O último gozo do mundo, de Bernardo Carvalho

Pedro Fernandes

Bernardo Carvalho. Foto: Gabriela Biló. 


 
Por vezes toda a maestria de um escritor — ou seria sua maturidade — consiste em salvar um livro de cair no precipício. É comum encontrarmos boas ideias perdidas para relatos mal ajambrados; o caso é sempre uma das recorrências maiores agora quando persiste certa posse febril por ser escritor e quando os consagrados como tal estão obrigados a trazer ao público um livro a cada ano e se possível tão inovador quanto o que lhe deu a permissão de figurar entre os nomes principais do sistema literário. A lógica escravocrata que se observa neste contexto é a mais recente dos contributos na sociedade do consumo e ameaça à própria literatura, circunscrita num tempo próprio.
 
Se é comum obras naufragarem pelo discurso da pressa ou mesmo por uma revisão desatenta — e isso acontece em proporções quase idênticas e nas melhores casas editoriais — é raro o contrário; isto é, uma obra que nasce condenada a não vingar mas alcança seu ritmo até conseguir deixar o leitor em suspenso: sem saber se admirado com a estratégia adotada pelo escritor para sair do atoleiro onde se meteu ou se o livro lido é mesmo um que mereça figurar na lista de leituras preferidas. Ora, também não é o caso exclusivo de uma maestria ou maturidade do escritor; todos, sem exceção, escreveram livros tão medíocres como o raciocínio que inicia este texto. E não há mal nenhum nisso.
 
No caso específico de O último gozo do mundo, de Bernardo Carvalho, temos algo muito parecido. Para quem leu Nove noites e Simpatia pelo demônio — e mesmo alguns dos seus primeiríssimos livros — custa desenvolver algum interesse logo à entrada de um romance que tateia, às vezes penosamente, encontrar o fio condutor e nos cansa pela irregularidade comum de toda errância, principalmente quando esta, a errância, não participa dos seus fundamentos mesmo prevalecendo muitos dos resquícios capazes de formar um pontilhado sugerindo ao leitor que este é o tema principal da narrativa.
 
A protagonista deste romance — apesar dos muitos passos fora de uma ordem mais ou menos linear, como é natural à maioria de nós, afinal só dispomos casualmente de algum controle — está bem situada no plano das decisões: ir em busca da possível resposta de um vidente no interior do país a fim de saber sobre o destino do homem com o qual se envolveu casualmente e que lhe deixou um filho que nunca saberá qual foi seu pai. Note bem: não é a resposta pura e simples sobre um futuro e sim sobre um lapso no passado que modificou o curso do presente. É verdade que depois disso o paradeiro dessa mãe se confunde com o do amante passageiro, mas a errância possível, fora do alcance do interesse do narrador não é desenvolvida.
 
A princípio é a vida enclausurada por um vírus que se alastra pelo mundo deixando um amplo rastro de mortes; a personagem principal ficou sem os pais e quase todas as figuras que cortam seu caminho carregam histórias de perdas de entes queridos. A possível história de confinamento se arma em torno de uma enxurrada de situações-limite: o anúncio quase marcial da separação pelo marido depois de constatar um casamento há anos fracassado; o envolvimento repentino da recém-separada com um jovem colega de turma de mais um curso de escrita que inicia dias antes dos decretos de isolamento; a descoberta da gravidez e o dilema entre o que fazer com a vida por vir.
 
Todas as possíveis questões derivadas de um universo prático em suspensão enquanto a necessidade de continuar se faz imperativa são suficientes para o desenvolvimento de um bom romance — basta pensarmos em algumas obras de dois escritores italianos contemporâneos, Elena Ferrante e Domenico Starnone, capazes de esmiuçar sutilmente o mínimo cotidiano até transformá-lo numa dimensão psicológica fundamentalmente complexa. Mas ao narrador de O último gozo do mundo falta qualquer coisa que o indispõe para o mundo interior — e nem dizemos com isso do eu porque estamos diante de uma voz em terceira pessoa, é sobre a intimidade da vida, sua dimensão mínima ou sua expansão a partir de uma interioridade. O narrador do romance ora lido é uma voz em descompasso com o imperativo da vida mínima; não consegue tecer importância com isso porque arrazoado com o exterior. O que quer contar está fora; é o que se passa com o outro.
 
