Numa catástrofe, quais livros salvaríamos de nossas bibliotecas pessoais?


Eterno é o fogo. Esteve adormecido desde as imemoriais eras até ser descoberto e controlado. O controle fica por conta daquelas ilusões que construímos ao longo da vida para garantir nossa própria existência. Na prática quase tudo é sempre o contrário. E esse é um desses casos. É o fogo que nos controla. Mesmo inconsciente. Alguma vez, o leitor poderá ter imaginado não conseguir acordar porque a casa ou o apartamento perece sob as chamas enquanto dormia. Ou que, na ausência de quem o controle, de um sorrateiro curto-circuito, coisinha qualquer, um fogo pode nascer e devorar tudo e deixar só as cinzas... Nossa condição de controlados pelo fogo é tamanha que fomos levado a pensar que se não respeitamos as leis divinas iremos perecer no inferno, descrito por extensa parte da cultura humana como um imenso caldeirão ardente.

E foi, tomado pelo horror de algo que nos encanta que fomos levados a um desafio para este Dia do Livro. Numa tragédia como a do Museu Nacional e a de Notre Dame em nossas bibliotecas particulares, pequenas ou robustas, qual livro salvaríamos. É possível que esta lista tenha sido elaborada demoradamente, sopesando afetos, as leituras que não passaríamos sem, porque nos marcaram de alguma maneira e ainda gostaríamos de repeti-la algum dia. a edição mais rara, a mais bonita e irrepetível, mas, enfim, numa emergência não há muito o que pensar. E se, na pressa em meio ao horror, ainda nos restasse ao menos a alternativa de escolher três livros? Íamos entre as chamas fazer o resgate, trataríamos de deixar que tudo pereça, ou numa atitude romântica e suicida, nos deixaríamos morrer queimado com eles qual a personagem de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury? Pensemos.

Enquanto isso, porque não temos pressa – ainda bem –, podemos nos demorar lendo o que alguns dos nossos colunistas disseram que salvariam de suas bibliotecas se estivessem nessa condição imaginária; e tomara sempre imaginária. Talvez eles nos ajudem de alguma forma ou, sendo condição imaginária, nos sirvam para botar fogo no desejo do que poderemos ler quando terminarmos o livro que agora estamos lendo.


Poesia Brasileira do Século XX: dos modernistas à atualidade (seleção, introdução e notas de Jorge Henrique Bastos; editora Antígona, Lisboa, 2002).

O que mais gosto neste livro é a sua variedade e qualidade, ao mesmo tempo. É uma antologia de poesia por onde passam palavras de alguns dos meus poetas preferidos, como Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo, Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, Affonso Romano de Sant’Anna, Paulo Leminski, Paulo Henriques Britto ou Cecília Meireles. A verdade é que, de vez em quando, dou por mim com ele na mão e lá esbarro o olhar com um separador a marcar a “Meditação sobre o Tietê”, onde sempre recaio em dois ou três versos. “O amor do amor, Maria!” (…) “odiei a guerra, salvei a paz / E eu não sabia”.

Existencialism from Dostoevsky to Sartre (selected and introduced by Walter Kaufmann; Meridian Books, New York, 1957)

É um livro de filosofia existencialista. Chegou às minhas mãos como oferta de duas pessoas que mo compraram numa feira de livros em segunda mão, na Universidade de Berkley. No meio de páginas fininhas com letrinhas pequeninas muito juntas, encontram-se pedaços da filosofia de Jaspers, Reiner Maria Rilke, Kafka ou Sartre. Sempre que o leio mergulho num mundo filosófico que faz com que a minha mente se abra a novas ideias. Talvez influencie o meu otimismo existencialista na promoção da liberdade que não viola a liberdade de ninguém, que não pisa em ninguém. De quem não espera esperando, mas sendo e ampliando a consciência.

Sonnets, de William Shakespeare (Alma Classics, UK, 2016; a primeira edição foi publicada em 1609).

