Além de Haruki Murakami. Onze romances da literatura japonesa que você precisa conhecer

"Dois amantes lendo uma carta", de Eisen Ikeda

Em 2019 Haruki Murakami completou 70 anos; o aniversário coincide com a publicação no Brasil de O assassinato do comendador. Cada novo romance do escritor japonês é um acontecimento e seu nome se repete, todo ano, como favorito ao Prêmio Nobel de Literatura. É claro que não é uma figura integralmente amada por todos; há os que a odeiam. Mas, assume-se como um escritor sem meios gostos. E é verdade que a presença do escritor tem contribuído para eclipsar muitos outros escritores japoneses. Por isso, esta lista com um conjunto de obras imprescindíveis escritas por colegas e compatriotas de Murakami.

Se o autor de Norwegian Wood sonha todo ano com o Nobel, o primeiro autor de seu país a alcançar o galardão da Academia Sueca foi Yasunari Kawabata, autor de obras como O país das neves, em 1968. Um discípulo de Kawabata ficou às portas do grande prêmio universal das letras – Yukio Mishima. Não alcançou a benção dos acadêmicos, mas a paixão dos leitores. Isso graças a romances como O pavilhão dourado. E os japoneses tiveram ainda um segundo Prêmio Nobel de Literatura: Kenzaburo Oe, o autor de O grito silencioso.

A lista é robusta. E inclui peças como A valise do professor, de Hiromi Kawakami. A esta magnética história de amor, como deixar de fora a literatura de Natsuo Kirino, de Grotescas? Ou Tsugumi, de Banana Yoshimoto? Ou Kokoro, de Natsume Soseki? Ou O fuzil e a caça, de Yasushi Inoue? 

Enfim, eis a lista além de Haruki Murakami. Sua concepção nasceu de outra lista que editamos neste blog: que também direcionava o olhar do leitor para outros escritores japoneses além do famoso de 1Q84 (ver link no final da post). Não é, como sempre dizemos, uma lista completa, esgotável; nem a organização dos títulos obedece a uma categorização. O resumo sobre os livros aqui apresentados foi escrito a partir do material de divulgação oferecido pelas editoras.

Kokoro, de Natsume Soseki
Este é um livro que pulsa entre mundos: o mundo particular das duas personagens principais e o da sociedade à sua volta; o mundo da cultura tradicional japonesa e o da modernização ocidentalizante; o mundo da política interna japonesa e o da política internacional. É, assim, um romance que capta as pulsações desses mundos distintos no início do século XX, e reconstrói o modo como ecoam na vida das personagens, eu e professor. Como que indicando a tensão entre individualismo ocidental e coletivismo oriental, as personagens não têm nome. O livro se divide em três partes. Na primeira, “o professor e eu”, eu narra sua amizade com o professor (que apesar de sugerir uma vasta experiência de vida, não a revela ao jovem amigo). Depois, em “meus pais e eu”, eu parte de Tóquio de volta para sua cidade natal, em função da doença do pai (dando ensejo à descrição de suas relações familiares). Coincidindo com a morte do imperador, eu deixa, porém, o pai doente e retorna a Tóquio para receber a carta-testamento do professor (que constitui a terceira parte do livro, “o professor e o testamento”, e na qual ele, enfim, revela sua história – tudo distante, portanto, do que indica a rígida etiqueta social nipônica).

