz Averróis com Borges. No autor argentino, a poesia – aqui entendida como prosaica também — remete à expansão textual. O que é bastante provável no empreendimento da antiga retórica, aquela que produziu Dante e Cervantes, é que ela já tinha dito que as artes do quadrivium — o incluído modelo matemático — e o trivium — o transporte da linguagem — são aparelhadas. Em outros termos, nós sabemos que a literatura transfere, a seu bel-prazer, a unidade da medida e da proporção, do número e da conta. A única diferença talvez esteja no fato da modernidade estar diante dessa consciência perturbadora. Não é à toa, partindo do pressuposto que dissemos, que as artes tenham avançado tal qual a ciência ia evoluindo. No meio de Flores do mal e Evolução das espécies, há poucos anos de gap.
 
Onde quero pousar? Na narrativa contística borgiana, pelo menos nas que os temas são elaborados em tempos assíncronos, a demarcação não existe (mesma coisa que dizer se dilata). Quando Averróis procura, nós também procuramos. Possível que, pela extensão, a demanda da ficção seja interpretada radicalmente. A ficção dá o retorno na sua própria órbita: Borges sabe que a tensão entre o real e a literatura é divergida, mas tenta ao máximo dar giros. Os giros são espiralados. O contato, se chega, é pela via da dessemelhança. A busca de Averróis coincide com sua derrota. Citemos um trecho que pode problematizar mais a condução do texto:
 
“Com menos eloquência — disse Averróis —, mas com argumentos congêneres, defendi algumas vezes a proposição que Abdalmálik sustenta. Em Alexandria, tem-se dito que só é incapaz de uma culpa quem já a cometeu e já se arrependeu; para se estar livre de um erro, acrescentemos, convém havê-lo praticado.”
 
Nós podemos tirar daí a operância que o erro trafega. O erro não põe os erros, assim no plural, como evidências últimas. Errar é produzir. A essência do erro encontra a essência da verdade.
 
“Averróis, depois, falou dos primeiros poetas, daqueles que no Tempo da Ignorância, antes do Islã, já disseram todas as coisas, na infinita linguagem dos desertos. Alarmado, não sem razão, pelas futilidades de Ibn-Sharaf, disse que nos antigos e no Quran estava cifrada toda poesia e condenou por analfabeta e por vã a ambição de inovar. Os demais o escutaram com prazer, pois ele defendia o antigo.”
 
A intenção de Borges é tirar a certeza obtusa do horizonte e construir uma abertura que dê vazão a um senso com o mínimo de materiais dispostos. Aliás, como ele próprio fala no fim do conto, o Averróis apreendido pela escrita não é o Averróis consumado pela historicidade. Não há outro pensamento a ser seguido que não seja o de corroborar para uma ideia tautológica. A balança pende à autorreferência, ao consumo inevitavelmente fincado à esfera do referente, próximo da figura mítica do oroboro. Blanchot citou uma vez que Borges está nutrido por excesso de franqueza (os nomes dos seus livros: Ficções, Artifícios, Labirintos). É precisamente o que advém ao conto sobre Averróis. A tutela da linguagem responde com o seu adentrar diante da essência. No caso, a literatura é trapaceira. Ela não afirma a não ser a si mesma.
 
Na Buenos Aires de 1951, o escritor argentino encontra o mesmo princípio que foi plantado na história das cenas da Espanha islâmica. Borges falará que o
 
Alcorão (também chamado O Livro, Al Kitab) não é mera obra de Deus, como a alma dos homens ou o universo; é um dos atributos de Deus, como Sua eternidade ou Sua ira.”
 