Um livrinho roxo com flores amarelas, que também tem uma história: comprei-o num dia bastante frio, no final de 2016, na “Shakespeare and Company”, numa viagem que fiz com a Sissi. A livraria é linda e situa-se perto da Notre Dame e do rio Sena. Tem várias frases a decorar as paredes e serviu de cenário a um filme de uma das minhas sagas preferidas, o “before sunset”. Anestesiada pela aura romântica da cidade, comprei o livro e fui-me deixando contagiar pela inspiração que faz de Shakespeare um nome incontornável da poesia. Leio-o quando preciso de voltar a acreditar que o amor existe.

“Shall I compare thee to a summer’s day?
Thou art more lovely and more temperate.
Rough winds do shake the darling days of May.
And summer’s lease hath all too short a date;
Sometimes too hot the eye of heaven shines,
And often is his gold complexion dimmed;
And every fair from fair sometines declines,
By chance or nature’s changing course untrimmmed;
But thy eternal summer shall not fade
Nor lose possessions of that fair thow ow’st;
Nor shall death  brag thou wander’st in his shade;
When in eternal lines to time thou grow’st.
So long as men can breathe or eyes can see,
So long lives this, and this gives life to thee”

▬ MARIA VAZ


Estação infinita, de Ruy Espinheira Filho (editado pela Bertrand Brasil)

O livro reúne a produção poética do grande poeta baiano desde 1966; Ruy Espinheira Filho é um nome da poesia nacional que ainda continua produzindo poemas maravilhosos que servem como grande ensinamento, tanto para quem escreve, como para quem é leitor de poesia. Sua poesia carrega a força da tradição, mas também a arte dos versos livres, mas não sem o pleno domínio da técnica e da beleza. Toda vez que leio o Ruy é como se fosse ainda uma primeira.

Trilha estreita ao confim, de Matsuo Basho (editado pela Iluminuras)

Um livro que marca pela riqueza do texto original, pelos haicais mais importantes escritos por Basho. O que também me toca bastante nele é a reunião dos relatos de viagem desse poeta japonês que serve o tempo e o espaço com uma poesia que se funde ao seu caminhar, sua simplicidade, busca, percepção da natureza e todos os ensinamentos transmitidos são grafados página por página. Eis que temos aqui uma oportunidade de contato com o que muitas vezes desejamos, mas não sabemos o que é, nem por onde começar.

O amor nos tempos do cólera, deGabriel García Márquez (editado pela Record)

Um narrativa cheia de pontos que me marcaram muito, lembro das páginas passando e uma tristeza crescendo em mim com o final do livro, mas também sendo salvo pelos ecos que me cosumiram por um bom punhado de semanas. O romance, do realismo fantástico de Garcia Márquez, traz uma fábula sobre o amor que pode resistir aos anos e inúmeras incertezas somadas na vida. Em tempos tão duros, reinaugurar a resistência a partir do amor é uma saída mais do que possível, é necessária.

 TIAGO D. OLIVEIRA


Os diários de Virginia Woolf (Seleção e tradução de José Antonio Arantes; Companhia das Letras)

Darei prioridade à diarística por entender que os diários são elementos primordiais na produção de um escritor, visto que ali se mostram o pensamento e os temas que precedem sua escrita. Também suas inquietudes e insatisfações. Nos Diários de Virginia Woolf é possível ficar a par de muito da revolução cultural do século 20 – a edição que tenho abarca apenas os seus diários a partir de 1918 até 1941. Por sinal, edição esgotada no Brasil e que bem poderia ser reimpressa. Woolf trafega pelas dúvidas quanto a seu trabalho literário, sobre a repercussão de seus pares na imprensa inglesa (como Eliot; Katherine Mansfield – “encontrei uma boa maneira de pô-la no seu lugar. Quanto mais a elogiam, mais me convenço de que ela é ruim” etc) e mostra as rivalidades do meio sem muito pudor. Enfim, um livro para ser lido e relido inúmeras vezes por seu valor literário e histórico.