As irmãs Makioka, de Junichiro Tanizaki
Esta é considerada a obra-prima do escritor. Nela traça-se um sutil e complexo perfil da sociedade japonesa durante os anos 1930 e aborda uma série de conflitos entre os valores japoneses e os ocidentais, bem como entre a tradição e a modernidade. A história, que começa no outono de 1936 e termina em abril de 1941, sob o impacto da Segunda Guerra Mundial, retrata a vida de uma abastada família da região de Kyoto e Osaka, no oeste do país. As irmãs Makioka (Tsuruko, Sachiko, Yukiko e Taeko) tentam resolver juntas seus problemas familiares e arranjar um casamento para a terceira delas, Yukiko, uma mulher de crenças tradicionais que aos trinta anos ainda não conseguiu se casar. Ao mesmo tempo representante da inércia das relações, a personagem é também um estandarte da tradição. Aliás, uma partícula de seu nome compõe o título original do livro, Sasameyuki — neve fina, a última a cair no inverno. Taeko, a caçula, também tem intenções de se casar, mas, em respeito às convenções sociais japonesas, ela precisa esperar o casamento da mais velha para decidir seu futuro. 

O fuzil e a caça, de Yasushi Inoue
No Japão, o período do pós-guerra trouxe definitivamente à tona toda sorte de questões que mantiveram caráter de tabu durante tanto tempo, numa tradição secular de silêncio e discrição. Isso faz com que o enredo de O fuzil de caça, cujas personagens estão enleadas em um caso de amor extraconjugal, não constitua por si só uma novidade ou um fator de estranhamento. É também na forma, e não apenas em sua temática, que a obra se consolida como fundamental no panorama da literatura japonesa contemporânea. Lançando mão da tradição do romance epistolar, convida o leitor à posição de voyeur de uma comunicação unilateral e inusitada entre um caçador, Josuke Misugi, e um escritor. Três cartas, endereçadas a um mesmo homem por três mulheres diferentes, imprimem uma textura trágica à trama. O jogo de narradores; as cartas como único veículo para a torrente de alta tensão emocional que se revela ao leitor; o exercício constante da concisão e o lirismo que transpira de uma prosa que se mantém sempre vizinha do território poético: a estética e o conteúdo se entrelaçam, e o entrecho se apresenta belo como uma trilha na neve. Ao mesmo tempo, o equilíbrio entre o que é dito e o que é velado mantém o mundo da solidão presente em cada linha e constante em todos os personagens. Permeiam estas páginas o isolamento e a carência de franqueza nas relações humanas, que as cartas reveladas por Misugi tentam romper e atravessar.

O país das neves, de Yasunari Kawabata
A primeira versão desta obra foi publicada originalmente em 1937, mas foi apenas dez anos depois, já influenciado pelos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, que o escritor terminou a versão final deste romance sobre o amor espontâneo e sem nenhuma esperança de retribuição. Neste livro, de grande repercussão no Japão e no exterior (inclusive com adaptações para o cinema), Kawabata expõe a densidade e as contradições das relações humanas por meio do encontro entre Shimamura, um culto senhor de posses, Komako, uma gueixa das montanhas, e Yoko, uma bela jovem provinciana, trazendo ao leitor um texto comovente e lírico ao extremo.  Em vez de provocantes paixões, o desperdício do amor e o sacrifício pessoal dos personagens conduzem-nos a uma atmosfera gélida, com pinceladas de forte afetividade, em que o branco da neve e o frio penetrante contribuem para dar o tom melancólico da narrativa. Não à toa: a estação termal de Yusawa, que o escritor visitou pela primeira vez em 1934, serviu de inspiração para a criação do cenário onde se passa a história.

O pavilhão dourado, de Yukio Mishima
Durante a Segunda Guerra Mundial, em Quioto, um jovem assistente de sacerdote frequenta o templo do Pavilhão Dourado, ambiente antes cultuado por seu pai como o lugar mais belo do mundo. Ali, Mizoguchi, adolescente inseguro, introspectivo, que sofre de gagueira e é incapaz de estabelecer verdadeiras amizades, encontra refúgio para suas aflições. Quando conhece Kashiwagi, deficiente físico muito mais experiente no mundo e no sexo, Mizoguchi desperta para o que chama de mal absoluto. O conhecimento do mal, associado à ideia de perfeita beleza, princípio básico do Pavilhão Dourado, faz com que o jovem alimente sonhos de destruição e autodestruição, estranhas conjecturas sexuais e reflexões sobre o significado dos valores universais, numa tortura mental que revela que o mal e a beleza não estão tão distantes quanto parecem.

