Objecto quase, de José Saramago

Por Pedro Fernandes




Trata-se da única antologia de contos de José Saramago publicada em vida, mas o escritor português também escreveu outros textos do gênero, como O conto da ilha desconhecida, A maior flor do mundo (estes dois publicados individualmente no Brasil também pela Companhia das Letras em bela edição luxuosa) e O ouvido... (nunca publicado aqui, mas integrante de uma publicação coletiva em que tanto José Saramago como os outros escritores discorrem a partir da tapeçaria La Dame à La Licorne) e alguns dispersos, como o conto Natal, de data indefinida que descobri no ato de escrita de minha monografia de graduação compilado na edição 151-152 da Revista Colóquio / Letras. Haverá, certamente, outros, que a distância e / ou a curta informação permita seu silêncio.

Em Objecto quase apresentam-se seis breves narrativas enfeixadas cada uma por apenas um substantivo - "Cadeira", "Embargo", "Refluxo", "Coisas", "Centauro", "Desforra". Esses são os nomes para aqueles que são os escritos breves do Nobel português mais densos; neles estão contidos parte daquilo que os humanos são e naquilo que os humanos têm, ao longo do processo histórico, se transformado.

Atentemos para epígrafe que abre o livro: "Se o homem é formado pelas circunstâncias, é necessário formar as circunstâncias humanamente" (Marx e Engels). Neste livro ela constitui uma dorsal que estabelece a unidade entre os textos por mais variáveis que sejam os elementos e as situações narradas. Aliás, esse título, Objecto quase, é em si bastante significativo: tem a ver com o que vimos sendo - objetos - mas não ainda em sua totalidade - objetos quase. Principalmente nos detivermos na leitura de "Refluxo", em que se lê a morte tornada objeto, em "Coisas", em que é a própria humanidade que se coisifica ou ainda em "Embargo", o homem à mercê do conforto que o cria distante do caos.

Em "Centauro" tem lugar outra vertente da literatura de Saramago que é o fantástico. A aparição do elemento mítico como personagem da narrativa em muito dialoga com a passarola movida à vontades do Memorial do convento ou com a soltura dos Pirineus em forma de jangada mar aberto noutro célebre romance, A jangada de pedra. Aqui, o escritor revisita o mito sob outra perspectiva: a do conflito entre o cavalo e homem e a anulação de ambas as partes num claro registro sobre o apagamento ou desfazimento do mito enquanto verdade do mundo. (Este conto foi entregue pelo seu autor a Nadine Gordimer que o incluiu numa antologia cujos recursos das vendas são revertidos para a campanha em prol do tratamento e prevenção da AIDS; no Brasil, o livro foi publicado como Contando histórias, pela Companhia das Letras, 2007). 

Outro elemento que marca esses contos, além dessa temática, já pulsante no Saramago pré-romancista (à época em que ele publica tais contos, 1978, quando ainda não era o romancista que hoje é) está na busca por um estilo e linguagens próprias. Cada conto se constitui por uma particularidade estilística, o que demonstra certo exercício criativo de quem tateia em construir um modelo de narração com feições próprias. Ao ler títulos como "Cadeira", por exemplo, haveremos de perceber um movimento de circularidade em torno da própria linguagem; este é o conto mais complexo desta antologia e é também o em que um narrador serpenteia em torno de si, no sentido de encontrar um, trajeto, uma via pela qual possa estabelecer a linguagem enquanto fenômeno.

Este livro é uma recomendação para os leitores que guardem interesse por conhecer outras matrizes da escrita de José Saramago. Dizemos isso pensando que, a maioria dos casos de chegada à obra desse escritor se dá pela via do romance, forma na qual ele se destacou. A leitura de Objecto quase favorecerá o encontro com um escritor que, desde cedo, demonstrou-se um inventor e um criador excepcionais.

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