Os diários de Sylvia Plath: 1950 – 1962 (Org. Karen V. Kukil; Biblioteca Azul, 2017)

Toda a trajetória da formação intelectual de Sylvia Plath está contida neste livro, que disseca sua juventude até os anos finais de sua vida. Um livro para entender seu universo criativo e sua tumultuada vida. Plath demonstra nos seus diários que era exímia prosadora – fato que foi interrompido pela morte precoce. Também mostra a evolução da inserção da mulher no meio acadêmico e literário dos anos 1950 e o quanto ela lutou para ser mais do que esposa e mãe em uma sociedade ainda fortemente machista. Como escreve em uma de suas entradas: “Imagens da sociedade: o Escritor e o Poeta justificados apenas se obtiverem Sucesso”.

A autobiografia de Doris Lessing dividida em dois livros: Debaixo da minha pele e Andando na sombra (ambos publicados pela Companhia das Letras, em 2007).

A autobiografia da escritora britânica Doris Lessing explora sua infância, seus anos de formação na África do Sul até o momento em que se estabelece em Londres em 1949. Um dos traços marcantes da sua autobiografia é a realidade aliada à imaginação que permeiam os dois tomos. Não poderia deixá-los separados, pois um complementa o outro. São testemunhos de como uma grande escritora se formou e constituiu seu universo literário. A segunda parte da autobiografia – Andando na sombra – vai até 1962.

▬ FERNANDA FATURETO


Eu, Dom Quixote, deixo a vida de fazendeiro não porque minhas terras não dão mais soja, pois como um conhecedor da agronomia Morte e vida severina (João Cabral de Mello Neto, ed. 1955) faço armadura Hércules-Quasímodo para os grãos crescerem protegidos, e gigantes moinhos de nordestinos eólicos. Mas, como herói, não compactuando com a demarcação das terras indígenas e quilombolas pelo agronegócio, política do Ministério da Agricultura do governo Bolsonaro 2019, vendo a queima da terra-catedral de um quilombo, vou salvar A confissão da leoa” (Mia Couto, 2012) pois preciso de uma história de mulher que enfeitice as vilas colocando uma leoa para devorar os ruralistas e, como uma Dandara, uma Zacimba Gaba, faça os olhos do mundo perceberem o furacão que cega as pessoas de ajudar a restaurar Moçambique.

▬ WAGNER SILVA GOMES


Numa situação em que pudesse salvar apenas três livros, confesso que teria muitas dificuldades em escolher, pois há diversos textos os quais me marcaram profundamente na minha vida de leitor sedento. Porém, após pensar um pouco, penso que escolheria aqueles romances que marcaram um certo ponto fora da curva em minha concepção de literatura: A montanha mágica, de Thomas Mann, O livro de Manuel, de Julio Cortázar, e O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez. Não os li nessa ordem em minha vida, mas todos me absorveram demais em diferentes anos de minha existência – 2016, 2009 e 2014 – e mudaram profundas concepções filosóficas e literárias em mim. O primeiro me fez entender a profundidade do que é o tempo e de como ele nos percorre nas mais ínfimas moléculas de nosso sangue; o segundo me fez entender que um romance não deve nos dar tudo de mão beijada e que a revolução começa no entendimento disso e de uma contemplação de possibilidades mais ampla da existência; e o terceiro me fez entender que o amor tem diversos desvios e não é aquilo que o romantismo conservador prega, mesmo quando tem um alvo fixo – além de que matar um personagem não significa que não seguirá, de alguma forma, vivo dentro de um enredo pujante e bem escrito.

▬ RAFAEL KAFKA

     
Chamo-a a lista, sem ordem específica, dos livros que salvaria no caso duma qualquer catástrofe arbitrária.