O grito silencioso, de Kenzaburo Oe
A história dos irmãos Mitsusaburo (Mitsu) e Takashi (Taka) que viajam à ilha de Shikoku, perseguindo os rastros de um antepassado que havia conduzido uma revolta camponesa; para repeti-lo, Taka leva os jovens do time de futebol que dirige a se rebelar contra “o imperador do supermercado”. Nessa cínica degradação do ideal se esconde as chaves desta história terrível. As outras podem ser encontradas no olho cego de Misu; na decadência em que abandona sua esposa depois do nascimento de seu filho; na violência silenciosa e contínua que atravessa toda a narrativa, como um autêntico “grito silencioso”. Descrito como um romance verdadeiramente prodigioso em sua capacidade de confundir o mito e a história, ódio e ternura, anedota e parábola, para assinalar num gesto quase desinteressado a profundidade da loucura que se abre por baixo das existências aparentemente normais. Com este romance, Kenzaburo Oë foi comparado a Céline e Genet e, por conseguinte, a Dostoiévski.

A valise do professor, de Hiromi Kawakami
Este livro foi o ganhador do Prêmio Tanizaki, um dos mais prestigiosos do Japão. Aqui, a prosa entrecortada e sucinta de Hiromi Kawakami nos revela a mente confusa de uma mulher embaralhando cenas reais com sonhos, lembranças e reflexões no cotidiano amoroso e solitário na megalópole toquiota, tema recorrente da autora.  Tsukiko tem quase 38 anos, trabalha em uma firma e nas horas vagas bebe no bar de Satoru. Nunca foi casada e aparentemente não se importa com isso. Leva uma vida calma e sem grandes emoções, até que passa a encontrar um professor do ensino médio no mesmo bar que frequenta.

Tsugumi, de Banana Yoshimoto
Deixar para trás o lugar onde se viveu durante toda a vida não é fácil. Podemos abandonar nossa terra natal, mas a terra natal nunca sai de nós. É esse o sentimento que vem experimentando Maria Shirakawa, a personagem-narradora de Tsugumi. Recém-instalada em Tóquio para iniciar a vida universitária, Maria ainda não se desconectou por completo da paradisíaca cidade litorânea na península de Izu, onde, desde pequena, crescera na companhia das primas Yoko e Tsugumi. Dona de beleza hipnótica, Tsugumi padece de uma doença crônica, que a mantém em permanente risco de vida. A saúde debilitada, no entanto, não inibe uma personalidade despótica e cruel: a delicadeza é algo que passa longe de seu repertório de virtudes. Para conviver com Tsugumi, doses cavalares de paciência e resignação são recomendáveis — Maria Shirakawa que o diga, bem como quem mais se colocar em seu caminho. O relacionamento ao mesmo tempo afável e tortuoso entre as primas será testado nas próximas férias de verão, quando Maria aceita o convite de Tsugumi para voltar à cidade natal a fim de passarem uma última estada juntas. Ali, muito além de matar saudades da maresia e das caminhadas na areia com o cão Poti, Maria viverá dias incríveis.  O tom de leve melancolia que percorre toda a trama é potencializado, ao mesmo tempo, pela ideia de despedida vivenciada por Maria e pela saúde frágil de Tsugumi. Combinado a tudo isso, os pequenos dramas e aventuras com os quais as personagens têm de lidar – notadamente, a reconciliação dos pais de Maria, que não viviam juntos, e a descoberta do amor por parte de Tsugumi – pintam um belo retrato da juventude japonesa. Com esta história intimista e de tons tragicômicos, a autora radiografa ao mesmo tempo a passagem da adolescência à idade adulta das primas-protagonistas e nuances da vida familiar no Japão contemporâneo.

