Por Daniel Saldaña París
O projeto de William Carlos
Williams de encontrar uma forma poética que fizesse justiça ao que ele chamava
de “idioma americano” teve vários episódios e resultou em diferentes abordagens
formais, dentre elas, como sabemos por entrevistas, a que o deixou mais
satisfeito foi o verso escalonado ou pé variável, que utilizou pela primeira
vez em “The Descent”. Essa exploração do “idioma americano” não deve ser
confundida com um interesse pelo ritmo conversacional da fala estadunidense. Se
há uma busca por esse ritmo na poesia de Williams, não se deve ao caso de ser a
conversa dotada de um fim estético em si mesma, mas porque, como
forma
natural, o ritmo e a dicção seriam a expressão mais exata de um caráter, e esse
caráter, por sua vez, a decantação definitiva de uma História.
Agora, a ideia de História de
Williams envolve necessariamente a paisagem, os processos sociais que
determinam a configuração política de um país e os indivíduos, heroicos, que
transitam entre ambas as instâncias — paisagem e sociedade — como protagonistas
de um drama particular. Todas essas camadas semânticas convergem e se
interrompem abruptamente em
Paterson, o poema mais decididamente
histórico de Williams, que é também, paradoxalmente, um dos seus mais pessoais.
Talvez fosse apropriado deixar de
lado a terminologia usada pelo próprio Williams — o “idioma americano”, o “pé
variável” — e falar, em vez disso, de uma mistificação do caráter nacional — ou
mesmo continental — que se expressaria não apenas na fala dos habitantes da
cidade de Paterson, Nova Jersey, mas também na vertigem cumulativa do
capitalismo do pós-guerra — condição refletida pela integração, no poema, de um
conjunto de discursos originalmente estranhos à linguagem poética, formando um
palimpsesto que abrange o histórico e o autobiográfico, passando pela esfera
das pequenas comunidades suburbanas e sua mitologia local.
Se em títulos como
The Desert
Music ou
Journey to Love a busca por esse caráter nacional se
concentra na disposição espacial dos versos na página, em
Paterson,
projeto paralelo e ambicioso escrito entre 1946 e 1958, a investigação se
orienta em uma direção mais temática. A escolha da colagem como método não é um
capricho vanguardista, mas a consequência de querer expressar algo sobre a
sociedade estadunidense e, simultaneamente, sobre a própria poesia (“Qualquer
coisa pode dar boa matéria para a poesia. Qualquer coisa. Eu já disse isso
várias vezes”, escreve ele no quinto livro).
Em Paterson, a coincidência
entre forma e conteúdo é deliberada e perceptível. O fato de Williams ter feito
da preocupação teórica com essa coincidência o cerne de sua obra poética tem
profundas repercussões para a poesia estadunidense da segunda metade do século
XX; não é coincidência, portanto, que entre a publicação do terceiro e quarto
livros de Paterson, tenha surgido o famoso ensaio sobre o “verso
projetivo”, no qual Charles Olson enunciou esse mesmo princípio (“a forma nada
mais é do que a extensão do conteúdo”) em seus próprios termos.
Muito se tem falado da posição de
Williams em relação à versificação clássica e à tradição lírica inglesa.
Acredito que o esforço do autor não seja tanto a negação de uma tradição, mas a
necessidade de acolhê-la em uma forma poética pessoal; isto é, numa forma
poética que não tenta apagar os vestígios do aqui e agora de quem escreve.
Nesse sentido, Paterson não é apenas um livro ambicioso, mas, sobretudo,
honesto que, embora conscientemente excessivo, torna explícitos e evidentes os
mecanismos de sua própria construção.

Para outros leitores que não estadunidense,
essa abordagem pode ser confusa. Aos acostumados a que o poema longo seja
apresentado como um resultado absoluto, uma fachada impossivelmente
barroca que esconde e dissimula os meandros de sua arquitetura, o projeto de
uma obra que, embora evasiva e imperfeita como resultado, insiste em ser lida
como um processo, pode parecer meio desproposital.
É que, em Paterson, as
fronteiras que separam os elementos da colagem (cartas pessoais, episódios da
história local, retratos de figuras, entrevistas com o autor) não são de todo
borradas, mas assumidas e até mesmo tipograficamente acentuadas. De fato, a
construção de Paterson não é apenas a matéria poética deste poema, mas a
que se antecipa em vários anteriores. Por exemplo, em “Paterson: The Falls”, de
The Wedge (1944), já há o planejamento de um longo poema, em quatro
partes (uma quinta seria adicionada posteriormente), e a essência geral do
livro: “Este é o meu plano. 4 seções: Primeiro, / as pessoas arcaicas do
drama...”
Em algum momento, Williams
percebeu que, ao escrever um poema sobre Paterson, estava contribuindo e se
tornando parte da história espiritual da cidade, e sabia como integrar essa
reflexão ao texto, enriquecendo-o. O resultado: um vai e vem entre o histórico
e o autorreferencial; um poema que, como ou as Cataratas de Passaic de que ele
fala, arrasta consigo qualquer elemento, incorporando-o ao seu curso.
Paterson é um palimpsesto,
mas não há arbitrariedade na superposição de vozes. Em vez disso, há paralelos
e correspondências regidos por uma sensibilidade onívora. Por exemplo, a
passagem em que fragmentos de prosa que narram o confronto ideológico entre
Hamilton e Jefferson a respeito do sistema tributário americano — “a luta pela
abstração”, como o poeta a chama — se alternam com fragmentos versificados que
contam, em primeira pessoa, a história de um pregador que se livra de todo o
seu dinheiro por ordem divina. Nesse entrelaçamento, lê-se uma intuição
poderosa e atual sobre a dupla configuração, religiosa e pragmática, do seu país.
Os territórios do histórico são
subitamente atualizados no local — Paterson, a cidade — e, a partir daí, o
discurso adentra os domínios do íntimo. Há uma transição de estruturas
superiores — a história, a economia, a ideia de nação — para estruturas
inferiores — o amor entre duas pessoas, as pequenas brigas cotidianas, a amizade.
No segundo livro de Paterson, começam a irromper cartas pessoais. Na
minha opinião, traçar o enredo e os personagens da história privada do poeta é
fútil ou secundário: as cartas estão lá para fazer essa transição para o íntimo
e também, como um mecanismo sutil e poderoso, para permitir que o autor emerja
no texto sem cair no exibicionismo da primeira pessoa. Assim, o personagem
William Carlos Williams em Paterson é uma lacuna moldada pelas vozes
daqueles que lhe escreveram (Marcia Nardi, Allen Ginsberg, Josephine Herbst).
O que se destaca em Paterson,
em comparação com projetos poéticos de escopo semelhante — penso nos Cantos
de Pound — é que se trata de uma epopeia perfeitamente temperada pelo tom
doméstico de sua linguagem. Não há floreios grandiloquentes, palavras em
maiúsculas desnecessárias ou maneirismos gratuitos que criem uma raridade. O
objetivismo de Williams oferece um excelente contraponto à vocação expansiva do
projeto e, à parte todo o discurso teórico que cerca o livro — a ideia de
História, a ideia de Linguagem que propõe —, Paterson se lê como uma
sucessão de descobertas.
______
Paterson
William Carlos Williams
Ricardo Rizzo (Trad.)
Círculo de Poemas, 2023
372 p.
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