Coração do dia, de Eugénio de Andrade

A escolha deste título é relativamente simples. Primeiro, por se tratar de um dos poetas que mais estimo e admiro, alguém que sempre senti que me ensinava (e ensina!) algo em cada poema que lia; depois, por ser à luz da minha apreciação um dos livros mais bonitos que editou. Apesar de ainda representar a fase mais precoce da sua carreira, oferece versos dum lirismo belíssimo, duma melodia ímpar. Não obstante, foi o primeiro livro completo do Eugénio que li. Talvez haja mais nostalgia do que um aspecto qualitativo no critério de escolha, mas os livros só têm o significado que, em última instância, lhe atribuímos.

As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain

Um clássico que prima por oferecer uma narrativa excelente. É impossível não ser-se cativado pelas divertidas tropelias duma das mais famosas personagens da literatura. O humor com que se recheia é ímpar, fazendo da obra um livro que não fatiga em qualquer releitura que se faça. Poderia facilmente optar pelo outro que sempre se associa a este, as famosas aventuras do seu amigo Huck Finn, mas para todos os efeitos não posso negar o aspecto emocional da questão: Tom Sawyer, o grande herói dos pés descalços, sempre me cativou mais.

Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas

Uma história intemporal que continua a cativar gerações. Já não é comum ver uma literatura elaborada em tais moldes, numa narrativa a que nada escapa: amizade, intrigas, traições, lealdades levadas à sua mais árdua provação. Não é à toa que se tornou um clássico, não é um acaso ainda conseguir encantar todo o leitor que se permita seduzir por cada página sua – secretamente sonhando o dia em que ao alto possa erguer, também ele, a sua luzente espada.

▬ PEDRO BELO CLARA


Os ensaios, de Michel Eyquem de Montaigne

O mais pessoal livro já escrito é, também, aquele que de imediato entabula conversa com seu leitor. Ao assumir-se como a própria matéria de seus escritos, Montaigne, que de tudo nos fala – guerras, amizade, ócio, como educar os filhos, sua semelhança com os pais, Plutarco e Sêneca e, essencialmente, da experiência como veio da escrita –, concretiza em forma literária uma perspectiva autorizada, inédita e que, assim, demanda nova forma: o ensaio. Para ele, a leitura tem papel fundante, mas não dominador; a relação entre o leitor e os livros deve ser a do mais honesto diletante, que flana com quase volúpia pelo que lhe interessa, pondo de lado o que o aborrece. É graças a essa visada antidogmática que ele não hierarquiza saberes, consciente de que “Não há desejo mais natural que o desejo de conhecimento. Ensaiamos todos os meios que podem nos levar a ele”. E o bibliocausto não é um deles. Lição preciosa. E urgente.

Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes Saavedra

Em face de uma hecatombe livresca, não há livro mais urgente, que inclusive retrata em um de seus primeiros capítulos a queima da maior parte da biblioteca do protagonista pelos seus amigos, o Cura e o Barbeiro, e da qual poucos autores se salvam, incluindo um certo Saavedra autor da Galateia. Construído a partir de um arcabouço modernamente complexo em sua transitividade entre ficção e realidade, o romance põe a nu o desejo humano de instaurar ficções sobre o real que, a contrapelo, podem ser revertidas, produzindo consequências dolosas sobre quem as inventa. Mais do que narrar as três saídas de Alonso Quijano, tornado Quixote por inconformável idealismo em face de um mundo amesquinhado, a obra tem por herói um desloucado leitor e figura em seu cerne os meneios do próprio ato de leitura, abrangendo tanto seu viés humanizador quanto a arbitrariedade imanente ao homo fictus.

O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien

A pungência da obra-prima de Tolkien exige um leitor contemplativo, capaz de sopesar os eflúvios da fantasia de livre curso com uma forte carga de realismo – fantasia exata –, equilíbrio sem o qual o livro não se sustenta e que se arvora em tema essencial: “sem o elevado e o nobre, o simples e vulgar é totalmente vil; e sem o simples e ordinário, o nobre e heroico não possui significado.” Além disso, lembremo-nos da preciosa observação de W.H. Auden sobre a obra, em que a vitória da demanda do anel encontra-se alicerçada, sobretudo, na capacidade imaginativa de seus heróis, orgulhosamente ausente em Sauron, cuja hybris lhe impede de sequer conjeturar a viabilidade da destruição do Anel por seus antagonistas. É na liga orgânica entre o lúdico gozo da subcriação e o senso ético da imaginação que, para este leitor, reside o veio profundo e urgente da ficção tolkieniana.