É dessa maneira que todo o drama favorecido pelas circunstâncias de ruptura entre pelo menos dois mundos — o interior e o de fora — é descartado. Assim, o que o romance projeta é a vida restabelecida ao como se no estágio anterior à pandemia, um retorno que agora se demonstra inviável por um tempo importante. No universo do romance, o que se conta está, portanto num tempo suspenso, imaginável. Esta é uma das primeiras saídas, se não original, criativa, para uma narrativa precipitada. Bernardo Carvalho desloca, assim, o romance para o campo da fábula, uma alternativa, aliás, bastante profícua na sua literatura. Esse uso não se refere ao gênero narrativo, embora, seja possível perceber suas influências na brevidade do relato, na tensão e simplicidade da ação e para alguma conclusão ético-moral dos acontecimentos.
 
O termo fábula divide o título do romance; aparece como subtítulo com a precisão de uma definição do tipo de texto que encontraremos nas páginas seguintes. Agora, por sobre o relato prevalece o conceito: o acontecimento real que serve ao autor como fabulação e o processo situado numa narrativa destituída de intriga. Podemos repetir qual o enredo do romance agora lido: a ida de uma professora de sociologia metida a escritora a um vidente interessada em saber qual o fim do pai da criança. Em certa medida, essa narrativa chega a repetir o modelo antigo, quando se recorria ao oráculo para saber sobre o futuro ou mesmo encontrar resposta para um dilema no presente.
 
Embora situado num tempo suspenso, o tema preponderante em O último gozo do mundo, não é o passado ou o futuro: aquele prevalece em grande parte inalterável embora mereça as interpretações que dele fazemos (como é caso da escravidão no nosso passado colonial para citar um dos apensos da narrativa neste romance) e o futuro é a grande incógnita sobre a qual nos confrontamos desde sempre ainda que tenhamos desenvolvido toda uma ciência capaz de estipular alguma previsão. Exemplo maior é a própria pandemia; sempre soubemos da sua possibilidade, mesmo porque a história guarda seus registros e o modelo de vida que levamos vez ou outra oferece seus próprios sinais, entretanto, outra vez precisamos reeditar até mesmo discursos básicos, como a importância da vacinação coletiva e das medidas sanitárias a fim de evitar o colapso total do frágil sistema que adotamos.




A vida pós-pandemia sinaliza como uma tentativa de reingresso da humanidade numa apoteose coletiva de celebração da vida ora pelo desregramento total como se em busca de um tempo perdido — ainda sem saber se foi isso mesmo — ora por uma tentativa de restabelecer os vínculos com a natureza como se esta fosse uma dádiva maior. Esses possíveis, é claro, não significam em nenhuma hipótese numa sondada renovação do homem; os impasses são mesmos, agravados agora por uma verticalização das opiniões, uma vez que a noção de contato com o outro se amplia na direção de um diálogo surdo e o possível mundo coletivo se revela ainda mais como impossibilidade. No universo do romance isso se mostra no impasse entre o poder dominante e as guerrilhas que se formam para combatê-lo. Mesmo assim, Bernardo Carvalho não é um apocalíptico; é um observador cético sobre os destinos de uma coletividade à deriva, em busca do último gozo de suas vidas, e por isso, em parte cega porque depositou certezas demais no futuro e em parte porque não aprendeu dialogar com o passado ou nele acredita como um retorno idealizado.
 
De todos os temas tocados por O último gozo do mundo prevalece o da memória — talvez porque seja o único fio com o qual podemos cerzir o tempo, entender seus volteios e imaginar o de fora. Esta é uma das tentativas do escritor com este romance: pensar o de fora, fundar outro papel para as dicotomias. Uma dimensão, diríamos, ética, para o limite dos impasses que atravessamos enquanto civilização. Resulta improvável pensar noutro mundo se continuamos presos ao trabalho de desconstruir — em grande parte pela negação pura e simples do passado ou a retomada do que pareceu a formação de um destino grandioso — sem a proposição de um possível conciliador, porque o avesso da ignorância não é a inteligência, é outra vez a ignorância.  
 