O museu do silêncio, de Yoko Ogawa
Os museus têm como pressuposto guardar objetos de valor histórico ou científico para fins de exibição pública, de modo a registrar à posteridade a importância que eles tiveram para a humanidade num período determinado. Mas como seria no caso de um museu que tivesse como objetivo preservar lembranças de pessoas que morreram? Essa é a essência da trama proposta pela japonesa Yoko Ogawa. O sonho de dar cabo desse museu é de uma velha que vive com a jovem filha e um casal de empregados. Um museólogo – narrador da história – é contratado por ela para tirar o projeto do papel. De personalidade hostil e sem o menor traquejo social, a velha tem lá suas idiossincrasias, sobretudo em relação ao tipo de conteúdo que planeja para o museu: as lembranças dos mortos precisam ser representativas do que eles foram em vida. Uma peça de roupa, uma fotografia sorridente – nada disso. Não se trata de preservar lembranças afetivas. Cada objeto do museu precisa ser a metáfora perfeita da existência do finado. No caso do homem cego, por exemplo, só mesmo seu olho de vidro serve às intenções da velha. E o museólogo – nenhuma das personagens do livro é nomeada – tem que se virar para recolher esse tipo de "relíquia" dos corpos moribundos. Para se familiarizar com essa macabra tarefa, o museólogo conta apenas com a ajuda da filha da chefe, por quem nutre sentimentos paternais... ou nem tanto. E, não bastassem o mau humor e as grosserias da velhota, ele ainda tem de lidar com uma chocante onda de assassinatos de mulheres da região, marcados pela característica comum de apresentar os corpos das vítimas mutilados numa região bem específica. O museu do silêncio é uma obra de suspense, bastante simbólica da produção de Yoko Ogawa, escritora japonesa contemporânea muito saudada no Ocidente. 

Mulher das dunas, de Kobo Abe
Kobo Abe é considerado o escritor que introduziu o tema da crise de identidade na ficção japonesa (segundo alguns, sob a influência direta de Kafka). Transformado em filme por Hiroshi Teshigahara, com roteiro do próprio Abe, este romance conta a história de um professor e entomologista amador, Junpei Niki, que viaja até uma praia cheia de dunas para coletar insetos. Ele perde o último ônibus e os habitantes do vilarejo local oferecem-lhe alojamento na casa de uma mulher que mora sozinha; uma casa que fica praticamente num buraco circundado pela areia e é preciso descer por meio de uma escada de cordas. Muitas casas estão na mesma situação e para evitar que elas sejam engolidas pelas dunas, seus habitantes devem trabalhar todas as noites recolhendo areia com pás. Contra a sua vontade, Junpei vê-se preso e deve trabalhar para receber água, ou seja, para manter-se vivo. Seu relacionamento com a mulher, nunca nomeada, que o trata muito bem, mas que ele considera muito simples e condicionada a aceitar aquele tipo de existência, desenvolve-se de forma imprevista.

Pôr do sol, de Ozamu Dazai
A narrativa deste romance é construída praticamente a partir do diário de Kazuko, uma mulher divorciada de vinte e nove anos que conta como ela e sua mãe são obrigadas a venderem a casa que possuíam em Tóquio após a morte de seu pai e a se mudarem para uma casa menor em um vilarejo isolado. A vida inicialmente idílica se torna cada vez mais sufocante; sem perspectivas, ela passa o tempo todo cuidando da casa e de sua mãe, cuja saúde se deteriora após a mudança. Seu irmão se junta às duas após retornar da guerra. Ele é um intelectual com pretensões de se tornar um escritor, mas se limita a gastar o resto do dinheiro da família em Tóquio, onde passa os dias bebendo e fumando ópio na companhia de boêmios e mulheres em uma tentativa de esquecer sua incapacidade de se conformar com o tipo de vida que a sociedade lhe impõe. Enquanto Kazuko quer algo mais para si; escreve cartas para um escritor mais velho com quem seu irmão costuma beber e revela que deseja ter um filho dele.

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