▬ GUILHERME MAZZAFERA


Viagem ao fim da noite, de Louis-Ferdinand Céline

O polêmico Louis-Ferdinand Céline criou um dos narradores mais instigantes que se possa compactuar. Um narrador que até hoje para mim é um estranho, e, ao mesmo tempo, está ao meu lado me contando algumas coisas horríveis que viu. O choque maior foi talvez a sintaxe expressiva que carrega muito da oralidade, como se no último momento de uma frase, Ferdinand Berdamu se lembrasse de dizer alguma coisa que já devia ter dito e soltasse ali mesmo, num fim de frase, quase desconexo. Como se naquele ambiente hostil e frágil nem a linguagem se permitisse continuar a mesma.

Léxico Familiar, de Natalia Ginzburg

“Esta é a história de uma família de bem”, diz Ettore Finazzi-Agrò no posfácio de Léxico Familiar. Natalia Ginzburg quase não aparece no livro. Ela prefere se ver de fora entre os caprichos de quando ainda menina até seu casamento. Mas é nas brigas familiares, nas discussões políticas, nos resmungos de seu pai, que se tem a oscilação dificílima entre o humor e o drama que são a base do léxico familiar. Recomendo por ser a história de uma família, pela ascensão do ruído que ouvimos no fundo, a cada linha, daquilo que durante a leitura causa tanto impacto nessa família.

Confissões de Narciso, de Autran Dourado

Os cadernos de Tomás de Sousa Albuquerque são levados pela própria recém viúva até um editor. O que ela não sabe, por não conhecer seu conteúdo, é que aquelas anotações repletas de ironia e intertexto com os clássicos Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, e Do Amor, de Stendhal, carregam a busca de um jovem até a idade adulta pelas aventuras do amor. Movido por uma figura de camafeu surrupiada da mãe, entre as alusões a Freud e os elogios ao nariz arrebitado da avó, Tomás desenha mentalmente seu perfil de mulher, o que lhe causa alguns problemas entre o mundo das ideias e o mundo real.

▬ JOAQUIM FERREIRA


Quem propôs esta lista fui eu. E não apenas os fatos recentes de patrimônios culturais consumidos pelo fogo me motivaram a tanto. Foi certo medo particular de que isso possa acontecer um dia e de maneira diversa. Podemos ser proibidos de um dia ter livros, como já se impôs várias vezes. E nada me espanta que voltemos aos tempos de duro fascismo. O que fazer se perder o suado pequeno patrimônio de tinta e papel que tenho construído há alguns anos? Prefiro não saber. Ao propor o desafio aos amigos do Letras, me vi envolvido no pior dos dilemas. Considerando um tempo para pensar já é difícil, agora, imagine, numa situação em que não teria alternativas, como no caso específico de um incêndio. Salvaria os livros que foram mais caros, os que são raro porque nunca mais farão uma edição igual, os que me marcaram profundamente como leitor, os que ganhei de inestimável presente, os que ainda não li e não terão próxima reedição tão cedo mesmo já esgotados, os que guardo há mais tempo comigo? Os critérios podem se multiplicar ao infinito. Pensei tanto que numa próxima reorganização dos livros devo compor uma estante dos afetos para ter na cabeceira ou nas imediações de saída – porque, vai que... Mas, aí estão:

Memorial do convento, de José Saramago (uma edição de raro primor editada em Portugal e que levou muitos anos até que chegasse ao destino de convivência atual)