Das várias situações sobre a memória que podemos citar desse romance, duas delas são interessantes: a preocupação da personagem principal em não perder a memória como aconteceu à sua mãe e de onde vem todo empenho em recontar os episódios mais singulares de sua vida para o filho que ainda não adquiriu o domínio do mundo pela fala e mais tarde nas cartas de um pai inventadas por ela para publicação no jornal e lidas para o filho; a segunda, é o caso de ser o vidente a quem se dirige forjado a partir de uma capacidade autêntica de predizer o futuro porque perdeu todo o acesso ao passado, uma sequela do vírus.
 
Quando chega à pousada da cidade onde atua o vidente, a mãe com o filho encontra um escritor que trabalha no desenvolvimento de um livro: seu primeiro trabalho de memórias. No diálogo que desenvolvem a partir do tema de interesse — um dos raros neste mundo de comunicações surdas —, ele recorre à leitura de uma entrevista com um escritor português segundo o qual “os cientistas descobriram que afinal não existe imaginação, só memória”. Ao desenvolver uma problematização simples da referência, conclui pelo ponto de vista imaginado de um cientista que este mundo feito só de memória “é inimaginável, porque nele não cabe nenhuma dúvida, nenhuma surpresa, nenhum desvio, nenhum erro, nenhum livro que diga o que não se conhece ou aquilo em que não se acredita a priori. E, logo aí, tampouco caberia a ciência.”
 
O raciocínio do escritor oferece quase em tom metatextual uma leitura coerente sobre O último gozo do mundo e se o expandimos, agora em chave metonímica, um preciso exame sobre o presente. Ora, este romance ao tratar sobre um tempo suspenso se faz mais pela imaginação que pela memória, mas é impossível uma sem a outra; no âmbito da ficção, como no da vida, constituem forças indissociáveis. Assim, na ausência da memória, prevalece o dessentido das coisas — como se verifica na história da mãe demente contada por um dos que aguardam junto com a protagonista a vez de ser atendido pelo vidente — e com isso o retorno do homem a uma condição animalesca. Agora, a memória não é apenas um repositório para o qual regressamos com algum conforto como acredita a personagem central desse romance; é graças a ela que existe uma maneira de acesso ao possível, esta região é já o mundo que por agora habitamos e o por vir. O desfecho inusitado da consulta esclarece perfeitamente isso: se o futuro é inacessível ou só revelado como possibilidade pela imaginação e esta prescinde da memória, como pode existir vidência?
 
Atendo-se ao presente, a encenação desse mundo proposta por Bernardo Carvalho encontra estreito diálogo com o destino-Brasil, toda vez arrastado por um espectro do messianismo, do líder popular, a figura capaz de sozinha conduzir os rumos coletivos para um destino equânime ou pelo menos coerente. Como o vidente, o messias é uma farsa e sua existência só se justifica pela insanidade de um coletivo indisposto a entender que o mundo é produto das nossas atitudes e, portanto, fundamentais que depois de aceitá-las possamos sempre questionar seus destinos. Ao engravidar por um deslize do acaso, esta mulher sabia do destino possível, incapaz de assumi-lo entra numa rudimentar paranoia que se desfaz abruptamente pela própria intervenção de quem menos espera.
 
Este filho sem pai e mais tarde sem mãe pensa no nascimento da palavra, a primeira que disse, que inaugurou sua consciência sobre o mundo e pôs abaixo o messias. Este filho inaugura um devir que não pode existir pela cansada fórmula da redenção afirmada por um salvador, nem pela prevalência do retrogradismo que nos trouxe até aqui, tampouco pelo investimento na censura peremptória do passado porque o futuro é o radicalmente novo e negativa do que passou. Resta-nos a imaginação: com ela se salva o romance de um fracasso e com ela sempre podemos riscar um retorno da farsa para irmos ao tempo de quando éramos um instante e outra vez, nos conciliando com a memória, fazer o possível. No nosso tempo, precisamos de matrizes fora do perverso jogo das dicotomias opositivas.
 
 

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