Em resumo, o prisma do nome de Deus, na façanha muçulmana (principalmente o dogma sunita que Averróis seguia), diz sobre os adjetivos divinos colocados de maneira eterna. Afirmando, nomeando o Livro, não há outra saída: afirmação que se nega. E como? Se o Livro, totalmente erguido pela sombra de Alá e decodificado pela hierarquia angélica, nos prescreve, o escape é o número do infinito. A infinitude não é tátil, não possui o caráter de vacilação empírica. O que é Deus para a literatura senão o indizível, o inexprimível, o irretocável, o imutável? É aí que a apófase e a catáfase se encontram. No laço, igual a um raio que surge, nome e número dão as mãos. Pseudo-Dionísio, o Areopagita relê a imagem de Deus ao mesmo tempo velha e jovem. Não é querendo aproximar o aristotélico racionalista Averróis ao neoplatonismo cristão — Borges o fez por mim! —, mas a raiz fica sendo quase a mesma se formos pensar sui generis. A penetração que Averróis faz (produzindo em cima da filosofia peripatética) é o que fazem os neoplatônicos com Platão e os primeiros cristãos com as Escrituras.
 
“Algo lhe revelara o sentido das duas palavras obscuras. Com firme e cuidadosa caligrafia juntou estas linhas ao manuscrito: ‘Aristu (Aristóteles) denomina tragédia os panegíricos e comédias as sátiras e os anátemas. Admiráveis tragédias e comédias são abundantes nas páginas do Corão e nos ‘mualacas’ do santuário.’”
 
Donde sai a perseverança do signo de se esconder na caridade. Averróis não conhece o pântano da cultura; carrega o aspecto crucial da língua, que é traduzir. A tradução possui um nome diferente: estrangeiridade. Julia Kristeva denomina a caritas, a presença de estar no outro em virtude do nosso desaparecimento, na esteira da doação sem dívida. A caridade se deixa estar em seu ambiente interno nesse apagamento da unidade. A caridade do sentido, mesmo una no fim, é alteridade. Segundo o linguista persa do século XI Jurjani, há duas espécies de tropos: a intelectiva, que é bem determinada, e a imaginativa, que corresponde hoje ao que se refere ao âmbito diaforético. Coincidência ou não, a noção de imaginação de Kant cabe em qualquer produto pós-romântico do qual Borges é solidário. É na clausura da retórica persa e na arte por excelência iluminista que precisaríamos decidir o caso.
 
Acho que o topos oupanion (última localização) deve ser relido no suplemento da escrita. Para que ele seja conduzido à realidade de fato, necessitaríamos de sua fragmentação. A verdade, na letra enquanto estrangeira e igualmente divina, supõe o incidente e o acidente. Mesmo essencial, a literatura suportaria no núcleo agências contingentes. Meillassoux, em Após a finitude, monta o argumento:
 
“Sabemos que os termos “azar” (do árabe: az-zahr) e “aleatório” (do latim: alea) se referem a etimologias vizinhas: “dado”, “lance de dados”, “jogo de dados”. Essas noções convocam então os temas inseparavelmente ligados, e não opostos, do jogo e do cálculo — do cálculo de chances inerente a todo jogo de dados.”
 
Não é tão visível assim, mas a concatenação da surata 13, na explicação sobre a Mãe do Livro, corresponde à antinomia simulacro/ideia. Deus, o necessário, é a contraposição ao adiamento do mundo. Em termos hermenêuticos, a naturalidade da ordem constitui o acaso da interpretação. A volatilidade é o recurso disponível a esse movimento. Nós rimos porque sabemos que ela consegue propor a instituição e a profanação, alinhando o espectro a postergar sua origem. A revolta contra o Nome do Pai não é inflamada e incentivada por Borges. Daí pensamos o seu respeito pelas várias figuras da história que passaram antes dele. É um verdadeiro garimpador, um arqueólogo do pensamento. Até dos pequenos fantasmas que só existem na literatura, como o seu Averróis.
 

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

11 Livros que são quase pornografia

Dez poemas e fragmentos de Safo

Boletim Letras 360º #645

Boletim Letras 360º #630

A história do amor de Fernando e Isaura, de Ariano Suassuna

Seis poemas de Rabindranath Tagore