Este é o livro que mais guardo edições: a primeira, editada pela Editorial Caminho / Casa da Palavra, de 1982; a primeira que pude comprar, editada no Brasil pela Bertrand Brasil em 1987, portanto já uma senhorita, toda rabiscada, porque me foi sempre útil em todos os textos que escrevi a partir dela, como o meu Retratos para a construção do feminino na prosa de José Saramago; a mais recente editada por aqui pela Companhia das Letras em 2013; uma edição especial apresentada em Portugal pela Guerra e Paz em 2016 com ilustrações de João Abel Manta e texto do Professor Carlos Reis; e esta que aqui indico. Trata-se de uma tiragem limitada para os vinte anos da primeira edição e tem as ilustrações que José Santa-Bárbara realizou para o ciclo Vontades. Uma leitura de Memorial do convento. É um livro que tem seu périplo: levei anos a rastrear livreiros em Portugal, pessoalmente ou online, até conseguir que alguém do Porto me entregasse a tal pérola que atravessou o Atlântico carregando os mesmos perigos do acaso dos primeiros navegadores até aportar às vésperas de um Natal à minha casa. E não é apenas pela edição primorosa e por ser um Saramago (afinal todos que me conhecem sabe do meu gosto e amor pela obra do escritor), mas porque a obra-prima reúne as mais elevadas qualidades do nosso Prêmio Nobel de Literatura e preenche os critérios diversos que enumerei na introdução destas indicações.

Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade (edição fac-similar apresentada pelo Instituto Moreira Salles)

Não sei quando me encontrei com a poesia de Drummond pela primeira vez; a memória me diz que foi ainda em algum livro didático, no meu período escolar. Mas, está entre os poetas de minha predileção desde sempre. É aquele que leio e releio com frequência quase religiosa. Daí quando, em 2010, soube que o IMS faria uma edição comemorativa para Alguma poesia, que foi o primeiro livro do poeta publicado por sua própria conta pelo selo editorial fictício Edições Pindorama, fiz todos os esforços para tê-la. Realizada para assinalar os oitenta anos da primeira edição, esta obra reproduz um exemplar que pertenceu ao próprio poeta, com intervenções variadas suas, algumas curiosas até para a compreensão sobre a construção de alguns dos seus poemas mais singulares, como “Quadrilha”; é em Alguma poesia que aparecem textos como “Poema de sete faces”, “No meio do caminho” e “Cidadezinha qualquer”. Organizada pelo também poeta Eucanaã Ferraz, o título original do livro aqui referido é Alguma poesia, o livro em seu tempo e reúne ainda vasta fortuna crítica referente aquando o livro foi publicado. Diria que esta é a edição mais completa que um apaixonado pela obra do poeta mineiro pode ter. E, bem parece ser outra peça que reúne extensa parte daquelas qualidades que pensei pensei na organização destas indicações.

Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa (a edição comemorativa dos 50 anos)

Atualmente é uma edição rara. Mas deverá ter custado um tempo para alcançar esse estatuto porque a editora Nova Fronteira realizou, ao invés dos 63 da Companhia das Letras para a caprichada edição de agora em 2019, 10 mil exemplares. O fato é que, para mim, foi sempre rara. Eu recordo que a primeira vez que vi esta edição foi num sebo e custava mais de uma centena de reais e eu não poderia nunca, por mais quisesse, tê-la. Era uma ocasião que, ou guardava o pouco que recebia para pagar a comida ou cairia de fome. Não tinha, portanto, escolha nenhuma. Foi há alguns anos, noutra condição que encontro em mãos de um livreiro desavisado (ou honesto) este livro e quase nas mesmas condições originais; quer dizer, não estava aí o DVD decorrente da instalação proposta pela Bia Lessa no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, mas estava a caixa (que findei jogando fora pelas condições não tanto favoráveis) o livro com o catálogo da mostra e o cordão com que os dois volumes foram amarrados. Material intacto, não hesitei em poder realizar meu gosto de leitor adolescente. Sim, Grande sertão é um dos maiores romances de sempre da nossa língua e foi a obra que me marcou profundamente como leitor.

▬ PEDRO FERNANDES

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